Brasil foi pioneiro em norma para prisioneiros de guerra – 03/05/2025 – Poder

O Brasil criou em 1865 um conjunto de normas para regular o tratamento dos combatentes inimigos capturados na Guerra do Paraguai (1864-1870). O documento antecipou em 64 anos a adoção da Convenção de Genebra que, só em 1929, regularia o tema nos conflitos internacionais.

O feito pioneiro, que fará 160 anos em dezembro 2025, permanece relativamente ignorado ainda hoje, mesmo entre historiadores, juristas e militares, apesar de representar um marco de vanguarda no direito internacional humanitário.

“Isso ainda é algo muito pouco conhecido”, disse à Folha Péricles Aurélio Lima de Queiroz, ministro do STM (Superior Tribunal Militar).

O conhecimento sobre as “Instruções para o Tratamento dos Prisioneiros de Guerra” baixadas pelo ministro da Guerra de dom Pedro 2º, Ângelo Moniz da Silva Ferraz, o Barão de Uruguaiana, segue restrito a um círculo pequeno de pesquisadores, dos quais um dos principais é Francisco Doratioto, doutor em história e autor do livro “Maldita Guerra: Nova História da Guerra do Paraguai”.

“No Brasil, o desconhecimento é grande”, ele disse. Doratioto culpa “uma estrutura de ensino que por décadas deu pouca atenção ao assunto, e muitas vezes apresentou explicações conspiracionistas que agravaram ainda mais esse desconhecimento” sobre a Guerra do Paraguai.

Em 1865, ainda não existia no mundo normas legais de aceitação universal sobre prisioneiros de guerra. Muitos eram torturados e executados, além de terem seus bens espoliados e de serem submetidos a trabalhos forçados e a tratamentos inumanos, cruéis e degradantes nos campos de batalha.

As normas baixadas pelo Barão de Uruguaiana não garantiam, por si só, o respeito aos prisioneiros, mas permitiam levar os infratores à corte marcial, como mostram registros da época.

Uma das circulares que compõe as normas, emitida em 10 de agosto de 1865, mandava um comandante brasileiro “castigar os (subordinados) que, esquecidos de seus deveres, cometerem os atos reprovados” contra inimigos capturados.

Antes do governo de dom Pedro 2º, só o de Abraham Lincoln, nos Estados Unidos, havia editado normas específicas sobre prisioneiros de guerra.

O documento americano, de 1863, era chamado Código Lieber, em referência a seu redator, Francis Lieber, jurista e cientista político nascido em Berlim, que chegou a combater nas Guerras Napoleônicas (1803-1815) na Europa, antes de emigrar para os EUA e lutar na Guerra de Secessão (1861-1865).

O documento feito por Lieber e Lincoln nos EUA antecede em dois anos o similar brasileiro, mas é menos abrangente e detalhado no que diz respeito aos prisioneiros. Além disso, o Código Lieber era aplicado a um conflito armado não internacional, enquanto o documento do Barão de Uruguaiana o fazia num conflito armado internacional.

Um dos estudiosos do tema, o ministro do STM Mario Tibúrcio Gomes Carneiro escreveu numa análise publicada em 1942 que o documento do Barão de Uruguaiana complementa o Código Lieber “com regulamentação mais minuciosa, pois não só regulou a direção e a guarda dos prisioneiros, senão também o tratamento, a disciplina e o emprego deles”.

As Instruções do Barão de Uruguaiana chegam a tratar do tipo de tecido e das cores dos uniformes que deveriam ser usados pelos prisioneiros de guerra paraguaios, além de versar sobre pagamento de soldo a oficiais capturados.

“Os oficiais paraguaios que foram para o Rio de Janeiro recebiam o mesmo soldo que os oficiais brasileiros, pagos pelo Brasil. Eles eram prisioneiros em termos cavelheirescos, pois ficavam pela cidade, moravam em pensões”, disse Doratioto.

A norma pode não ter sido aplicada de maneira extensiva e uniforme e beneficiava mais oficiais que militares de baixa patente e civis alçados em armas. Isso se deve ao fato de que muitos oficiais brasileiros e paraguaios eram descendentes de famílias com títulos nobiliários em Portugal e na Espanha, o que fazia com que eles reproduzissem entre si certos tratamentos privilegiados, de acordo com Doratioto.

O fato de o Brasil ter copiado, estendido e aperfeiçoado uma lei sobre prisioneiros de guerra que havia sido editada apenas dois anos antes nos EUA não é surpresa para o historiador. Ele nota que outras inovações, como os balões de observação aérea do campo de batalha e os encouraçados chamados navios-monitores, também foram usados pelo Brasil na mesma época, depois de terem sido observados em ação na Guerra Civil americana.

A historiadora Lilia Schwarcz é prudente com a ideia de um dom Pedro 2º cosmopolita, porque “a imagem do monarca conectado internacionalmente vai ser construída depois da Guerra do Paraguai, não antes”.

Além disso, o imperador foi criado desde o berço “com esse verniz de ilustração, e havia toda uma operação de projeção dessa [imagem de uma] pessoa conectada e antenada”.

Schwarcz nota também que “o Exército Brasileiro não foi muito bom com os paraguaios”, como nota a historiografia do país vizinho. “Talvez o documento faça parte desse lustro de um monarca que quer projetar essa imagem”, ela pondera.

Doratioto diz que essas não são coisas excludentes. “Até a Primeira Guerra Mundial, a guerra era um embate físico entre soldados e você só mata o outro se você odiar o outro. E, se não matar, você é morto. Hoje mata-se com drone operado a quilômetros de distância. No século 19, se matava com baioneta e armas de alcance curto. Chegava-se perto para matar. Era um ato muito violento e, para realiza-lo, tinha que ter ódio. Era um ato de selvageria. Homens em guerra se desumanizam”, daí o fato de as violações terem convivido com a existência de um documento humanitário vanguardista.

Prisioneiro paraguaio virou a casaca no Rio

Em 1865, o general paraguaio Antonio de La Cruz Estigarribia havia invadido o Rio Grande do Sul e ocupado com suas tropas a cidade gaúcha de Uruguaiana, no dia 5 de agosto. Ele acabou, no entanto, sobrepujado por forças brasileiras e foi tomado como prisioneiro, em 18 de setembro daquele ano, no que os arquivos da Biblioteca Nacional do Paraguai classificam como uma “humilhante rendição”.

Como prisioneiro, Estigarribia foi beneficiado pelas normas baixadas pelo Barão de Uruguaiana. O tratamento humanitário não apenas poupou a vida dele, como também permitiu que ele passasse, mais tarde, a viver no Rio de Janeiro, então capital do Império.

Mesmo na qualidade de combatente capturado, ele circulava livremente e tinha acesso à corte. Estigarribia chegou a “escrever uma nota a dom Pedro 2º, pedindo que lhe permitisse lutar contra [Francisco Solano] López”, de acordo com registros do arquivo oficial paraguaio. Nada indica que o militar tenha voltado ao campo de batalha para lutar contra o presidente do próprio país, pois ele acabou morrendo no Rio, em 1870, ano do fim da guerra.

Já o Barão de Uruguaiana, que teve papel importante na captura e no tratamento digno dispensado ao general paraguaio, acabou recebendo mais tarde, de Dom Pedro 2º, o título de barão, pelo qual se tornaria conhecido, e o posto de ministro da Guerra brasileiro, que ele viria a exercer de 1865 a 1866.

Crédito: Link de origem

- Advertisement -

Deixe uma resposta

Seu endereço de email não será publicado.