Impacto da tecnologia blockchain no Direito Público

A Administração Pública brasileira enfrenta desafios históricos relacionados à eficiência, transparência e segurança na gestão de dados e processos. Neste contexto, a tecnologia blockchain emerge como ferramenta potencialmente transformadora para o Direito Público, oferecendo mecanismos inovadores que podem redesenhar a estrutura operacional do setor governamental. O blockchain, originalmente desenvolvido como base para criptomoedas, consiste em um livro-razão distribuído que registra transações em uma rede descentralizada, criando um sistema onde as informações são interligadas por criptografia avançada. Sua arquitetura única proporciona características fundamentais como imutabilidade, transparência e segurança, que se alinham diretamente aos princípios basilares do Direito Administrativo brasileiro. Este estudo se justifica pela crescente exigência social por maior transparência, eficiência e integridade nas informações governamentais.  

Em uma sociedade que demanda cada vez mais o uso apropriado de recursos públicos e a entrega de serviços de qualidade, torna-se essencial investigar soluções inovadoras capazes de enfrentar os desafios presentes e futuros do setor público. A adoção dessas inovações possui o potencial de promover avanços significativos na Administração Pública, além de reduzir burocracias e custos operacionais. O estudo do blockchain e suas possíveis aplicações no âmbito público é, portanto, primordial para o progresso da gestão governamental e aperfeiçoamento das relações entre governo e sociedade. O objetivo principal deste trabalho é compreender os impactos mais significativos da tecnologia blockchain como instrumento para aprimorar a governança de dados e a integridade das informações no direito público brasileiro, analisando suas implicações jurídicas, aplicações práticas e desafios para implementação. 

A tecnologia blockchain constitui um sistema de registro distribuído que armazena informações em blocos criptografados e interligados sequencialmente Diferentemente das bases de dados tradicionais, no blockchain as informações são descentralizadas, ou seja, distribuídas entre todos os participantes da rede, eliminando a necessidade de uma autoridade central para validar as transações. Uma plataforma blockchain facilita a execução segura de transações em um ambiente descentralizado e auditável, incluindo normalmente o envio de informações que são validadas por consenso entre os participantes da rede. Essa arquitetura confere ao sistema características essenciais que o tornam particularmente relevante para o Direito Público: 

  1. Imutabilidade: Uma vez registrada, a informação não pode ser alterada ou excluída sem deixar rastros evidentes, pois o hash de uma transação é vinculado aos hashes de todas as transações anteriores; 
  2. Transparência: Todas as transações são visíveis para os participantes autorizados da rede, permitindo verificação e auditoria em tempo real; 
  3. Segurança: A combinação de criptografia avançada e o mecanismo de consenso entre os participantes torna o sistema altamente resistente a fraudes; 
  4. Descentralização: O fato de que vários participantes da rede mantêm seu próprio registro atualizado das transações aumenta a transparência e reduz as oportunidades de manipulação indevida.

As características intrínsecas da tecnologia blockchain apresentam notável alinhamento com os princípios fundamentais do Direito Administrativo brasileiro, particularmente aqueles elencados no art. 37 da CF/88: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. 

No âmbito da publicidade administrativa, o blockchain potencializa a transparência ao garantir que os registros sejam acessíveis, verificáveis e inalteráveis, fortalecendo o direito fundamental de acesso à informação. Quanto à eficiência, a tecnologia permite a automação de processos por meio de contratos inteligentes (smart contracts), reduzindo a burocracia e acelerando procedimentos administrativos. 

No que tange à moralidade e legalidade, o blockchain funciona como mecanismo preventivo e detectivo no combate à fraude e à corrupção. A utilização das tecnologias distribuídas permite a criação de trilhas de auditoria para rastrear operações governamentais, além de favorecer a abertura de dados. Assim, tentativas de adulteração seriam imediatamente perceptíveis para os participantes da rede, dificultando a ocorrência de delitos e comportamentos antiéticos. 

Uma das aplicações mais promissoras do blockchain no Direito Público é na área de licitações e contratos administrativos. A tecnologia pode transformar todo o ciclo de contratação pública, desde a publicação do edital até a execução e fiscalização dos contratos, aumentando a transparência e reduzindo oportunidades de fraude.  

No governo de São Paulo, por exemplo, existem iniciativas para o uso do blockchain no acompanhamento de contratos públicos e para garantir a integridade das licitações. A possibilidade de rastrear cada etapa do processo licitatório, desde a publicação do edital até a execução do contrato, reduz as chances de irregularidades e aumenta a confiança na gestão dos recursos públicos. 

Os smart contracts podem ser programados para automatizar diversas etapas do processo licitatório, como a verificação de documentos, a análise de propostas e até mesmo o pagamento aos fornecedores mediante o cumprimento de condições preestabelecidas. Isso não apenas agiliza os procedimentos, mas também reduz a discricionariedade administrativa e o risco de favorecimentos indevidos. 

Outra aplicação relevante é o uso do blockchain para a emissão e o rastreamento de certificados acadêmicos e profissionais. Com um registro único e seguro, as instituições podem validar diplomas rapidamente, sem depender de consultas a bancos de dados separados. Esse mesmo princípio se aplica a outros documentos públicos, como certidões, alvarás e licenças. 

Na área de saúde, o blockchain tem sido testado para o controle de dados de vacinação, onde informações como data da aplicação, lote e local ficam registradas em uma cadeia de blocos acessível por órgãos autorizados, facilitando a verificação de carteiras de vacinação e evitando fraudes. Estes exemplos demonstram como a tecnologia pode contribuir para a desburocratização e modernização da Administração Pública, facilitando a prestação de serviços aos cidadãos enquanto mantém a confiabilidade e autenticidade das informações. 

O gerenciamento de recursos públicos é uma área em que soluções blockchain podem ajudar a minimizar fraudes e aumentar a transparência e a responsabilidade dos entes envolvidos. A tecnologia permite o rastreamento em tempo real de repasses financeiros entre diferentes esferas governamentais, bem como o monitoramento da aplicação dos recursos. 

Os smart contracts podem ser programados para garantir que repasses de recursos só ocorram após o cumprimento de determinadas condições, aumentando a transparência na execução orçamentária. Este mecanismo é particularmente relevante para transferências condicionadas, como nos casos de convênios entre entes federativos ou repasses a organizações da sociedade civil. A implementação de soluções blockchain para o controle orçamentário e financeiro pode fortalecer o cumprimento da lei de responsabilidade fiscal e ampliar a efetividade dos mecanismos de fiscalização e prestação de contas, contribuindo para uma gestão fiscal mais responsável e transparente. 

O Brasil já apresenta casos concretos de aplicação do blockchain na gestão pública. Um dos destaques é a RBB – Rede Blockchain Brasil, criada em 2022 pelo BNDES e pelo TCU. A iniciativa visa integrar diferentes órgãos governamentais em uma única rede descentralizada, permitindo o compartilhamento seguro de dados. 

Além da RBB, o Serpro – Serviço Federal de Processamento de Dados, desenvolveu sistemas como o B-Connect, utilizado para troca de informações entre aduanas do Mercosul, e o B-Cadastros, que possibilita o compartilhamento de bases de dados da Receita Federal com Estados e municípios.  

Esses exemplos mostram como a tecnologia pode ser aplicada em diferentes níveis de governo, facilitando a interoperabilidade entre sistemas que, tradicionalmente, operavam de forma isolada. Essas iniciativas demonstram que o blockchain não é uma promessa distante, mas uma tecnologia já em implementação no setor público brasileiro, com resultados concretos em termos de eficiência, segurança e transparência. 

No Brasil, as primeiras instituições a criarem normas relacionadas ao blockchain são vinculadas ao SFN – Sistema Financeiro Nacional, além da RFB – Receita Federal do Brasil, que é autoridade tributária nacional.  

O foco desses normativos estava inicialmente na prevenção à lavagem de dinheiro e à evasão fiscal. Posteriormente, diversas organizações positivaram o uso de tecnologias DLT como solução de tecnologia da informação a ser utilizada internamente em seus ambientes computacionais para prover serviços. O decreto 10.332, de 28/4/20, que estabelece a Estratégia de Governo Digital, também inclui disposições que abrem caminho para a implementação de soluções blockchain no setor público. O acórdão 1.613/20 do plenário do TCU representa um marco importante ao reconhecer a tecnologia blockchain/DLT como controle preventivo e detectivo no combate à fraude e à corrupção. Este reconhecimento formal por uma instituição de controle externo sinaliza a crescente aceitação e valorização da tecnologia no âmbito do Direito Público brasileiro.  

Apesar desses avanços, ainda não existe um marco regulatório abrangente e específico para o uso do blockchain no setor público. Esta lacuna normativa pode representar um desafio para a expansão das aplicações da tecnologia, demandando esforços para desenvolver um arcabouço jurídico adequado que proporcione segurança jurídica sem inibir a inovação. 

A implementação do blockchain no Direito Público traz importantes implicações para a segurança jurídica das relações entre Estado e cidadãos. Ao criar registros imutáveis e verificáveis, a tecnologia reduz incertezas e contestações sobre a autenticidade e integridade de documentos e transações governamentais. 

No contexto do Direito Administrativo, o blockchain pode fortalecer a presunção de legitimidade dos atos administrativos, uma vez que todo o processo de formação e execução desses atos torna-se transparente e auditável. Isso é particularmente relevante em um cenário de crescente judicialização das políticas públicas e questionamento dos atos da administração. Entretanto, a descentralização característica do blockchain também traz desafios para determinação de responsabilidades em caso de falhas ou irregularidades. Os modelos tradicionais de responsabilidade administrativa, baseados em hierarquias bem definidas, precisam ser repensados em sistemas onde a validação de informações ocorre por consenso entre diversos participantes. 

A adoção do blockchain no setor público demanda uma análise cuidadosa de suas implicações para a proteção de dados pessoais, especialmente no contexto da LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados. A característica de imutabilidade dos registros em blockchain pode entrar em conflito com certos direitos dos titulares, como o direito à retificação e à exclusão de dados. 

Uma abordagem para mitigar este conflito é a implementação de blockchains permissionados (privados), onde apenas entidades autorizadas podem participar da rede e validar transações. Além disso, técnicas como o armazenamento off-chain de dados sensíveis, mantendo apenas hashes criptográficos na blockchain, podem ajudar a conciliar a imutabilidade da tecnologia com as exigências de proteção de dados. 

Por outro lado, o blockchain também pode ser uma ferramenta para fortalecer o controle dos cidadãos sobre seus próprios dados, permitindo o rastreamento preciso de quem acessou suas informações e para quais finalidades. Isso está alinhado com o princípio da transparência estabelecido na LGPD e pode contribuir para uma relação mais equilibrada entre cidadãos e Administração Pública no que tange aos dados pessoais. 

A tecnologia blockchain apresenta potencial transformador para o Direito Público brasileiro, oferecendo soluções inovadoras para desafios históricos da Administração Pública. Sua arquitetura descentralizada, transparente e imutável alinha-se aos princípios constitucionais da Administração Pública e pode contribuir significativamente para uma gestão governamental mais eficiente, transparente e confiável.  

As experiências já implementadas no Brasil, tanto na esfera federal quanto em níveis estadual e municipal, evidenciam benefícios concretos que o blockchain pode proporcionar para diversos aspectos da gestão pública. A agilidade na execução de processos, a confiabilidade das informações registradas e a economia gerada pela automação de tarefas administrativas são vantagens observadas nas iniciativas existentes. 

Entretanto, a plena realização do potencial do blockchain no Direito Público demanda o enfrentamento de diversos desafios, especialmente no âmbito jurídico-normativo. A criação de um marco regulatório adequado, que proporcione segurança jurídica sem inibir a inovação, é fundamental para a consolidação da tecnologia como ferramenta de modernização administrativa. 

Na perspectiva do Direito Administrativo, o blockchain representa uma oportunidade de concretização mais efetiva de princípios fundamentais, como publicidade, eficiência, moralidade e legalidade. Ao mesmo tempo, impõe reflexões importantes sobre conceitos tradicionais, como fé pública, presunção de legitimidade e discricionariedade administrativa. 

Embora desafios como a integração com sistemas legados e a capacitação de servidores ainda existam, o avanço das iniciativas brasileiras demonstra que o caminho está sendo trilhado. O blockchain, quando aplicado com critérios bem definidos e alinhado às necessidades específicas de cada órgão, pode se tornar um aliado importante para a eficiência administrativa e a gestão responsável dos recursos públicos. 

Por fim, é importante ressaltar que a tecnologia blockchain não é uma solução universal para todos os problemas da Administração Pública. Sua implementação deve ser criteriosa, considerando aspectos como custo-benefício, impacto ambiental, inclusão digital e adequação às particularidades de cada contexto administrativo. Quando implementada com planejamento adequado e visão estratégica, a tecnologia blockchain pode contribuir significativamente para construção de uma Administração Pública mais moderna, eficiente e alinhada às expectativas da sociedade contemporânea.

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1 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 37. Modelo Inicial, 4 jun. 1998.  

2 BRASIL. Decreto nº 10.332, de 28 de abril de 2020. Institui a Estratégia de Governo Digital para o período de 2020 a 2022. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 29 abr. 2020. 

3 BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 ago. 2018. 

4 TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (Brasil). TCU avalia tecnologias da informação blockchain e livros-razão distribuídos para o setor público. Portal TCU, 24 jun. 2020.  

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