O artigo convida à reflexão sobre como a tecnologia pode ser integrada à vivência da fé, buscando sempre o equilíbrio entre os avanços da razão e os valores do Evangelho.
Dom Edson Oriolo – Bispo da Igreja Particular de Leopoldina MG
Em setembro de 1998, enquanto lecionava algumas disciplinas de Filosofia, no Seminário de Pouso Alegre (MG), recordo vividamente a publicação da décima segunda encíclica do saudoso São João Paulo II, Fides et Ratio (FR), sobre as relações entre fé e razão. Diferentemente de suas outras encíclicas, dirigidas a todo o povo de Deus, esta era especificamente destinada aos bispos. Interrompemos a ementa do tratado de Filosofia da Ciência para aprofundar essas duas realidades, tão necessárias para a vida da Igreja.
Mesmo ciente de que o papa São João Paulo II escreveu a encíclica Fides et Ratio especificamente para os bispos, um detalhe que me despertou bastante a atenção, no primeiro contato com a encíclica, fiz várias observações na época. Acredito que essa decisão do papa refletia a preocupação com o papel dos bispos como principais responsáveis pelo ensino da fé em suas dioceses, e a necessidade de que eles aprofundassem a reflexão sobre a relação entre fé e razão, para melhor orientar os fiéis. Apesar disso, incentivei meus alunos, dizendo que nós, como sacerdote e alunos, precisaríamos ler, estudar e aprofundar este tema.
Essa encíclica veio nos ensinar que “a fé e a razão são como as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade” (FR n.1). “A busca da verdade não se opõe à fé. Ao contrário, a fé sem a razão tende a transformar-se num fideísmo e a razão sem a fé cai no racionalismo” (…). “Uma fé que não pensa ou reflete não é uma fé autêntica” (idem, n.72). A encíclica enfatiza a complementariedade entre fé e razão, permitindo que o Espírito humano alcance a verdade plena. A fé necessita da razão para evitar o fideísmo, assim como a razão necessita da fé para não se perder no racionalismo, garantindo, assim, uma fé autêntica e reflexiva.
No entanto, desde 2016, o Fórum Econômico Mundial anunciou o início da Quarta Revolução Industrial. Essa revolução é caracterizada pela convergência de tecnologias digitais, físicas e biológicas, redefinindo a forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos. A realidade 4.0 demanda tecnologias que aprimorem nossas vidas, como inteligência artificial, internet das coisas e computação em nuvem. Assim, podemos agora falar sobre a interseção entre tecnologia e fé, explorando o uso da ciência(saber) e principalmente da tecnologia(fazer) a serviço da fé. Este é o desafio que nos convida a crescer em nossa vivência da fé.
Vivemos em um mundo tecnológico que impacta significativamente nossa racionalidade. Os vieses tecnológicos influenciam nossas comunicações e relacionamentos interpessoais, gerando uma dependência que compromete nosso bem-estar e nossa relação transcendente. Essa dependência pode prejudicar o crescimento da nossa fé, mas também podemos descobrir meios de fortalecê-la. As tecnologias trazem tanto benefícios quanto malefícios. Estamos nos tornando viciados e imersos nessa barbárie tecnológica, que se torna onipresente. Mas com o bom uso da tecnologia em favor do bem comum e da dignidade humana pode impulsionar o amadurecimento da fé.
O vício em tecnologia, impulsionado pela onipresença de assistentes virtuais e dispositivos conectados, apresenta um paradoxo: ao mesmo tempo que prejudica o pensamento lógico, a memória, a privacidade, a democracia, a política, a religião, a capacidade de reflexão e o foco, ele também oferece ferramentas poderosas para o aprendizado, a alimentação saudável, a mobilidade, a medicina, notícias, o trânsito, o acesso a consultas e exames médicos, e até mesmo o crescimento espiritual.
No entanto, a relação entre fé e razão é fundamental para a vida da Igreja, conforme enfatizado pelo magistério de São João Paulo II. Essa interconexão não apenas enriquece a compreensão da fé, mas também fortalece a capacidade dos fiéis de discernir e viver os ensinamentos cristãos em um mundo cada vez mais complexo e desafiador. A fé, iluminada pela razão, permite que os fiéis se aproximem da verdade divina de maneira mais profunda.
Atualmente, a tecnologia migrando de forma definitiva das pesquisas para o cotidiano das pessoas, representa um avanço da razão humana. Essa transição da racionalidade, solidificando a tecnologia, está impulsionando inovações que transformam a maneira como aprendemos e até mesmo como amadurecemos na fé. O desafio em relação à fé consiste em integrar a tecnologia de maneira que ela auxilie no fortalecimento da fé, em vez de se tornar um obstáculo.
Diante desse cenário, a Igreja é chamada a exercer um papel crucial na promoção de um uso ético e responsável da tecnologia. Isso implica em discernir quais ferramentas digitais podem fortalecer a fé e quais podem representar um obstáculo ao crescimento espiritual. Além disso, é fundamental incentivar a reflexão crítica sobre o impacto da tecnologia na vida pessoal e na sociedade como um todo, buscando sempre conciliar os avanços da razão com os valores do Evangelho.
O papa Francisco tem sido um defensor ativo de um diálogo aberto sobre a tecnologia e seu uso ético. Ele, frequentemente destaca que a tecnologia deve servir ao bem comum e promover a dignidade humana. Em suas exortações, o convida a considerar como as inovações tecnológicas podem ser utilizadas para construir uma sociedade mais justa e solidária, sempre à luz dos ensinamentos cristãos. Essa abordagem não apenas reconhece os benefícios da tecnologia, mas também alerta para os riscos que ela pode representar se não for utilizada de maneira responsável (cf. Papa ao Fórum de Davos-2025).
Em suma, a Igreja incentiva seus fiéis a serem agentes ativos e sábios no mundo digital, utilizando a tecnologia de forma a promover a dignidade humana e a construção da civilização do amor. Ao invés de representar uma ameaça à fé, a tecnologia 4.0 pode ser transformada em um poderoso instrumento de amadurecimento espiritual, evangelização e promoção do bem comum, desde que utilizada com discernimento e responsabilidade.
Crédito: Link de origem