O número significativo de ex-presidentes presos na América do Sul ilustra uma Justiça mais eficiente, o que é bom, mas também mais passível de uso político, o que pode ser preocupante, dizem especialistas.
Levantamento feito pela Folha mostrou que, nos últimos 24 anos, ao menos 20 ex-presidentes da América do Sul foram presos. A maioria dos casos se relaciona com corrupção; em seguida, vêm ataques à democracia.
O Brasil exemplifica a tendência, com três ocupantes do Palácio do Planalto presos neste século por causa de alegação de corrupção: Lula (PT), em 2018, Michel Temer (MDB), em 2019, e Fernando Collor, neste ano.
Jair Bolsonaro (PL) também pode ser preso se condenado em julgamento com previsão de ocorrer este ano. Ele é exemplo do segundo motivo que mais ensejou prisões de ex-mandatários na região: ataque à democracia.
Para Ricardo Gueiros, professor de direito da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo), o número de ex-presidentes presos na América do Sul chama a atenção e pode ser olhado a partir de duas perspectivas.
Uma mostraria que as instituições de controle estão funcionando. “Antigamente, presidente era intocável. Hoje, não é mais tão fácil escapar da Justiça só porque ocupou o cargo mais alto. Isso é um avanço democrático —o tal do ‘ninguém está acima da lei’”, afirma.
O mesmo fenômeno, entretanto, poderia ser olhado por uma perspectiva “mais preocupante”, aponta Gueiros.
“Em alguns casos, principalmente onde o sistema político é muito instável, o Judiciário acaba virando ator político. A Justiça passa a ser usada como arma para tirar adversários do jogo. O que deveria ser imparcial vira parte da disputa. A gente viu isso muito no Brasil com a Lava Jato e também em países como Bolívia e Equador, onde há acusações de lawfare [uso da Justiça para perseguição política]”, diz.
O fenômeno, portanto, mostraria a fragilidade das instituições na região, marcada por partidos personalistas, financiamento político opaco e a tentação de usar o poder público para benefício próprio, aponta Gueiros.
“E aí, quando o jogo vira, quem sai é investigado e quem entra tenta se blindar. É um retrato da nossa democracia ainda em construção —com avanços importantes, mas também muitos riscos”, diz.
Para Flavia Loss de Araujo, doutora pela USP e professora de relações internacionais do Instituto Mauá de Tecnologia, as diversas prisões na América do Sul apontam para a corrupção como um problema com peso significativo para as sociedades da região.
Ela fala em um recente incremento de ferramentas jurídicas nesses países para combater o problema, potencializado, em sua interpretação, pela concentração de poder nos mandatários que governam em sistemas presidencialistas.
“Geralmente esses presidentes passam por um processo de investigação depois que saíram do poder, que é quando eles perdem força, e muitas vezes isso é usado como ferramenta política. Aí começa o problema, pois pode haver uma espécie de justiçamento”, afirma.
Para Lucas Damasceno, especialista em política latino-americana e doutor em relações internacionais pela USP, as prisões de ex-presidentes da América do Sul não indicam um cenário animador, pois apontam mais para uma cooptação da Justiça do que para seu fortalecimento.
Ele interpreta que a recorrência dos casos de prisão pode gerar instabilidade na democracia desses países.
“O Equador é um exemplo. O país criou a tradição política de prender ex-presidentes e chegou a prever legalmente que presidentes não podem sair do país por um ano depois de deixar o cargo, porque a expectativa é que sejam investigados e presos. Tem um sistema político que não consegue produzir estabilidade há quase 20 anos”, diz.
Por isso, afirma Damasceno, o ideal não é prender ex-presidentes, mas construir um sistema político que impeça abusos de poder de forma prévia.
Ele afirma que o melhor passo para isso é revisar a maneira como estão construídas as instituições, a fim de impedir a excessiva concentração de poder e que pessoas possam usar de meios ilegais para obter vantagem pessoal ou tentar corromper a democracia.
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