Os dias em que conheci Pepe Mujica. “Gostaria de morrer como os animais nas montanhas. Naturalmente”
Num recanto modesto de Montevideu, entre flores, livros e silêncio, viveu José “Pepe” Mujica — o ex-presidente que trocou o palácio por uma quinta e o protocolo por ares de liberdade. Em 2016, fui visitá-lo. Voltei com a certeza de que há líderes que se medem pelo tempo e palavras que oferecem, não pelo poder que têm. Pepe não mudou o mundo tanto quanto queria, mas terá inspirado mais do que imaginava. Mujica morreu esta terça-feira aos 89 anos
Tenho adiado escrever este artigo desde 2016. Era uma jornalista principiante num programa de voluntariado no Uruguai, a viver na pequena aldeia de San Antonio, a algumas horas de Montevideu. A minha principal tarefa era ensinar inglês e português, mas acabei por fazer muito mais do que isso.
Todas as manhãs, andava de bicicleta – emprestada pela família com quem estava a viver – por uma estrada de terra batida até uma escola afastada da aldeia. Nas redondezas havia algumas escolas rurais para crianças vindas de pequenas povoações e quintas. Algumas tinham mais de vinte alunos, outras nem dez. E nenhuma delas, nem sequer a da aldeia, tinha alguma vez recebido a visita de um estrangeiro.
Durante quatro meses, eu e outros voluntários demos aulas de línguas, fizemos apresentações sobre Portugal e ouvimos as crianças a falar sobre o Uruguai. Pela primeira vez, ouvi uma outra versão da História. Fizemos projetos de comunicação, oficinas de jornalismo, atividades de fotojornalismo, exposições… Ensinámos o malhão e as marchas de Lisboa e aprendemos danças uruguaias em troca para o final do ano letivo. Viajámos pelo país, até Montevideu, Piriápolis, Colonia del Sacramento, Maldonado, Punta del Este e Cabo Polonio. Fiz vinte e dois anos com uma festa surpresa no jardim de infância e jantar com pizza a la parrilla (pizza na grelha). Acabei, até, por trabalhar numa produção cinematográfica internacional. Tudo isso completamente imprevisto. Mas havia algo que planeei desde o início — conhecer e entrevistar José “Pepe” Mujica.
Começou muito antes de chegar ao Uruguai. Escrevi-o na candidatura e mencionei-o durante a entrevista. Alguns amigos riram-se: “É como ires aos EUA e dizeres que queres conhecer o Obama”. Mujica já era bem conhecido na altura. Tinha feito manchetes internacionais como o “presidente mais pobre do mundo”. Um presidente que recusava viver no palácio presidencial, que preferia conduzir o seu velho carocha azul em vez de usar o carro oficial, e que doava a maior parte do seu salário à caridade.
No dia do meu aniversário, a minha vizinha Susi, que gere a farmácia da aldeia com o marido Gustavo, e o Club de Niños (Clube das Crianças, uma rede nacional de centros socioeducativos), outro dos lugares onde fazíamos atividades, vieram buscar-me e deram-me o meu primeiro presente: o livro Una oveja al poder (Uma ovelha no poder). Escrito por dois jornalistas uruguaios que acompanharam Mujica antes, durante e depois da presidência, era uma perspetiva aprofundada sobre ele.
A passagem que mais recordo fala da sua viagem a Moscovo, durante a União Soviética, enquanto membro de uma juventude política. “As suas ideias já eram de esquerda e, com a experiência de Cuba, começara a sentir certa simpatia pelo comunismo”, escrevem os autores. Mas o Mujica de vinte e poucos anos percebeu que “o comunismo não era o caminho”. De volta ao Uruguai, deixou o Partido Nacional e mergulhou nos livros. Começou a misturar ideologias e a valorizar os matizes, contam no capítulo “O anarquista”.
Mujica não foi a primeira figura de relevo que conheci, mas foi o primeiro ex-presidente que entrevistei – e foi, provavelmente, a entrevista mais informal que já fiz. O seu mandato tinha terminado há menos de um ano e estávamos na sua chacra (quinta) quando apareceu, ligeiramente maldisposto. O trator tinha avariado, “outra vez”. Convidou-nos a sentar num banco colorido feito com tampas de garrafas de plástico por pacientes de um hospital psiquiátrico, onde muitos líderes e jornalistas já tinham estado antes de nós.
Esse foi o nosso segundo encontro. O primeiro foi, na verdade, cerca de um mês antes, no último dia do programa. Estávamos no autocarro de regresso de um fim de semana na vila costeira de Valizas, quando recebemos a notícia de que Mujica nos receberia no dia seguinte no Palácio Legislativo, onde era senador.
Não me lembro de muito, exceto de estarmos todos muito entusiasmados e Mujica bastante irritado, porque se votava o orçamento nacional e as coisas não estavam a correr bem. Não estava muito falador, por isso, no momento seguinte, já eu me aproximava da sua mulher, Lucía Topolansky — também ela ex-guerrilheira e senadora — para lhe dizer que alguns de nós iam viajar pela América do Sul e regressar ao Uruguai antes de voltarem à Europa. Haveria possibilidade de nos voltarmos a encontrar numa ocasião menos atribulada?
Ela não se mostrou muito entusiasmada, mas também não disse que não. Em vez disso, deu-me o número de telefone e, um mês depois, liguei.
— Quarta-feira às dez.
— Ok. Qual é a morada?
Ela riu-se.
— Passa a chamada a outra pessoa.
Acordámos às três da manhã, apanhámos o autocarro para Montevideu e, de lá, a diretora da ONG com quem tínhamos estado a colaborar deu-nos boleia na sua carrinha. Seguimos as indicações num bilhete manuscrito e no mapa que a Susi ou o Gustavo desenharam depois da chamada, que guardo até hoje. Quando as indicações terminaram, parámos e fizemos o que nos tinham dito: Perdón, la chacra de Pepe Mujica? (Desculpe, a quinta de Pepe Mujica?)
A chacra (quinta) de Mujica fica no Rincón del Cerro, nos arredores de Montevideu, mas para um estrangeiro parece no meio do nada. Quase não há sinais, nem muitas casas, nem grande movimento. Enquanto seguíamos por uma estrada de terra, chegámos a uma cancela com um sinal de “STOP” e um contentor ao lado. Um homem saiu para nos receber e pediu que esperássemos. Enquanto isso, a Catarina, uma colega voluntária, recorda-se de ver sair uma equipa da Al Jazeera; o Nicolás, amigo uruguaio, lembra-se de ver Yamandú Orsi, o novo presidente do Uruguai.
“Vivi uma vida intensa e feliz. Amo a vida. Não tenho vontade de partir. Não nego a vida apesar das quedas e dos fracassos. Mais! Aprendi que os fracassos ensinam muito mais do que os triunfos. E derrotados não são os que perdem, mas os que desistem”. Uma lei, diz Mujica, para tudo na vida — no trabalho, no amor e na política. “O mais importante é saber perder. Ganhar, qualquer um sabe!”.
Mujica teve uma vida como poucos. Nascido numa família rural pobre, perdeu o pai ainda em criança. “Lembro-me que o cabelo já lhe começava a cair. E cortava a barba rente. Mas, enfim, partiu cedo demais e a minha mãe foi mãe e pai”.
Não se lembra ao certo de quando se juntou ao movimento armado de esquerda Tupamaro, mas não esquece o tempo de prisão. A primeira vez foi em 1964, mais de oito meses por roubo para financiar a guerrilha. Foi também a primeira vez que foi torturado. Em 1970, foi baleado seis vezes por resistir à prisão e esteve à beira da morte. Em 1972, voltou a ser preso. Fugiu das duas primeiras vezes, mas em agosto foi recapturado, dessa vez por quase treze anos. Era considerado o líder do movimento, juntamente com mais oito homens, e, em grupos de três, foram rodando entre prisões militares, em regime de total isolamento e em condições desumanas — frequentemente em buracos no chão — como retrata o filme La Noche de Doce Años (Uma Noite de 12 Anos). Mujica começou a falar com formigas e outros insetos, fez amizade com um sapo e acabou no Hospital Militar, onde um psiquiatra recomendou que o deixassem ler. E leu, muito.
Em março de 1985, terminou a ditadura militar e Mujica foi libertado. Entrou diretamente na política e começou a reconstruir o Movimento de Libertação Nacional-Tupamaro como partido político, que se tornaria o Movimento de Participação Popular, inserido na coligação Frente Ampla. Desde os primeiros discursos, Mujica recusou falar em vingança. Preferia falar em perdão. “Não sigo o caminho do ódio, nem mesmo para com quem nos fez mal. O ódio não constrói”.
Nove anos depois da libertação, Mujica foi o primeiro Tupamaro eleito deputado e, cinco anos mais tarde, tornou-se senador. A sua popularidade cresceu à medida que visitava todos os recantos do interior do país. Como ministro da Pecuária, Agricultura e Pesca, aumentou a exportação de carne uruguaia e reduziu o preço do corte mais popular no país, que ficou conhecido como el asado del Pepe (o churrasco do Pepe).
Em 2010, como a mãe previra enquanto ele estava preso, Mujica foi eleito o 40.º presidente do Uruguai. Durante o seu mandato, o país tornou-se um dos primeiros da América Latina a legalizar o aborto e o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e o primeiro no mundo a legalizar o comércio de marijuana. Uma revolução social, dirão alguns, liderada por um homem que defendia a igualdade e o anticonsumismo.
“Uma das causas da frustração contemporânea é que este modelo de civilização assenta num aumento constante das relações de mercado. Precisa desesperadamente que as pessoas comprem coisas e passem a maior parte da sua vida a tentar arranjar meios para comprar esta cascata de coisas que tem de ser constantemente renovada. Por isso, é um epicentro de progresso, de registo de novas patentes, de inovação, da obsolescência calculada dos produtos industriais que são fabricados e da criação constante de novas necessidades utilizando todo um aparato de coisas que influenciam as decisões das pessoas. Como isto nunca acaba, as pessoas correm atrás e o passeio moderno é ir aos centros comerciais” – ri-se – “É ridículo! Isto faz com que não demos importância às pequenas grandes coisas da nossa vida que compõem aquilo a que podemos chamar o sentimento de felicidade, que está ligado às relações humanas, ao tempo que podemos passar com os amigos, às horas que podemos dedicar aos nossos filhos, às relações com o nosso companheiro ou companheira. Estas são coisas muito antigas, muito eternas, que no fundo é o que satisfaz a nossa intimidade.”
Mas quanto mais Mujica criticava o capitalismo nos seus discursos e entrevistas, mais o Uruguai parecia tornar-se mais consumidor. A sua própria austeridade e forma de vida humilde não pareciam inspirar ação ou não conseguiam competir com a globalização.
“A minha geração foi excessivamente mecanicista. Estávamos convencidos de que ao mudar as relações de produção e distribuição mudaríamos a humanidade. Acho que estávamos errados, mas há um problema cultural que é decisivo e, se não houver mudança cultural, a mudança material por si só não garante nada. Não se trata de propor uma Arcádia feliz ou que o homem tenha de renunciar à tecnologia – nada disso! Trata-se de sermos donos do nosso próprio destino e isso significa gerir a maior margem de tempo possível deste milagre que é estar vivo”. Liberdade é o tempo passado a fazer o que se gosta, e Mujica nunca deixou de cultivar a terra.
– E o tempo que passa na política, é tempo bem passado?
– Não sei se é bem passado. Se gostas, se te motiva, então é bem passado porque és feliz. E se não, se é uma obrigação, é uma perda de tempo.
Mujica não fez tudo o que queria e prometeu. Além de ter criado a Universidade Tecnológica do Uruguai (UTEC), a segunda universidade pública e gratuita do país com centros no interior, ficou aquém de uma das suas prioridades – melhorar a educação pública. “O nosso país enfrenta uma contradição, uma direção que tem pouco em conta a disseminação dos ofícios, do trabalho físico, do trabalho manual, como se separasse o campo da cultura do campo do trabalho. Acho que isso tem sido negativo, muito negativo. E hoje o povo uruguaio está a dar-nos uma mensagem. Por exemplo, as inscrições para a UTU estão sempre esgotadas. As pessoas às vezes vão dois dias antes para poder inscrever os filhos, e os miúdos que vão para o liceu desistem em massa”.
A UTU significa Universidade do Trabalho do Uruguai e é uma antiga instituição de ensino público com uma abordagem prática. Também fizemos algumas atividades na UTU e no liceu da nossa aldeia e, de facto, a primeira era menos tradicional e mais prática. “Sempre foi gerida com o critério de ‘se as crianças chumbam no liceu, devem ir para a UTU’, como se fosse uma segunda opção. Achamos que tem de ser exatamente o contrário. Depois, se o rapaz quiser continuar outra coisa, tem tempo para estudar, mas é bom aprender questões teóricas e exercê-las com questões práticas porque isso contribui para desenvolver o bom senso na vida”. A UTU tem centros espalhados por todo o país que cobrem diferentes níveis, desde o ensino básico até ao equivalente a uma licenciatura. “Achamos que a UTU devia ser muito mais massificada e que o espírito experimental devia manter-se permanentemente.” Talvez por isso, depois do fim da sua presidência, Mujica abriu uma UTU agrícola, junto à sua casa.
– Dizemos que Portugal é o país dos doutores. Toda a gente tem de ser doutor, engenheiro…
– Sim, sim, também temos essa praga.
Apesar de ser celebrado internacionalmente, Mujica não é consensual no Uruguai. Lembro-me de uma conversa em que uma pessoa elogiava o trabalho que ele fez ao tentar revelar informações e localizar os restos mortais dos desaparecidos durante a ditadura. Este é um tema muito sensível em muitos países da América do Sul, mas no Uruguai foram encontrados muito poucos por falta de documentação e pelo silêncio dos militares. Mas também me recordo de uma pessoa que dizia que um ex-membro de um grupo guerrilheiro que matou dezenas de pessoas nunca deveria ser presidente de um país – independentemente de ele próprio ter matado ou não. Enquanto alguns admiram a sua liberdade de pensamento – e de expressão – e a sua humildade campestre, outros veem-no como demasiado rude e ocasionalmente mal-educado. Mujica também foi criticado pela sua governação por vezes caótica e falta de resultados concretos. Outros acusam-no de demagogia. E, depois, há o dinheiro. Alguns simplesmente não acreditam que ele tenha doado a maior parte do seu salário.
– Alguma vez pensou em desistir? Na prisão, no parlamento, na presidência…?
– Sim, claro. Há sempre um momento em baixo. Pensa-se em tudo, mas… Não melhoramos a presidir; pelo contrário, é uma fuga. Acho que melhoramos a lutar. E a luta é de natureza coletiva e nunca conseguimos triunfar.
– Sente que melhorou com o tempo?
– Acho que a espécie humana está a melhorar pagando o preço de muitas derrotas. Consegues subir três degraus e depois perdes dois, mas fica um. Todas as coisas no progresso humano foram assim. A lei das oito horas, quando foi proposta, parecia impossível. A reforma também. Todos os bens públicos de que podemos usufruir, que existem hoje, são fruto de tudo o que aconteceu. E seguramente sonhámos mais e quisemos muito mais. Mas as nossas posições nunca podem triunfar totalmente, porque as opostas também não triunfam. Avançamos com contradições entre crise e derrota.
Mujica responde ao Eduardo, um colega voluntário que partilha com ele a paixão pela filosofia, olhando em frente para o vazio, como se alternasse os pensamentos entre o passado e o futuro. De vez em quando foca-se em nós, no fim do seu raciocínio, e olha para baixo, para os seus sapatos velhos de trabalhar a terra, com buracos nos dedos grandes, para ouvir a próxima pergunta. Acredita em Deus?
“Se esse senhor tão importante existe, seguramente não come à mesa dos pobres. Respeito muito as pessoas que têm fé porque as religiões têm um papel nobre ajudando a morrer bem. Mas acho que a morte é desintegração. É voltar ao mundo mineral e, dessa forma, recomeçar. Para viver não preciso de acreditar noutro mundo, mas respeito muito quem acredita. Eu ainda não consegui. Agora… O homem é um animal religioso porque é um animal utópico. Não há utopia maior do que uma religião. Em todo o lado na Terra, em todas as épocas, o homem acredita em algo. Então chega-se à conclusão de que isso é uma necessidade do ser humano. Por isso vejo essas coisas com muito respeito e com muita seriedade. E numa cama de hospital público percebi o valor que tinham as pessoas que acreditavam quando estavam perante a morte. Por isso não considero que seja um tema secundário. Mas para além da razão… A razão é um chão do conhecimento humano, mas não é o único.”
Apesar do seu ateísmo e valorização da razão, Mujica acredita profundamente na intuição. “Algumas das decisões mais importantes que tomámos na nossa vida têm pouco a ver com a racionalidade. Porque é que te apaixonaste numa esquina?”. Por esta altura já devem ter notado a camisa desabotoada e o boné da empresa de telecomunicações uruguaia que usa nas fotos. Afinal, interrompemo-lo a meio do trabalho no campo. Mas o seu traje também foi tema de muitas manchetes enquanto presidente. Sandálias numa reunião governamental, raramente fato, nunca gravata. Mujica tornou-se uma personagem à sua maneira, um intelectual com o estilo e as palavras de um camponês. Naquele momento, parecia também um avô de 80 anos a partilhar conselhos de vida, embora eu não tenha a certeza de quanta paciência ainda tinha para nós.
“Não há objetividade na política porque vens de uma certa classe social, de um certo lugar. Tens uma posição no mundo que vai determinar, que percebas ou não, a tua própria forma de ver as coisas. Não há neutralidade. Tens uma visão da vida como uma engrenagem que está a ser construída em que uma peça encaixa na outra” – e mostra-me com as mãos sujas de terra as peças da engrenagem a encaixar – “mas não é assim. A vida não é uma caixa de velocidades. A vida é uma fricção permanente, cheia de contradições, de forças que são contraditórias entre si e que ainda por cima lutam para existir. Uma sociedade é um caos, um belo caos. E viver é aprender a viver dentro do caos. É mais como uma rua em Roma. Os italianos a conduzir são uma coisa caótica. Pois, isso é a vida. Um romano vai a conduzir o carro e vê uma rapariga bonita e para o carro e atrás dele há um monte de gente e ele vai meter conversa com ela e as pessoas a apitar e a apitar… Isso é Roma” – ri-se – “Isso é a vida.”
A vida, diz, não é uma fotografia, mas um filme. Um processo que está constantemente e permanentemente a mudar e muita coisa mudou desde o dia em que me sentei a falar com Mujica. Na quarta-feira, 20 de janeiro de 2016, o mundo era ligeiramente diferente do de hoje. Não havia guerra na Ucrânia nem em Gaza. O principal problema da Europa era a crise dos refugiados, enquanto o autoproclamado Estado Islâmico ameaçava controlar a Síria. A presidente brasileira Dilma Rousseff ainda não tinha sido destituída e Donald Trump estava a meses de ser eleito presidente dos Estados Unidos pela primeira vez. Javier Milei, na Argentina, estava ainda mais distante.
“O mundo precisa de algumas medidas de acordo global que deveriam ser tomadas e que devem ser cumpridas em todo o lado na Terra porque a formação do Estado-nação que temos na cabeça não nos permite raciocinar como espécie, raciocinamos em vão como país e, portanto, somos impotentes para enfrentar alguns dos problemas que estão aí e que nos podem fazer sucumbir.”
Apesar do estilo e forma de estar, Mujica fazia parte de uma elite global. Durante a sua presidência forjou amizades com líderes como Lula da Silva e Hugo Chávez. A sua relação com a vizinha Cristina Kirchner teve altos e baixos. Encontrou-se algumas vezes com Barack Obama. Apertou a mão a Vladimir Putin. E, como sempre, não tem papas na língua.
“Não podemos dizer que os pobres estão em África. Não, os africanos são os nossos pobres porque vão cair na Europa. Está tudo interligado e tudo cada vez mais interdependente. O mundo não pode funcionar em vasos estanques. Além disso, as medidas nacionais não são suficientes. Nós não construímos uma central de carvão aqui, mas a China abre uma todos os meses. Por isso, a mudança climática não é só o problema de um país. E bem, dizem-te para competir, mas quantas horas vamos trabalhar? Porque quem trabalha dez ou doze horas vai competir melhor do que quem trabalha seis. Tem de haver acordos globais para organizar todas estas coisas. Ou uma moeda que é como uma pastilha. Negociamos numa moeda e nem sequer podemos aumentar o valor dessa moeda. Como se tivéssemos uma fita métrica de pastilha que se estica, encolhe, um disparate! Essas são as coisas que travam a humanidade.”
– Estamos longe disso?
– Sim, estamos muito longe. Por agora.
Neste momento, Mujica já não precisava de muitas perguntas para continuar a falar. Como se soubesse o que procurávamos ou como se estivesse numa missão de transmitir uma mensagem. A maioria das respostas e reflexões já as tinha encontrado em entrevistas anteriores a jornalistas nacionais e internacionais. Continuei a reconhecê-las, anos depois, no filme Human, de Yann Arthus-Bertrand, e no El Pepe: Una Vida Suprema, de Emir Kusturica. Ao revisitar esta entrevista, não consigo deixar de sorrir perante o sentido de previsão de algumas delas.
– A Europa está fechada em si mesma. Tem problemas digestivos. E está a perder o jogo. Não se dá conta, mas está a perder o jogo. A Europa é velha. A cabeça é velha. O problema do mundo hoje é que estão a criar-se novos centros e que temos de nos adaptar a um mundo que, pelo menos, parece que vai ser multipolar, com o peso crescente da Ásia a tornar-se mais forte e decisivo. E esta visão eurocêntrica da cultura ocidental está a ir pelo cano abaixo porque a Ásia vai ter cada vez mais peso. E vai ser difícil para a Europa adaptar-se a isso.
– Os que estão no topo percebem isso?
– Não. Acho que percebem em termos de conhecimento, mas não percebem do ponto de vista prático. Bem, mas já não é um problema do meu tempo. É do vosso.
Demorei quase dez anos a escrever este artigo para depois o fazer em poucas semanas. Na altura não sabia bem o que fazer com isto nem como ou onde propor. Estava feliz apenas pelo simples facto de ter falado com ele. Mas no dia em que Pepe Mujica anunciou que o cancro se tinha espalhado e pediu para não ser incomodado, sentei-me e comecei a escrever. Pepe Mujica está a morrer e não voltarei a entrevistá-lo, por isso quero publicar isto antes de ele partir.
– Tem medo da morte?
[8 segundos de silêncio]
– Gostaria de morrer como os animais nas montanhas. Naturalmente.
– Preocupa-se com a imagem que vai ficar de si depois da sua morte?
– Não. Vaidade das vaidades. Depois da morte, os mais próximos sentem a tua falta durante algum tempo e depois esquecem-se. E a vida continua, felizmente.
Fim.
Texto publicado originalmente em inglês a 9 de março de 2025 no substack My Home On My Back.
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