[RESUMO] A vida do poeta Bruno Tolentino (1940-2007) até parece mentira, uma barafunda estimulada por ele mesmo em que muitas vezes é impossível discernir fato e invenção. Personagem dantesco, passou do céu ao inferno inúmeras vezes. Aos 19 anos foi premiado por Manuel Bandeira e acusado de plágio. No exílio europeu, diz ter sido amigo de grandes escritores, como Auden e Beckett, o que carece de evidências. Passou 5 anos preso por tráfico de drogas na Inglaterra. Na volta ao Brasil, firmou-se como um dos grandes autores do país, comprou brigas com medalhões e chacoalhou a cena cultural.
“Quero meu país de volta”, disse o poeta Bruno Tolentino às Páginas Amarelas da revista Veja, na edição de 20 de março de 1996. Àquela altura, Tolentino contava três anos de regresso ao Brasil, após uma estadia de cinco anos na prisão Dartmoor, no sudoeste da Inglaterra, por tráfico de drogas.
Extraditado depois de cumprir quase metade da condenação, Tolentino, já convertido ao catolicismo, esperava encontrar o Brasil que havia deixado em 1964. Uma terra em que os poetas eram Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Manuel Bandeira. Em que a crítica literária se modernizava, por meio dos trabalhos de seu primo Antonio Candido, que formou uma geração a partir da segunda metade do século 20. Naquele cenário, as esferas culturais, da alta cultura à cultura popular, tinham lugares bem marcados.
O que encontrou, porém, foi um país que pareceu a ele —alfabetizado em seis idiomas, de marcada formação erudita e amigo dos maiores intelectuais de seu tempo— virado pelo avesso. Os compositores populares, como Caetano Veloso, alvo frequente de seus ataques, ocupavam o trono antes reservado aos grandes poetas, ensinados e debatidos em escolas e universidades.
“Não se trata de cultura e muito menos de alta cultura. Gosto da música popular brasileira e também da de outros países, mas a música popular não se confunde com a erudita. Então, como é que letra de música vai se confundir com poesia?”, comentou na Veja.
Na visão dele, a crítica literária e cultural havia se tornado cativa e bem comportada. As universidades já se encontravam encerradas em si mesmas, com rígidas divisões de departamentos e cátedras.
“A crítica brasileira não existe mais. Cometeu um haraquiri muito bem pago. Trocou sua independência por cátedras e verbas. É uma gente venal, vendida, que controla as nomeações para as cátedras, bolsas e verbas. Vão se meter com um maluco como eu? Todos, de Roberto Schwarz a Davi Arrigucci, foram formados pelo meu primo Antonio Candido, que é um geriatra nato.”
A entrevista para a Veja causou sensação —e reverbera até hoje. Naqueles anos, Tolentino, cujo gosto por polemizar era tão notável quanto seu talento poético, chacoalhou a cena cultural brasileira como poucos. O efeito involuntário foi um relativo silenciamento de sua poesia frente ao barulho das rixas em que se meteu.
A chance de redescobri-la ressurge com o projeto de reedição de sua obra pela editora É Realizações, iniciado com “As Horas de Katharina”, um de seus clássicos. A editora passa por fase de reorganização, em busca de novos sócios ou investimentos, mas diz ter outros cinco títulos do poeta em preparação. Em conjunto, revelam um dos pensamentos mais potentes e originais das últimas décadas sobre a vida e a cultura brasileira.
“O Brasil que eu conheci, e do qual me recordo vivamente, era um país de grande vivacidade intelectual, mesmo sendo uma província. Não estou sendo duro com o Brasil. Quero saber quem sequestrou a inteligência brasileira”, declarou à Veja na célebre entrevista.
O paraíso
Bruno Lúcio de Carvalho Tolentino nasceu em 1940, no Rio de Janeiro, em uma família que sintetiza todas as contradições que marcariam sua vida e sua obra. Ele explicou assim as suas origens. Um trisavô paterno, Antônio Nicolau Tolentino, que descendia de Nicolau Tolentino, um poeta satírico português do século 18, foi conselheiro do Império e um dos fundadores da Caixa Econômica Federal.
Seu tio-avô, José Tolentino, foi ministro de Nilo Peçanha, hoje tido como o primeiro e único negro a ter presidido o Brasil (entre 1909 e 1910), e, nessa época, montou um apartamento para uma travesti em Paris. A ascendência materna o tornava parente do escritor romântico Joaquim Manoel de Macedo, autor de “A Moreninha”.
Garoto, Bruno Tolentino estudou no Colégio Batista, onde completou os antigos cursos primário e ginasial, e frequentava a Igreja Católica com a mãe, tendo na imagem da Virgem Maria seu primeiro contato com o sagrado.
Era sobrinho de Lúcia Miguel Pereira, importante crítica literária da primeira metade do século 20 e pioneira nos estudos sobre Machado de Assis. Em casa, o garoto chamava a poeta Cecília Meireles de “tia”, e circulava pelos grandes poetas, como Bandeira, Drummond e João Cabral.
Naqueles anos, a livraria Leonardo Da Vinci, então recém-inaugurada, reunia alguns dos principais nomes da vida literária. Lá Tolentino abriu uma conta em 1954, por volta dos 14 anos, e conheceu um amigo que levaria para a vida: o crítico literário, e futuro diplomata, José Guilherme Merquior, com quem compartilhava a ambição cultural e o talento inato para as polêmicas.
Naquela época, Tolentino já escrevia seus poemas. O primeiro foi publicado em 1957, no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, onde trabalhou como revisor, convivendo com nomes como Ferreira Gullar e Mário Faustino.
Os poemas criados entre 1957 e 1959 foram reunidos em uma coletânea chamada “Sete Claves” e enviados para o prêmio do Sindicato dos Editores e da Câmara Brasileira do Livro, em 1960. O júri, composto pelos poetas Manuel Bandeira, Lêdo Ivo e Cassiano Ricardo, lhe concedeu o prêmio Revelação de Autor.
“Bruno Tolentino é um poeta de grande força e personalidade, e, apesar de sua idade [19 anos], já apresenta uma surpreendente técnica de criação”, justificou o júri. Como prêmio, ele teria direito a 200 mil cruzeiros.
O reconhecimento logo deu origem a um escarcéu que agitou os cadernos culturais da época.
“Tolentino queria fazer um escândalo. Houve uma confusão danada porque acharam que ele não era autor inédito”, afirma o editor José Mário Pereira, da Topbooks, que editaria parte da obra do poeta nos anos 1990.
Outros escritores contestaram a premiação, alegando que Tolentino já havia publicado um livro em 1957, o “Infinito Sul”, portanto não estaria habilitado para a categoria de revelação, dedicada a autores inéditos. E ainda mais grave: os poemas desse livro não seriam de sua autoria. Diante do impasse, o Sindicato dos Editores recorreu a Justiça para buscar uma solução.
Para não perder seu prêmio, Tolentino declarou que “Infinito Sul” era uma publicação não comercial, bancada por seu pai, distribuída apenas entre os membros da família e amigos íntimos. E admitiu que o livro era um plágio, o que faria de “Sete Claves” sua primeira obra de fato e inédita.
Em novembro de 1960, ele detalhou a origem do imbróglio ao jornal Tribuna da Imprensa. Pressionado a tomar um rumo na vida, disse à família que era um poeta. O pai então exigiu uma prova, mas Tolentino temia que sua poesia, que julgava muito radical, não fosse compreendida.
“Ou me afirmava de uma vez ou ia para o internato, e eu não entendia por que ir para o internato. Poeta é poeta, não precisa de cursos, aprende escrevendo e lendo. Apanhei os livros que me estavam à mão, abri página por página e fui copiando Celina Ferreira, Walmyr Ayala, Francisco Bittencourt, Afonso Félix de Sousa, Homero Freire e Oswaldo Carneiro Monteiro. Datilografei tudo e na manhã seguinte, 7 de outubro de 1957, disse a meu pai: ‘Eis aqui as minhas obras completas’.” O próprio título, “Infinito Sul”, era copiado de um outro livro.
Tolentino alegou que viajou depois disso. Na volta, o livro já estava impresso. Nas primeiras páginas constava que a obra vencera o prêmio Fabio Prado de São Paulo de 1957, o que se descobriu depois ser outra mentira.
Em setembro de 1961, ao menos juridicamente o impasse foi encerrado. A 11ª Vara Cível do Rio de Janeiro decidiu que o livro apresentado no concurso era inédito, posto que “Infinito Sul” era reconhecidamente um plágio. Tolentino pôde então receber seu prêmio.
Com o dinheiro, comprou um sítio e passou a criar galinhas. A Kombi com que vendia seus ovos também transportava as amigas escritoras Marly de Oliveira, Clarice Lispector e Nélida Piñon para visitá-lo. “Na horta, colhíamos frutas, legumes, ovos, enxotávamos as moscas. No alpendre, saboreávamos o café e as rosquinhas. Na hora do almoço, a comida mineira era de boa cepa”, relembrou Piñon em seu “Livros das Horas” (2012).
“Sete Claves”, a coletânea premiada no concurso, ao que consta de fato escrita por Tolentino, daria origem ao primeiro livro publicado por ele, “Anulação e Outros Reparos” (1963), com prefácio de Merquior, já então uma sensação na crítica literária.
A segunda edição da obra, lançada em 1998, teria, entre outras mudanças, o acréscimo do poema “Ao Divino Assassino”. Nele, o poeta se volta contra Deus pela morte prematura, em 1977, da atriz Anecy Rocha, irmã do cineasta Glauber Rocha, que Tolentino dizia ter sido sua namorada na juventude.
“Senhor, Senhor, o Teu anjo terrível / é sempre assim? Não tens um refratário / à hora do massacre – um mais sensível / que atrasasse o relógio, o calendário?”
O exílio
As lendas em torno de Bruno Tolentino começaram a ser criadas quando ele deixou o Brasil, em 1964. Era o ano do golpe militar, mas tudo indica que isso foi mera coincidência.
Não consta na biografia de Tolentino nenhuma paixão política ou de qualquer outra espécie capaz de movê-lo para além da poesia e da defesa da alta cultura —embora toda afirmação sobre o poeta seja temerosa. As fronteiras entre mito e verdade, fato e invenção, não são claras em sua vida. Mesmo pessoas próximas podem trazer informações contraditórias a seu respeito.
“Ele criou uma mitologia, e as pessoas embarcaram nisso. Isso pareceu uma estratégia. Isso escureceu a obra. Quando a figura do escritor vem para o primeiro plano, a primeira vítima é a literatura, está por baixo em todos os lugares. E a obra dele vale muito a pena”, afirma Alcir Pécora, professor de teoria literária da Unicamp, autor da apresentação da edição mais recente do livro “As Horas de Katharina”, pela editora É Realizações.
A informação recorrente é a de que Tolentino deixou o Brasil a convite do poeta italiano Giuseppe Ungaretti, morto em 1970. Um dos fundadores do movimento hermético, que renovaria a poesia italiana no pós-Segunda Guerra, ele vinha bastante ao Brasil, sobretudo ao Rio. Na Itália, Tolentino teria vivido no apartamento de Ungaretti.
Em texto na Ilustrada em 1994, Arnaldo Jabor afirmou que Tolentino dizia ter fugido do Festival de Besteiras que assolava o país, retomando a expressão criada pelo cronista Sérgio Porto. “Fugiu para proteger a poesia.”
Havia nele, escreveu Jabor, “uma espécie de segurança cruel que era diferente dos nossos nebulosos desejos literários, já hesitantes entre a poesia, a ‘revolução’ e o ‘grande público'”. “Ele só queria a poesia, numa obsessão fiel que impressionava, num garoto de 20 anos. Ele tinha uma erudição que parecia frescura, alguns viam um perigo de babaquice no excessivo amor à coisa pura da poesia.”
O segundo livro foi publicado em francês, “Le Vrai Le Vain” (1971), reunindo poemas na língua de Rimbaud, com quem se assemelha em vários aspectos biográficos, escritos entre 1965 e 1970, com tradução em português.
Em 1971, Tolentino lecionava na Universidade de Bristol, no sudoeste da Inglaterra. À época casado, conheceu um jovem estudante de teatro e espanhol, Simon Pringle, com quem começou a se relacionar. A homossexualidade, que levou Oscar Wilde para a cadeia em fins do século 19, havia sido descriminalizada apenas quatro anos antes na Inglaterra. O relacionamento entre pessoas do mesmo sexo, porém, estava restrito a maiores de 21 anos —Pringle tinha 19.
A diferença de idade e a lei, contudo, não impediram que ficassem juntos. Tolentino era à época um homem de traços finos, um maxilar proeminente que se casava bem com o nariz fino e triangular. Seria bem fotografado por qualquer diretor de cinema europeu. Pringle era um jovem de cabelos volumosos, traços fortes e porte atlético.
Diferenças culturais também não foram um entrave para o casal. Pringle não tinha qualquer interesse para além de esportes e barcos. Nada mais distante do aristocrático e erudito professor, a quem chamava de Lúcio. Na verdade, um preencheu as ausências do outro. Em 2015, Pringle publicou o livro “Das Booty – Bruno Tolentino, Candomblé, Tráfico e Poesia”, no qual narra a história dos dois.
A relação de ambos escandalizou a comunidade acadêmica e a sociedade de Bristol, levando-os a se mudar para Oxford. Lá, Pringle formou-se em literatura inglesa, e Tolentino dizia ter dado aulas e sucedido ao poeta Wystan Hugh Auden na direção da revista Oxford Poetry Now.
“Ele foi um grande amigo que me levou para o círculo de poetas contemporâneos de Oxford. Eu lhe devo uma tradução para o português”, disse ao jornal O Globo em julho de 1994.
Mais uma vez, não há evidências concretas dessa amizade com Auden ou outros grandes escritores de quem dizia ser próximo, como Samuel Beckett, a quem chamava de “irlandês sovina”. “Ele dizia que sucedeu o Auden, mas ninguém tem informação sobre isso. Fui buscar o nome dele na biografia do Auden e não encontrei”, afirma José Mario.
Pelo que se sabe, Tolentino criou a Oxford Poetry Now, espécie de revista acadêmica dedicada a poetas contemporâneos, cujo título foi inspirado na publicação da qual Auden foi um dos editores, Oxford Poetry, fundada em 1910. Eram, portanto, revistas diferentes.
“Tolentino inventou essa história de que trabalhou com Auden na revista. Ele costumava criar histórias sobre si mesmo. A Oxford Poetry Now foi fundada por ele, mantida com dinheiro que ganhou do tráfico”, conta o ensaísta Jessé de Almeida Primo, amigo do poeta nos últimos anos de vida dele.
A conversão de Damasco
A relação de Tolentino e Pringle, que descobriu não ter o mesmo talento poético do namorado, durou até 1978, quando os dois se envolveram numa malfadada tentativa de trazer do Marrocos uma volumosa carga de haxixe para vender em Londres (o barco, conta Pringle, quase afundou mais de uma vez). Mesmo falando, escrevendo e declamando poesia em seis idiomas, Tolentino havia entrado para o ilícito e lucrativo ramo do tráfico de drogas.
É difícil saber quanto a atividade ocupou sua vida. Em julho de 1987, afundado em dívidas, Tolentino consultou a vidente Lois Dewhurst Bull para saber se os astros lhe seriam favoráveis numa missão semelhante a de 1978: levar cocaína da Colômbia para a Inglaterra. A vidente lhe deu o mesmo conselho que qualquer pessoa sem poderes sobrenaturais lhe daria: que tomasse cuidado na alfândega e evitasse um flagrante internacional de drogas.
Os astros não lhe ajudaram. Segundo o jornal Oxford Mail, a vidente contou o plano a um oficial da alfândega que era seu amigo. Tolentino foi preso no aeroporto de Heathrow (Londres), em setembro de 1987, com cerca de um quilo de cocaína na maleta. Seu julgamento, iniciado em 13 de abril de 1988, durou três semanas. Foi condenado a 11 anos de prisão e levado ao presídio de Dartmoor, dedicado aos presos de periculosidade mediana.
O que os astros também não previram é que o período na cadeia, que seria depois narrado em “A Balada do Cárcere” (1996), livro de título quase homônimo ao de Oscar Wilde para uma experiência semelhante, seria também o período de sua conversão definitiva ao catolicismo e de reavaliação de sua própria poesia.
Tolentino deixava o profano para encontrar-se com o sagrado. “Sete anos foram necessários para diagnosticar o meu problema que não era religioso, não era uma questão de fé. O meu era um problema de comportamento moral. Diante de Cristo, você não pode mais trapacear, diante de uma presença não pode ficar ambíguo”, disse numa entrevista à revista Passos, em 2003.
“Prenderam um esteta e soltaram um poeta!”, escreveu em “A Balada do Cárcere”.
O regresso
Ao regressar ao Brasil, em 1993, Tolentino trouxe consigo em disquetes os livros que havia escrito ao longo de três décadas. Tinha agora os cabelos longos e uma barbicha, que o tornavam muito parecido a um membro da esquerda “gratiluz”.
De volta às origens, deu início à publicação de uma série de livros que constituem o cerne de sua obra. Em 1994 lança “As Horas de Katharina”. Considerava o livro, que ganhou o Prêmio Jabuti de poesia no ano seguinte, sua biografia espiritual.
“Ele se converte na prisão e narra esse episódio como um encontro com a obra de Santa Teresa D’Ávila. O livro não é biográfico, é uma metáfora dele desse processo”, afirma a professora Juliana P. Perez.
Doutora em literatura alemã e professora da USP, Perez é hoje uma das responsáveis pela preservação da obra de Tolentino. “A obra dele trata sempre o mesmo problema visto de outras formas: o espanto da vida, o mistério da vida se abrir ao infinito, a presença espantosa de Deus, a misericórdia, tudo o que você queira elaborar nesse sentido.”
Dividido em três partes, “As Horas de Katharina” narra uma transformação, do amor carnal ao divino, do universo laico ao místico. Alude à conversão do poeta, mas também à jornada interior de Santa Teresa D’Ávila, com a qual dialoga. O livro nasceu de sua paixão pela poeta austríaca Ingeborg Bachmann, que disse ser uma feira enrustida. O nome Katharina vem de uma prostituta que ele conheceu.
“Penso nele como o livro que sedimenta literariamente esse interesse místico, em que a estética e a mística se apresentam juntas e se colocam juntas”, analisa Alcir Pécora.
“As Horas de Katharina”, ele afirma, alude às “Moradas do Castelo Interior”, onde Santa Teresa D’Ávila “narra como se faz a passagem do universo laico para o universo místico e como isso se constrói dentro de si”, como é feita a descoberta do amor místico. “É um livro de passagem, que comenta a construção desse castelo interior.”
O poeta e tradutor Érico Nogueira, pesquisador da obra de Tolentino, considera o livro um verdadeiro divisor de águas da poesia brasileira. Os anos 1990, diz ele, representaram o período culminante da canonização de João Cabral de Melo Neto, que ao lado da poesia concreta dominava os estudos literários nas universidades. “Num clima poético como esse, dominado por palavras de ordem como ‘concretude’, ‘objetividade’, ‘concentração’ e ‘antilirismo’, a poesia filosófica e classicamente lírica de Tolentino soou como música nova aos ouvidos mais atentos.”
A primeira edição de “Katharina” foi publicada pela Companhia das Letras por indicação do crítico Antonio Candido, que no entanto não se atreveu a apresentar a editores “O Mundo como Ideia”, livro gestado por 40 anos, que sintetiza a obra de Tolentino.
“‘O Mundo como Ideia’ foi-me, estes anos todos, uma espécie de repositório oblíquo, o espelho convexo em que se movia inquisitivamente a sombra conceitual de cada metáfora que eu confiava ao papel. No livro-arena digladiava-me de encontro às minhas dúvidas mais íntimas, mais irredutíveis, com elas lutava por uma filosofia da forma que me permitisse exercer sem má consciência o grave, o difícil ofício da poiésis”, escreve no livro.
“Ele apresentou uma das versões para o Antonio Candido. O Candido nunca negou o talento do Tolentino. Nunca. Mas aí Candido chegou e falou assim: ‘Eu não posso pedir para publicar isso daqui. É um boing aterrizando no estádio de futebol e ninguém vai perceber isso daqui. Não tem como, não posso indicar a publicação desse livro'”, conta o escritor Martim Vasques da Cunha, que conviveu com Tolentino por cerca de uma década e hoje é um dos responsáveis pela preservação de sua obra.
“O Mundo como Ideia” foi publicado em 2002 pela editora Globo, dirigida então pelo jornalista Wagner Carelli. Assim como “Katharina”, ganhou o Prêmio Jabuti.
“‘O Mundo Como Ideia’ é a síntese da literatura brasileira, e também a de uma linhagem de poetas, nacionais e internacionais”, explica Vasques da Cunha.
“Em um desses acontecimentos únicos que demora 50 anos para ser devidamente compreendido, a poesia de Tolentino cria uma tradição própria, como qualquer grande poeta deveria fazer, que dialoga com o nosso ‘instinto de nacionalidade’, como, por exemplo, do Machado de Assis do volume ‘Ocidentais’, passando por Manuel Bandeira, Cecília Meireles e o Drummond de ‘Claro Enigma’, até a poesia mística de Jorge de Lima e Murilo Mendes; com a matriz portuguesa de Camões, Pessoa e Sophia de Mello Breyner Andresen; e sem nos esquecer da literatura universal, T.S. Eliot, Rilke, Yeats, Auden, Bishop, Baudelaire, Montale e Ungaretti.”
O paraíso perdido
A volta ao Brasil foi um choque tanto para Tolentino quanto para o país. “Quando chega, ele tinha uma experiência, não só de vida, mas experiência estética, poética, tão grande, tão aberta, em termos de horizonte, que o Brasil ficou pequeno demais para ele”, conta Vasques da Cunha.
Tolentino comprou brigas que ficaram notórias no meio intelectual da época. Disse, por exemplo, que a poesia concreta, “arrogante, elitista”, nem chegava a ser poesia de fato. Na famosa entrevista à Veja, falou que os irmãos Augusto e Haroldo de Campos não sabiam “inglês, nem alemão, nem grego”. “São péssimos poetas e péssimos escritores. Não sabem absolutamente nada do que alardeiam saber.”
O embate virulento com os concretistas começou em setembro de 1994, quando Tolentino atacou, no jornal O Estado de S. Paulo, uma tradução de Augusto de Campos para o poema “Praise for an Urn”, de Hart Crane, publicada na Folha.
“Crane anda para trás feito caranguejo”, o ferino artigo de Tolentino, afirma que “o augusto escriba sucumbe a um subparnasianismo como o autor do original abusado jamais sonhou ler nem sóbrio”. “Será que absolutamente tudo o que o grande americano fez em 140 palavras magistralmente agenciadas escapou a um tão vetusto e erudito inspetor de poesia?”, questionou.
Augusto respondeu na Folha uns dias depois. “Estou certo de que não mereço a infame tentativa de linchamento intelectual de que fui vítima e me sinto à vontade não só para repudiar esse injusto tratamento como para recusar-me a trocar argumentos com um mero arrivista, que em vez de ascender por seus próprios méritos, quer conquistar espaço e notoriedade a tamancadas, fazendo uso da tática surrada de provocar e difamar os seus pares mais conhecidos.”
A contenda gerou um manifesto em defesa de Augusto e contra Tolentino, assinado por artistas, intelectuais e acadêmicos, como Caetano Veloso, Julio Bressane, João Cabral de Melo Neto, Marilena Chauí e José Miguel Wisnik.
Tolentino não era de se intimidar e voltou à briga no livro “Os Sapos de Ontem” (1995), coletânea de textos, artigos e poemas originados da polêmica intelectual. “Haroldeco, o reizoca,/ vai nu e é feio paca/ logo atrás vai o outro babaca, o mano gugu”, escreveu em um dos poemas.
Em meio a tantos desafetos, Tolentino também conquistou uma legião de jovens admiradores ao voltar ao Brasil, nomes que até hoje propagam suas obras. Generoso, a muitos deles deu conselhos e auxílio na publicação.
Para o cineasta Josias Teófilo, que acaba de finalizar um filme sobre o poeta, “O Brasil como Ideia”, Tolentino “é a chave que conecta o Brasil do passado com o que o Brasil havia se tornado”. “Ele ficou muito incomodado com a situação cultural do país e começou a bater”, afirma. “Os aristocratas não se dobram.”
Sem Merquior, que morreu precocemente em 1991, o poeta teve como um de seus grandes amigos Olavo de Carvalho, que nessa fase também se firmava como ícone do pensamento conservador no país. Romperam a amizade, contudo, pouco antes da morte de Tolentino.
A última partida
A história de Bruno Tolentino foi não apenas a de um poeta e crítico cultural, mas também a de um peregrino. Essa longa viagem, para dentro e fora do Brasil, sempre em busca de algum lugar que lhe confortasse a alma inquieta, terminou em 27 de junho de 2007, aos 66 anos.
“Encontrei com ele, já no final, encolhidinho, e perguntei: ‘e aí Bruno?’, conta Vasques da Cunha. “Ele respondeu: ‘Está tudo uma merda, minha obra não serve para nada, fiz um monte de coisa errada”. Irritado com a autocomiseração do poeta, o amigo deu-lhe uma bronca para obrigá-lo a ver a si mesmo. “Foi a única vez que ele não abriu a boca quando eu falei alguma coisa.”
Tolentino passou os últimos dias internado no Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, em decorrência da Aids (ele havia se infectado em 1984). “Estava esquelético, pesando uns 30 quilos, mas vez ou outra lia algum livro de poesia, ouvia música erudita, principalmente Sibelius, sempre preocupado com outras pessoas, principalmente com o poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo, que estava internado no mesmo período e morreria poucos meses depois”, conta Jessé Almeida Primo.
A saúde debilitada não tirou a sua verve. “No primeiro dia em que o vi no hospital, ele estava lendo um opúsculo que publiquei sobre poesia. Elogiou o livro, mas ficou irritado com as várias dedicatórias que fiz. Ele olhou para mim e disparou: ‘Nunca mais faça isso! Isso é coisa de amador. Você não é amador! Parece Olavo de Carvalho, que agradece a todo mundo nos seus livros, agradece a fulano de tal que lhe deu a primeira bola e a outro que lhe ensinou a andar de bicicleta… Não repita isso!'”
“Ele se tornou muito mais sereno. Não sei se também pelo sofrimento da doença ou porque foi se reconciliando”, afirma Juliana Perez, uma das últimas pessoas a vê-lo. “Ele teve a vida que quis”, resumo José Mário Pereira.
E morrer, o que significava para Tolentino? “Morrer / é a grande embriaguez da alma, e ela anda à cata /
de se evadir, de ser o que deixa de ser. / Há uma estranha euforia na morte que não mata.”
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