Caso encerrado? Estudo descarta síndrome neurológica misteriosa

O que foi descrito como uma síndrome neurológica misteriosa de causa desconhecida na província canadense de Nova Brunswick é uma “tempestade perfeita” de “diagnóstico incorreto, registro equivocado e desinformação”, de acordo com o Dr. Anthony Lang, médico, professor, ex-diretor de neurologia da University of Toronto e autor sênior de um estudo transversal de 25 casos.

O estudo, publicado em maio no periódico JAMA Neurology, não encontrou “nenhuma evidência de existência de uma doença misteriosa não diagnosticada” em uma corte transversal de 222 casos notificados ao Serviço de Saúde Pública de Nova Brunswick. Em vez disso, os autores sugeriram que todos os pacientes tinham “outras doenças neurológicas diagnosticáveis ​​que poderiam se beneficiar de tratamento multidisciplinar e outros recursos”.

“Quando se começa a analisar as evidências, como nós fizemos, percebe-se que são um castelo de cartas”, afirmou ele ao Medscape.

“As consequências disso são imensas”, continuou. “Ser informado de que você tem uma doença misteriosa que pode ser fatal, uma doença progressiva e fatal com demência de progressão rápida é muito prejudicial; acreditamos realmente que os pacientes que receberam esse diagnóstico precisam de uma segunda opinião adequada de especialistas para, então, receberem o tratamento adequado quando possível.”

Baixa aceitação

Para serem elegíveis para o estudo, os pacientes de Nova Brunswick precisavam ter um diagnóstico provisório de síndrome neurológica misteriosa de causa desconhecida, doença priônica atípica, síndrome neurotóxica ou demência de progressão rápida. Os pacientes elegíveis foram convidados a se submeter a testes adicionais e avaliação clínica por um especialista independente.

Contudo, devido à controvérsia em torno do assunto, que gerou tensão política e desconfiança pública desde que os primeiros casos foram notificados em 2019, muitos pacientes recusaram (n = 52) ou não responderam (n = 42) ao convite.

Dentre os 105 pacientes avaliados originalmente pelo Dr. Alier Marrero, que é médico na clínica Moncton Interdisciplinary Neurodegenerative Diseases (MIND), no Canadá, criada para lidar com o problema, o consentimento (ou a renúncia ao consentimento) foi obtido em apenas 25 casos: 14 vivos e 11 falecidos.

Na coorte, a mediana de idade ao início dos sintomas foi de 55 anos, variando de 16 a 81 anos. Os dados das consultas iniciais e de acompanhamento dos pacientes foram analisados ​​juntamente com os resultados de uma segunda avaliação clínica independente por um especialista em distúrbios do movimento ou um neurologista especializado em cognição e comportamento.

Os exames adicionais envolveram avaliação eletrofisiológica para distúrbios do movimento, avaliação neurocognitiva completa, eletroencefalograma, cintilografia com transportador de dopamina e tomografia por emissão de pósitrons com fluodesoxiglicose (18F).

Para os pacientes falecidos, as necrópsias envolveram avaliação patológica como parte do Sistema Canadense de Vigilância para a Doença de Creutzfeldt-Jakob, com ampla coleta de amostras de tecido e análise imuno-histoquímica para doenças priônicas e outras demências.

Outros diagnósticos

Todos os 25 pacientes apresentavam “distúrbios neurológicos definíveis e diagnosticáveis ​​que realmente refutavam a ideia de uma doença cerebral misteriosa de causa desconhecida ou de uma síndrome neurológica misteriosa de causa desconhecida”, afirmou o Dr. Anthony. Os diagnósticos englobavam doença de Alzheimer, doença de Parkinson, paralisia supranuclear progressiva, outras doenças neurodegenerativas, distúrbio neurológico funcional, traumatismo cranioencefálico e sintomas persistentes pós-concussão, segundo ele.

“As imprecisões diagnósticas decorreram da interpretação incorreta da história (p. ex., diagnóstico excessivo de demência de progressão rápida), interpretação imprecisa de exames físicos (p. ex., mioclonia, ataxia) e confiança excessiva ou interpretação incorreta de exames complementares, como eletroencefalograma e tomografia computadorizada por emissão de fóton único [SPECT]”, descreveram os autores do estudo.

“Os registros não eram precisos”, afirmou o Dr. Anthony. “Disseram que o paciente tinha alucinações, que tinha isso e aquilo. Quando perguntamos ao paciente que retornou para uma segunda análise, ele relatou: ‘Não, eu nunca tive isso’, ou, ainda, havia registro de mioclonia, ataxia, demência, e então encontramos ausência de mioclonia, ataxia ou demência no exame físico.”

Os pesquisadores também usaram modelagem estatística para calcular a probabilidade de síndrome neurológica misteriosa de causa desconhecida nos outros casos não incluídos no estudo. “Perguntamos: bem, e os outros 200 pacientes notificados à saúde pública? Quais são as chances de algum deles ter uma doença neurológica misteriosa e não diagnosticada? As estatísticas apontaram chance de menos de um em 1 milhão de qualquer um dos pacientes restantes ter uma doença misteriosa”, explicou ele. “Portanto, estamos muito confiantes de que, mesmo com a amostra pequena, os números são muito, muito convincentes.”

Entretanto, o Dr. Alier contestou os achados publicados no JAMA. Em 2020 ele manifestou pela primeira vez às autoridades de saúde provinciais sua preocupação com o crescente número de casos atípicos de demência de progressão rápida na província, com vários casos de doença de Creutzfeldt-Jakob.

Ele foi inicialmente contratado como um dos médicos que acompanhavam os pacientes na clínica MIND, mas foi demitido em 2022 por motivos de desempenho e transferido para o Dr. Georges-L.-Dumont University Hospital Centre, no Canadá. Aos seus pacientes foi dada a opção de acompanhá-lo ou serem atendidos por um novo médico da MIND.

Uma revisão inicial de saúde pública e uma investigação epidemiológica (separada) dos primeiros 48 casos concluíram que os pacientes não compartilhavam sintomas ou síndromes comuns. “Embora alguns dos casos tivessem quadros com sintomas incomuns, não pareciam corresponder a uma doença comum de etiologia desconhecida e faltavam evidências de um conjunto de síndromes neurológicas de causa desconhecida”, concluiu, de acordo com um site do governo provincial criado para atualizar o público sobre o assunto.

A análise foi encerrada, mas, após uma eleição provincial em outubro de 2024, o governo recém-eleito a reabriu. Embora as autoridades de saúde pública tenham registrado oficialmente 222 casos, o Dr. Alier, que foi punido por registros e relatórios inadequados, afirmou ao Medscape que já avaliou mais de 500 pacientes neste grupo.

“Estou chocado que uma investigação paralela com um pequeno número de pacientes tenha sido aparentemente conduzida por tanto tempo sem o nosso conhecimento ou o conhecimento dos pacientes e seus familiares”, disse ele. “Discordo profundamente das conclusões do estudo e tenho muitas dúvidas sobre os métodos [utilizados] e o conteúdo [da pesquisa].”

Não estou convencido

O diretor clínico de saúde de Nova Brunswick, Dr. Yves Leger, que é médico, enfatizou em um comunicado que os achados do JAMA “não alteram a intenção do meu gabinete de concluir sua própria investigação sobre casos de doenças neurológicas não diagnosticadas em Nova Brunswick. O trabalho sobre essa questão está em andamento desde o início de 2023, com o apoio da Agência de Saúde Pública do Canadá”.

“Há perguntas sem respostas demais para que possamos interromper o trabalho que a agência está realizando para fornecer aos pacientes — e a potenciais futuros pacientes — as informações de que necessitam sobre a causa dessas doenças”, disse à imprensa a primeira-ministra provinciana de Nova Brunswick, Susan Holt, referindo-se aos achados do JAMA.

“A pedido do Serviço de Saúde Pública de Nova Brunswick, a Agência de Saúde Pública do Canadá também concordou em conduzir uma revisão científica das conclusões da pesquisa assim que o órgão concluir sua análise e interpretação”, disse um porta-voz da agência federal.

“Confio que o atual processo de pesquisa científica multidisciplinar independente e a extensa análise de arquivos em andamento por nossas autoridades de saúde pública possam fornecer respostas adequadas às nossas comunidades”, afirmou o Dr. Alier. “Esperamos que esse processo inclua não apenas exames abrangentes adicionais para pacientes, mas também análises de amostras de água, alimentos, solo e ar nas regiões afetadas, bem como suporte adicional aos pacientes e medidas eficazes de prevenção e tratamento.”

Porém, a Dra. Connie Marras, Ph.D., neurologista da University of Toronto e especialista em distúrbios do movimento com experiência em epidemiologia, questionou a necessidade de investigações adicionais.

“É prematuro começar a analisar quaisquer agentes ambientais que possam ser responsáveis ​​por isso antes de termos evidências de que há de fato um agrupamento epidemiológico de casos, e ambas as análises realizadas até o momento não sustentam isso”, afirmou ela ao Medscape. “As evidências reunidas até o momento sugerem fortemente que não há um diagnóstico único e subjacente para esses indivíduos”, disse a Dra. Connie, que não participou de nenhuma das análises ou investigações.

Se as evidências atuais forem insuficientes para convencer a saúde pública e a população, o próximo passo ideal, do ponto de vista epidemiológico, seria testar uma amostra maior e aleatória de pacientes, previu ela. As limitações do estudo do JAMA contemplavam número amostral pequeno e um potencial viés de seleção.

“Se as pessoas supostamente afetadas estiverem dispostas a se submeter a uma avaliação mais aprofundada, seu envolvimento nisso será fundamental, para o bem de todos.”

O estudo “ressalta a importância fundamental da coleta sistemática de dados e da avaliação objetiva (exame) em casos de síndromes neurológicas com causas desconhecidas”, escreveu em uma publicação no X o Dr. Michael Okun, médico, professor de neurologia e diretor do Norman Fixel Institute for Neurological Diseases da University of Florida Health em Gainesville, nos Estados Unidos.

“Concordo plenamente com os autores que esses tipos de casos ‘neurológicos’ desconhecidos são ‘distúrbios neurológicos complexos [que] se beneficiarão de uma segunda avaliação independente e/ou subespecializada e requerem suporte multidisciplinar durante toda a jornada diagnóstica’. Pergunte-se sempre: ‘Você vê o que quer ver? Você está sendo rigoroso e o mais imparcial possível? Você está aberto a revisar suas impressões iniciais? Uma segunda análise pode melhorar a precisão e os desfechos em relação ao diagnóstico?’. Esses autores estão compartilhando dados concretos para nos ajudar a compreender um fenômeno. Devemos sempre buscar clareza.”

Não houve relato de fontes de financiamento ao estudo. O Dr. Anthony Lang informou receber honorários pessoais de AbbVie, AFFiRis, Alector, Amylyx Pharmaceuticals, APRINOIA Therapeutics, Biogen, BioAdvance, Biohaven, BioVie, BlueRock, Bristol Myers Squibb, Cavion, CoA Therapeutics, Denali, Janssen Pharmaceuticals, Jazz Pharmaceuticals, Lilly, Novartis, Paladin, Pharma Two B Ltd., PsychoGenics, Roche, Sun Pharma e UCB (sem relação com o trabalho submetido), e do litígio relacionado ao herbicida paraquate e à doença de Parkinson (para os demandantes). Os Drs. Alier Marrero e Connie Marras informaram não ter conflitos de interesses relevantes.

Este conteúdo foi traduzido do Medscape

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