Entenda como funciona o ‘cérebro’ digital da Fórmula 1 e o que é feito com os bilhões de dados gerados por corrida
A alguns metros do vaivém de mecânicos e engenheiros no paddock, uma tenda branca e discreta esconde o “cérebro” digital da Fórmula 1. O acesso é restrito e, lá dentro, é proibido filmar ou fotografar. É nesse espaço itinerante que a F1 coordena as transmissões ao vivo das corridas para o mundo e coleta e processa bilhões de dados gerados a cada Grande Prêmio.
Chamado de ETC (sigla, em inglês, para “Centro Técnico do Evento”), o local é responsável pela “orquestração digital” do evento. O GLOBO visitou o centro na última sexta-feira, quando o circo da F1 já estava em Ímola, na Itália, para a corrida de hoje.
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Cheio de equipamentos que viajam de país em país com a equipe técnica da categoria, o ETC captura os sinais das dezenas de câmeras espalhadas pelos circuitos, incluindo imagens aéreas por drones e câmeras instaladas nos carros.
Na sala escura, repleta de telas que exibem cada detalhe da corrida, rodam também os sistemas que registram dados dos carros, das comunicações por rádio e de sensores que são espalhados ao longo dos circuitos. As informações são processadas por sistemas de inteligência artificial que, nos bastidores, ajudam a prever estratégias, gerar gráficos de performance e até a gerar clipes de momentos-chave para as redes sociais da Fórmula 1.
— Os dados são essenciais para a narrativa do esporte e para engajar as pessoas — avalia David King, diretor de tecnologia digital da F1, responsável por criar uma estrutura na categoria dedicada às operações digitais.
O executivo enfatiza que, além de transmissões e coleta de dados estratégicos, o espaço é também um ponto de partida para as histórias que a categoria quer contar. Isso inclui novos formatos voltados para uma nova legião de fãs, mais atraída por bastidores e vídeos curtos do que exatamente pelo que acontece nas pistas.
— Temos muitos fãs novos chegando por causa do Drive to Survive (série documental da Netlix sobre F1), o que é ótimo. Mas nem todos querem passar duas horas no domingo assistindo à corrida. Alguns mais antigos não necessariamente concordam com o que essa nova audiência está trazendo, mas o importante é que todos possam curtir o esporte — diz King.
Para agradar a esse novo público, a F 1 tem investido em cortes próprios nas redes sociais, serviço de streaming e aplicativo oficial, com análises. Um dos recursos é o F1 Insights, que transforma dados em gráficos exibidos ao vivo, como previsões de pit stop, comparações entre pilotos e até desempenho de pneus. Uma ferramenta chamada “Time Lost” (tempo perdido, em português) mostra o tipo de erro cometido pelos pilotos e o tempo perdido em cada volta.
A digitalização tem avançado também longe das câmeras, com sistemas de IA que ajudam as equipes a analisar bilhões de dados gerados em cada corrida. Hoje, um carro de F1 carrega em média 300 sensores nas corridas, que geram 1,1 milhão de pontos de dados por segundo.
Um dos marcos da virada de tecnologia na categoria foi em 2018, quando a organização transferiu sua infraestrutura de dados para a nuvem. A engenheira e estrategista Ruth Buscombe, que trabalhou em escuderias como Ferrari, Haas e Sauber e hoje é comentarista da F1 TV, lembra que, antes, simulações precisavam ser rodadas em computadores transportados fisicamente para cada GP. Já a transcrição das mensagens de rádio entre engenheiros e pilotos era feita manualmente, um processo hoje automatizado por IA.
— As equipes agora usam inteligência artificial para analisar o tom de voz dos engenheiros de corrida quando falam com os pilotos rivais, a fim de identificar padrões e reconhecer se estão, por exemplo, falando em código — conta.
Desde a primeira corrida, em 1950, as equipes de F1 tomam decisões baseadas em números. Mas, com o tempo, essa lógica ficou mais sofisticada. Hoje, a cada fim de semana de corrida, uma equipe gera, em média, 1 terabyte de dados por carro. É um volume tão alto que supera, com folga, a quantidade de informações que o Telescópio Espacial Hubble, da Nasa, transmite à Terra ao longo de uma semana inteira.
Nos últimos anos, esse uso intensivo de dados passou a influenciar mudanças no regulamento. Em 2022, os carros de F1 ganharam um novo desenho aerodinâmico para facilitar ultrapassagens. A mudança foi baseada em simulações com IA que mostraram que o modelo anterior gerava um fluxo de ar que dificultava a manobra.
Principal liga de basquete do mundo, a NBA lançou no ano passado uma ferramenta de IA que personaliza as transmissões. Na NFL, ela é usada para reduzir risco de lesões. Mas nenhuma modalidade lida com tantos dados quanto a Fórmula 1, diz Julie Souza, diretora global de esportes da AWS, responsável por iniciativas de inovação com dados em grandes ligas esportivas. Segundo ela, uma partida de futebol gera cerca de 3,6 milhões de pontos de dados por jogo. No hóquei, são mais de um milhão de pontos, enquanto a F1 produz mais que isso em alguns segundos.
No entanto, apesar de toda a inteligência artificial envolvida, a Fórmula 1, afirma Ruth Buscombe, continua sendo, acima de tudo, um esporte humano:
— A gente poderia ter corridas de robô, mas o que move a paixão por esportes é a nossa humanidade. Quando combinamos experiência humana com números, temos o melhor dos dois mundos.
*A repórter viaja a convite da AWS
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