Jornal da Unesp | Mudanças climáticas podem reduzir em mais de 80% as áreas adequadas ao cultivo da erva-mate na América do Sul, aponta estudo
Marcos do Amaral Jorge, Isis Bianco, Mariana Montenegro
Um dos principais símbolos alimentícios do Cone Sul do continente americano é a erva-mate. Seu consumo remonta aos povos nativos, como os Guarani, e é difundido nos estados do Sul e do Centro do Brasil, além de países como a Argentina, o Uruguai e o Paraguai. O Brasil é o maior produtor mundial da planta, com quase 750 mil toneladas em 2023, segundo dados do IBGE. Porém, um estudo conduzido por pesquisadores da Unesp mostra que o processo de mudanças climáticas poderá alterar, nas próximas décadas, as condições para o cultivo da erva-mate em todo o continente, e que os produtores devem se preparar desde já para essa nova realidade.
Embora não seja uma commodity de demanda global como o café, a erva-mate possui grande relevância social para a América do Sul, servindo de matéria-prima para o preparo de bebidas tradicionais, como o chimarrão e o tereré, e contribuindo para a subsistência de populações agrícolas regionais. Também é empregada pelas indústrias alimentícia, farmacêutica e de cosméticos devido às suas propriedades nutricionais e medicinais. A América Latina, por suas suas condições climáticas, concentra a produção mundial da planta, e quase 50% dela vem do Brasil. Em segundo lugar está a Argentina, com 42%, e em terceiro o Paraguai, com 9%, segundo dados de 2020 da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO).
Especialista na área de agrometeorologia, Glauco de Souza Rolim, docente do Departamento de Ciências Exatas da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp, é um dos pesquisadores responsáveis pelo novo estudo, que envolveu também profissionais do Instituto Federal do Sul de Minas (IFSULDEMINAS) e do Instituto Federal do Mato Grosso do Sul (IFMS). O grupo examinou o zoneamento climático da erva-mate (Ilex paraguariensis) e projetou os efeitos das mudanças climáticas na disponibilidade de áreas aptas para o cultivo da planta nas próximas décadas.
Os resultados foram preocupantes. De acordo com o estudo, quando se considera o pior cenário climático no final do século, apresentado no último relatório do IPCC, a área apta para o cultivo nos quatro principais países produtores da erva — Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai — será reduzida drasticamente, passando de 12,25% para apenas 2,2% do território somado dos quatro. Os dados foram apresentados em um artigo publicado na International Journal of Biometeorology.
Não que este problema ameace apenas a erva-mate. No ano passado, Rolim e outros colaboradores se dedicaram à produção do café, apontando a possibilidade de perda de mais de 50% das áreas propícias para o cultivo do grão até 2080. “O grande desafio do século 21 é a adaptação da agricultura às mudanças climáticas”, diz Rolim. “O panorama mundial é desafiador e o homem ainda está fazendo pouco a respeito. O que vemos, de forma geral, é a diminuição das áreas produtivas, efeitos climáticos extremos adversos, tendência de aumento na temperatura e diminuição das chuvas”, afirma.
O zoneamento climático é um instrumento relativamente comum na produção agrícola, capaz de ajudar na identificação de regiões e de períodos do ano favoráveis para o plantio, nos quais o risco de perdas causadas por eventos climáticos adversos é menor. Para fazer o levantamento da erva-mate, os pesquisadores utilizam dados climáticos como temperatura, índices de precipitação, informações sobre o perfil do solo e levantamentos das características fisiológicas da planta.
A produtividade e a qualidade da erva-mate estão intimamente ligadas às condições climáticas locais. Estudos apontam que a planta se desenvolve melhor em regiões com temperaturas médias anuais entre 15°C e 22°C, e precipitação pluvial anual superior a 1.200 mm. “A erva-mate é uma planta tropical, portanto é muito sensível, por exemplo, a geadas. Durante o seu ciclo produtivo, se houver um único dia com geada, pode ocorrer uma quebra considerável na produção”, explica Rolim. “Ao mesmo tempo, temperaturas muito elevadas reduzem a taxa de desenvolvimento da planta.”
As projeções climáticas usadas pelos pesquisadores no artigo tomaram como referência o modelo CMIP6, instrumento que serviu de base para o último relatório do IPCC e que fornece estimativas das mudanças climáticas para quatro períodos (2021-2040, 2041-2060, 2061-2081 e 2081-2100) e em quatro cenários diferentes (um otimista, dois intermediários e um pessimista). Esses cenários variam de acordo com as estimativas sobre a capacidade da sociedade de adotar medidas para, efetivamente, reduzir a quantidade de gases de efeito estufa na atmosfera.
Ao realizar o zoneamento climático atual dos principais países produtores da erva-mate, o estudo constatou que apenas 12,2% da área total dos quatro países é propícia para o cultivo da planta atualmente (veja abaixo). Isso corresponde a aproximadamente 1,5 milhão de km², com destaque para a região Sul do Brasil, cuja área é quase integralmente (96,7%) favorável para essa cultura.
Ao analisarem a aptidão das áreas para o cultivo da planta ao longo das próximas décadas, os estudiosos identificaram uma queda gradual. Para 2040, estimou-se uma redução da área apta de 12,2% para 8,8% no cenário mais otimista e 8,3% no cenário mais pessimista. Ao final do século, entretanto, a projeção do zoneamento climático indica que apenas 2,2% da área será apta para o cultivo da erva-mate. A região Sul do país, especificamente, verá a área apropriada para o cultivo da matéria-prima do chimarrão reduzir de 96,7% para apenas 13,9%.
Excluindo-se o Brasil para concentrar a análise apenas nos demais países sul-americanos produtores da erva, o Uruguai é o único que ainda manteria áreas adequadas para o plantio, ainda que sua disponibilidade diminua dos atuais 81,17% da área do país para 47,4% no final do século, considerando o cenário mais pessimista (veja abaixo).

Na avaliação de Rolim, essa redução na área ideal de plantio deve ter como uma de suas consequências o aumento do custo de produção da erva-mate. “Os produtores possivelmente terão que fazer maior uso da irrigação, mas essa tecnologia encarece a produção”, analisa o pesquisador da Unesp. “Outra alternativa seria aumentar a densidade do plantio, colocando mais plantas em menos espaço, de forma a criar um microclima que possa aliviar as altas temperaturas. Mesmo assim, mais plantas em um mesmo espaço demandariam ainda mais irrigação”, conclui.
Perenidade da erva-mate favorece sobrevivência
A erva-mate, por ser um vegetal de perfil perene, é capaz de estender suas raízes de forma mais profunda. Essa característica lhe confere maior resistência às condições climáticas desfavoráveis. “A erva-mate é um arbusto que se desenvolve ao longo dos anos, com crescimento e aprofundamento do seu sistema radicular. Logo, ela tem uma resistência muito maior que a soja, por exemplo, que é uma planta pequena, mas menor do que o café. Mesmo assim, sob altas temperaturas, a erva-mate pode até não morrer, mas produzirá menos”, explica o docente.
Rolim afirma que já esperava uma queda na área apta para o plantio, a exemplo do que foi observado no estudo anterior, no qual realizou projeções de zoneamento climático para o café. Entretanto, os resultados em relação à erva-mate trouxeram uma surpresa extra. “O que temos visto em outros trabalhos é que, embora a área favorável para determinada cultura diminua, ela costuma migrar para outras regiões. A área apta muda de lugar no mapa, mas numericamente acaba sem muita diferença. Neste trabalho, o que chamou a atenção foi que as áreas favoráveis não tiveram uma migração. Vimos, basicamente, uma redução mesmo”, afirma.
Na perspectiva do pesquisador de Jaboticabal, diante do cenário de mudanças climáticas no Brasil e da necessidade de adaptação da produção agrícola, é importante que, além do investimento em irrigação, o país produza pesquisas específicas para cada região e cultura. Tais pesquisas podem investigar, por exemplo, o impacto da redução dos espaçamentos entre as plantas. Rolim também destaca que os produtores devem evitar áreas de baixadas. “São áreas mais propensas à ocorrência de geadas, e todos os cenários projetados pelo IPCC favorecem a ocorrência de geadas”, ressalta.
O docente ressalta ainda que, embora já exista a percepção de que eventos extremos estejam ocorrendo no Brasil e no mundo, ainda estamos no começo do processo. “Esses episódios recentes, de longas estiagens e chuvas abundantes concentradas em um curto intervalo, são pequenas evidências de que o clima está gradativamente mudando. Quando os estudos geram esses cenários, conseguimos observar tanto o início quanto o final do processo. Por isso, essas pesquisas são tão impactantes”, diz.
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