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Recentemente ouvi um ilustre político português falando sobre a importância de o Estado promover o bem aos portugueses originários. Uma querida amiga ficou enojada ao ouvir isso. O neologismo não me fez muito sentido e, por isso, já nem sei o que sentir. A ideia desse termo corrompe a expressão “povos originários” que se refere àqueles primeiros habitantes estabelecidos em um território antes de um processo de colonização ou da formação de um Estado nacional. Quem eram os portugueses antes de haver Portugal? Ao que saiba, eram galegos ou árabes. Falar em portugueses originários parece-me uma expressão algo parente por linhas muito tortas do temido “voltem para a vossa terra!” que eu já ouvi. E eu tenho voltado sim, não por obediência que a vida me ensinou a ser rebelde à estupidez, mas porque no Brasil tenho a minha casa. Fico pensando, com frequência, que nos elos entre Brasil e Portugal que redimensionam pensamentos em voga na mentalidade de alguns – felizmente apenas alguns – tristemente cidadãos.
A formação escolar brasileira inclui uma ampla série de informações sobre o sistema escravista que formatou a base de nossa economia e sociedade e cujos reflexos ainda hoje se fazem sentir. A escravidão, primeiro dos povos originários e, a seguir, de africanos, moldou uma página terrível da história brasileira. Alguns estudos apontam que foram trazidos da África para o Brasil cerca de 5,8 milhões de indivíduos escravizados entre os séculos XVI e XIX. Isso corresponde a cerca de 40% de todos os escravizados trazidos para o continente. Em Portugal, contudo, igualmente recorreu à escravização de indivíduos africanos. E se a história brasileira sobre a escravidão até o momento precisa de muitos estudos, a portuguesa é, por incrível que possa parecer, ainda menos conhecida.
Acredita-se que a primeira leva de africanos escravizados chegou a Portugal em 1441, após uma expedição à Mauritânia. Esses escravos continuavam a mão de obra escrava muçulmana, herdeira da reconquista da Península Ibérica, que se dá a par do surgimento do Reino de Portugal, no século XII. A prática da escravidão é, contudo, ainda anterior, remontando ao próprio Império Romano, passando, claro, pela Idade Média. Portugal foi o primeiro país a comercializar internacionalmente escravizados africanos e, nem todos, tinham o Brasil como destino. Alguns deles iam para a Espanha, para a Itália e uns tantos outros ficavam mesmo em Portugal.
Um Estado com mentalidade imperialista que depois cai vítima de um regime autoritário escondeu jeitosamente a sua história africana. Contudo, ela existiu… Como há poucos estudos, essa realidade ainda está por ser totalmente compreendida. Por exemplo, discute-se o que faziam os escravizados africanos em Portugal. Alguns estudos apontam que se limitavam a tarefas domésticas. Pesquisas mais recentes, porém, identificam escravizados africanos nas mais variadas atividades econômicas portuguesas: comércio, agricultura, pecuária, transporte, indústria e, sim, também no trabalho doméstico. Ter um escravizado era um símbolo de prosperidade. O clero, a nobreza e a burguesia utilizaram-se de seus serviços. Na corte, alguns serviram como pajens e músicos.
O número total de escravizados africanos em Portugal é desconhecido. As cifras variam muito e vão de 11 mil a 800 mil. Alguns estudos mais equilibrados defendem que, conforme o período, a população escravizada africana em Lisboa oscilou entre 5% e 10% da população total, ficando em cerca de 1% no restante do país. Sabe-se que os reis gostavam de ter bobos da corte de origem africana. Dona Maria I (1734-1816), conhecida pela sua piedade religiosa, teve, por algum tempo, uma coleção particular de humanos que considerava exóticos, que incluía, entre outros, africanos de baixa estatura. Eram outros tempos, outros modos de pensar…
Em 1761, o Marques de Pombal proibiu a entrada de novos escravos. Não obstante o mérito de sua decisão, isso não acabou com a escravidão portuguesa. Isso porque, dentre outros motivos, os nascidos de mãe escrava continuavam escravos. As elites brasileira, escravocratas, empurraram a promulgação de uma lei parecida, a Lei Eusébio de Queirós, apenas para 1850. Esta lei marca o fim do tráfico transatlântico de escravos para o Brasil, mas tampouco significa o fim da escravização. Na época, dizia-se que o Brasil iria falir sem a mão de obra escrava que era uma ruína não só para o Brasil, como para os próprios africanos. José de Alencar, importante político e escritor dos trópicos, por exemplo, defendia que o melhor que poderia ocorrer a um africano seria ser escravizado no Brasil, pois desse modo ele entraria em contato com uma civilização superior e com a fé cristã, dois valores muito caros ao pensamento eurocêntrico do século XIX que era fértil no Brasil. Em ambos os países a entrada ilegal de escravizados continuou.
Em 1783, o Marques de Pombal aprovou uma nova lei, a do Ventre Livre que serviu de base para a lei brasileira com o mesmo nome, aprovada apenas em 1871. Ela tornava livres os filhos de escravizados e que aqueles cujas bisavós já eram escravas poderiam ser libertados. Nunca houve em Portugal uma Lei Áurea, como no Brasil, que oficialmente – em 1888 – terminou com a escravização. A ideia era a de esperar uma geração para finalmente ter essa triste página apagada. E, é claro, não descontentar aqueles que investiram o seu capital adquirindo escravos que, se o pensamento de Alencar reverberava em Portugal, deveriam ainda estar felizes e gratos por serem escravos, sim, mas civilizados e cristãos. Já o disse, eram outros tempos.
Acontece que no meio do caminho surgiu uma pedra: a independência do Brasil, em 1822, e muitos que estavam nas terras brasileira, aproveitaram a sua cidadania portuguesa para irem para Portugal, pelos mais variados motivos. Eles levaram os seus escravizados junto, pois claro, que afinal, custavam dinheiro… Triste ironia! E o bondoso (ou não?) rei português abriu uma concessão permitindo que continuassem na condição de escravizados.
Sou português por parte de minha mãe conimbricense e espanhol por parte de pai, nascido no Brasil porque meu pai precisava casar-se logo com a sua amada antes de voltar para a sua terrinha galega. Afinal, também eram outros tempos e moças de família apenas casavam virgens. Hoje vivo aqui, no Brasil. Talvez seja isso o que diluiu o meu sangue: as muitas águas tropicais, as caipirinhas… ah! mas também o vinho do Douro e as sangrias em Lisboa ao pôr do sol… Não sei! De qualquer modo, eu tomaria muito cuidadinho antes de sair por aí falando em “portugueses originários” e “voltem para a vossa terra!”. Todos nós, portugueses nascidos em Portugal ou não, certamente somos uma mistura de culturas e de origens. Eu torço para ter sangue africano na minha ancestralidade, além da celta. Lamento muito o momento difícil de qualquer povo que desconhecendo o seu passado olha para a frente alimentando-se de ficções.
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