A Funmilayo Afrobeat Orquestra e o encontro histórico com Seun Kuti e a Egypt 80 

“A leoa”. Foi assim que um jornal nigeriano definiu Francis Abigail Olufunmilayo Thomas, em 1949, por sua liderança no período colonial contra o controle de preços e taxações pelos ingleses com apoio do então monarca (alake de Egba) Ademola II. Muito à frente do seu tempo, a feminista e ativista política tornou-se numa das principais defensoras dos direitos das mulheres da Nigéria durante a primeira metade do século XX. De 1919 a 1923, ela estudou na Inglaterra, onde abandonou de vez seus nomes coloniais, adotando o nome em iorubá: Funmilayo Anikulapo. 

Casada em 1925 com o reverendo e professor Israel Oludotun Ransome-Kuti, ela teve 3 filhos: o médico Beko Ransome-Kuti, o professor, doutor, médico e ministro da saúde Olikoye Ransome-Kuti e o músico e ativista político Fela Anikulapo Kuti. Essa mulher revolucionária – pouco reconhecida no ocidente -, laureada em 1968 com o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade de Ibadan, terceira maior cidade do seu país, inspirou o nome da Funmilayo Afrobeat Orquestra, formada em 2019 pela cantora e saxofonista Stela Nesrine e a trompetista Larissa Oliveira.

A “necessidade” de criar um coletivo de mulheres musicistas, em sua maioria, negras, pessoas LGBTQIAP+ e não-binárias, surgiu pela resistência que sofriam nos espaços musicais  “dominados” por homens. “A Stela e a Larissa já tocavam em outros grupos e sofriam preconceito de técnicos, de equipes, das pessoas que estavam trabalhando e não esperavam que elas fossem as instrumentistas. Por isso, tratavam elas mal ou achavam que não conseguiam tocar o próprio instrumento”, diz Rosa Couto, integrante da Funmilayo, historiadora e pesquisadora da obra de Fela Kuti, sobre o qual publicou o livro “Fela Kuti: Contracultura e (con)tradição na música popular africana”.

No Brasil, onde o universo da música instrumental, incluindo o jazz, é reservado para a elite masculina, Stela, (Saxofone alto), Ana Goes (Saxofone Tenor), Larissa (Trompete), Tamiris Silveira (Teclado), Bruna Duarte (Baixo), Priscila Hilario (Bateria), Jasper (Guitarra),  AfroJu Rodrigues (Percussão), Sthe Araújo (Percussão), Vanessa Soares (Dança) e Rosa (Clave e Voz) sentiram ainda mais na pele o preconceito e o boicote por serem mulheres. “Existe essa dificuldade de entender nosso lugar”, diz Couto. “Então, já aconteceu de tudo que você pode imaginar”. Porém, apesar das pedras no caminho, elas continuam resistindo a resistência porque acreditam que é preciso que as pessoas se acostumem com equipes com esse tipo de formação. “Se a gente não se esforça pra fazer isso, a gente não contribui para que se torne comum em qualquer ambiente, inclusive na música”.

Por esses motivos, escolheram o afrobeat, um ritmo quente que surgiu ligado às questões políticas. Fela Kuti foi um dos criadores do termo e desenvolveu a linguagem a partir da musicalidade africana contemporânea, do Highlife, soul e jazz. É para dançar e pensar ao mesmo tempo (Não por acaso, o primeiro single do grupo, “Negração”, é um protesto e uma ode à vereadora Marielle Franco, assinada em 14 de março de 2018 por seu ativismo político).

“E isso surge com um discurso muito forte, que é um discurso anticolonial, que é de valorização da negritude, da cultura africana, que acho que são elementos muito importantes e que dialogam com as nossas necessidades políticas também”, afirma Rosa. “Então, eu acho que nossa banda se posiciona de uma forma interessante, de trazer as nossas subjetividades dentro desse contexto que também é político. Acho que o afrobeat casa com tudo isso, além de ser muito gostoso tocar, de ser muito interessante de se aprender, escutar… tem essa parte do deleite”.

O ENCONTRO COM SEUN KUTI E A EGYPT 80

Seun Kuti é o filho mais novo de Fela Kuti. Após a morte do pai em 1997, ele assumiu a liderança da Egypt 80. As integrantes da Funmilayo já tinham uma aproximação com ele, porém, não tiveram a oportunidade de fazer uma parceria com um dos herdeiros da lenda do afrobeat. O sonho foi realizado em novembro de 2023, um dia depois da apresentação de Seun e a Egypt no Brasil.

Na ocasião, ele abriu com “Upside Down”, música do Fela que também faz parte do setlist da Funmilayo. Naquela noite quem cantou foi a Yetunde Kuti, esposa de Seun, que também é dançarina e chefe de cozinha. “Quando eu vi ela cantando, eu disse: meu Deus que maravilhoso”, observa Rosa. Na versão original, quem interpreta é Sandra Isidore, uma ex-Pantera Negra, ativista, que também foi próxima do Fela, e importante para a formação política dele. 

A música serviu de sinal para que chamassem Kuti e a legendária banda dele para uma jam session despretensiosa no dia seguinte, uma segunda-feira, dia oficial dos ensaios. “A gente chegou no camarim e disse: ‘vamos gravar amanhã?’. Aí, ele falou: ‘vamos!’ A gente se juntou meio que de forma improvisada, mas a ideia era fazer uma coisa mais livre”, revela. Inevitavelmente, o primeiro registro foi do clássico “Upside Down” com Kuti regendo e Yetunde no vocal.

O clima estava tão favorável – e isso é possível observar nos vídeos da sessão – que de quebra, meio de brincadeira, também gravaram uma versão de “Gentleman”. “Esse foi um presentão”. Rosa revela que o momento foi um pouco tenso para ela, por estar tocando com suas referências, mas divertido. Antes do botão rec ser apertado, ensaiaram duas vezes, se entenderam e falaram: ‘bora, vamos começar a gravar’. “Acho que em 2-3 horas a gente tinha gravado as duas músicas e já estávamos  tomando uma cerveja depois”, diz ela sorrindo. “Quem viveu, viveu”. 

A artista também diz que foi incrível tocar com o Kunle Justice, o baixista e um dos remanescentes da Egypt 80 original. “Foi muito especial ter a presença dele ali tocando com a gente”, ressalta. “Ele tem a base e sustenta muito. Foi um prazer real, e uma oportunidade para todo mundo”.

Curioso sobre o que a Funmilayo Afrobeat Orquestra está preparando para o futuro, pergunto para Rosa se elas têm pretensão de lançar um segundo álbum, tendo em vista que o primeiro e único disco é de 2022. Ela responde: “pretensão a gente tem, mas…” Na sequência, dá um spoiler de um possível lançamento, se tudo der certo, ainda neste ano – máximo ano que vem – em parceria com uma cantora de Camarões, que vive atualmente no Canadá. “Não devia nem estar falando isso”.  O projeto coletivo tem direção musical do produtor congolês Fredy Massamba e está em processo de finalização. “É um trabalho muito especial que vai sair em breve. Fora isso, tem nossos outros projetos. Estamos tentando nos organizar para sair do país pela primeira vez, todos esses esforços de uma banda independente grande que não tem nenhum herdeiro”.


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