Os EUA não são a Venezuela — mas Trump está encurtando a distância

Quando o secretário de Estado americano, Marco Rubio, fechou o escritório do Departamento de Estado responsável por direitos humanos — “uma plataforma para ativistas de esquerda”, acusou ele, “redefinirem os ‘direitos humanos’ e a ‘democracia’” — à primeira vista pareceu apenas mais uma maneira de o governo Trump virar as costas para o mundo em paridade com os cortes na ajuda externa.

Eis uma interpretação diferente: os compromissos anteriores dos Estados Unidos com a defesa dos direitos humanos atrapalham os objetivos do presidente Donald Trump; Rubio, que já foi defensor ferrenho dos direitos humanos em todo o mundo, está permitindo aos EUA se tornarem mais parecidos com El Salvador de Nayib Bukele, a Nicarágua de Daniel Ortega ou a Venezuela de Nicolás Maduro.

Consideremos o “desaparecimento forçado” de indivíduos.

A Declaração da ONU sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado caracteriza essa prática como situações em que funcionários do governo prendem, detêm ou sequestram indivíduos, recusam-se a revelar sua destinação ou seu paradeiro e nem sequer reconhecem que as mantêm sob custódia, excluindo-as de proteção da lei. Tribunais americanos afirmam que o delito de “causar desaparecimento” ocorre quando funcionários do Estado ou seus agentes detêm alguém e se recusam a confessar que o fizeram ou revelar a destinação do detido.

Imigrantes venezuelanos foram deportados para prisão de segurança máxima em El Salvador.  Foto: EL SALVADOR’S PRESIDENCY PRESS OFFICE

Isso ocorreu frequentemente com chilenos durante a ditadura de Augusto Pinochet, na década de 70, e com argentinos sob o regime militar, de 1976 a 1983. Venezuelanos, nicaraguenses e salvadorenhos sofrem esse tipo de coisa até hoje. E isso descreve bastante adequadamente o que o governo Trump fez com mais de 100 imigrantes venezuelanos. Eles foram detidos, tiveram negada a chance de contestar sua deportação na Justiça e acabaram enviados sumariamente para uma infame prisão em El Salvador, sob a justificativa de uma lei de emergência de guerra criada no século 18 e de relevância duvidosa atualmente. O governo não divulgou suas identidades e alegou que todos os detalhes da operação são segredos de Estado.

Exceto por algum eventual deslize na burocracia, o governo Trump alegou que os deportados são todos assassinos sanguinários. Como qualquer sobrevivente de guerras sujas da América Latina sabe bem, governos repressivos usam essa justificativa desde o advento da repressão.

É difícil para os americanos acreditarem que seu país — a democracia constitucional mais antiga do planeta — possa subitamente começar a se comportar como uma república de bananas de 100 anos atrás. Nem a análise mais alarmista da sombria guinada política dos EUA chegou a afirmar que Trump tem agido exatamente como um Pinochet.

Os cientistas políticos Steven Levitsky e Lucan Way causaram espanto ao argumentar que, em um segundo governo Trump, os EUA “deixariam de atender aos critérios-padrão de uma democracia liberal: sufrágio pleno para adultos, eleições livres e justas e ampla proteção de liberdades civis”. Ainda assim, eles esperavam que os EUA continuassem uma espécie de democracia, com Constituição, Legislativo e a oposição na legalidade. Eleições poderiam ser manipuladas para beneficiar o partido no poder, mas seriam realizadas. Como Levitsky apontou, “o tipo de regime que vimos na Venezuela sob Hugo Chávez”.

A avidez de Trump em deportar imigrantes para um gulag salvadorenho — disposto a desafiar a Suprema Corte se o tribunal ousar se opor à medida — prenuncia, ao meu ver, um cenário mais sombrio: algo mais semelhante à Venezuela sob o sucessor de Chávez, Nicolás Maduro, onde desaparecimentos forçados são a ordem do dia.

Como dirão observadores da Venezuela, as táticas do governo Trump imitam proximamente padrões empregados por um Estado policial: instalam um estado de exceção permanente para suspender direitos civis e combater um mal absoluto, seja criminalidade, drogas ou terrorismo; definem o restabelecimento da segurança como objetivo central; e concentram a repressão sobre um setor da população sem base política, como moradores de favelas, no caso de Maduro, ou imigrantes, no caso de Trump.

Presidente Donald Trump discursa para militares em Michigan. Foto: Alex Brandon/Associated Press

Grupos armados alcançam dias de glória. Os infames “coletivos” civis da Venezuela não fazem parte do Estado, mas se encarregam à distância da violência em seu nome. Eles se parecem de maneira assustadora com os Proud Boys, a quem Trump orientou a “recuar e aguardar” e que, no fim das contas, tomaram para si a responsabilidade de atender às queixas do presidente atacando o Congresso, há quatro anos.

Líderes autocráticos frequentemente recorrem a táticas de repressão diante de quedas de popularidade. Chávez, que se beneficiou dos altos preços do petróleo e de índices de aprovação na faixa de 70% a 80%, conseguiu realizar muita coisa — por exemplo, expulsar inimigos políticos da estatal petrolífera e do Judiciário — sem recorrer tanto à força. O sucessor de Chávez, Maduro, que chegou ao poder quando os preços do petróleo despencavam e a economia entrava em parafuso, sem uma base eleitoral verdadeira e própria, encontrou-se em uma posição muito mais difícil. A violência foi sua solução.

Nesse sentido, os péssimos índices de aprovação de Trump deveriam soar alertas. Seus ataques contra firmas de advocacia, universidades, ativistas estudantis, meios de imprensa, criminosos “produzidos domesticamente” e outros entes têm sido, até aqui, jurídicos ou retóricos. Mas o que acontecerá se Trump se encontrar em uma situação política difícil, digamos perdendo alguma Casa do Congresso no ano que vem? A possibilidade de a repressão do Estado ser aplicada contra cidadãos americanos parece mais próxima do que nunca, pelo menos desde os tempos da Guerra do Vietnã.

A lista de abusos que o Departamento de Estado está supostamente removendo de seus relatórios anuais sobre direitos humanos em todo o mundo (presumivelmente devido ao viés esquerdista) inclui revogações de liberdade de movimento e reunião pacífica; retenções de presos políticos sem o devido processo legal; retornos forçados de refugiados ou solicitantes de asilo aos seus países de origem, onde eles podem enfrentar torturas ou perseguições; assédios graves contra organizações de direitos humanos; e práticas médicas ou psicológicas involuntárias ou coercitivas.

Carolina Jiménez Sandoval, diretora da ONG Escritório de Washington para a América Latina, nascida na Venezuela, observou como os venezuelanos também ficaram perplexos com o colapso de sua democracia, transformada em um Estado policial. Por mais de meio século após a queda do ditador Marcos Pérez Jiménez, em 1958, a Venezuela permaneceu uma das poucas democracias sólidas em uma região assolada por golpes de Estado e juntas militares, um refúgio para exilados políticos de toda a América do Sul.

Então, nos primeiros anos deste século, Chávez minou gradualmente os pesos e contrapesos que davam sustentação à democracia venezuelana. E quando chegou ao poder após a morte de Chávez, em 2013, Maduro sentou a mão de ferro. “Isso me ensinou a não acreditar cegamente que as instituições são capazes de suportar qualquer coisa”, disse Sandoval, pesarosa. “No desenvolvimento do autoritarismo, o que era impensável acontece.

E pode acontecer abruptamente. Conforme pesquisadores do Instituto V-Dem, na Suécia, afirmaram em um relatório de investigação publicado no mês passado, “os EUA podem se tornar o país com a autocratização mais rápida na história contemporânea sem envolver um golpe de Estado”.

Certamente, as instituições americanas não se dobraram por completo. Sim, Trump está tentando justificar suas capturas de poder com as Leis de Inimigos Estrangeiros, de Emergências Nacionais e de Poderes Econômicos de Emergência Internacional. Mas o Judiciário americano ainda é amplamente independente e segue, até certo ponto, disposto a impedir as ambições do presidente. Ao contrário da Venezuela ou de El Salvador, os EUA não estão num estado de exceção total. Trump não invocou a Lei da Insurreição, mas parece querer. Se ele conseguir, aposto que Maduro telefonará para parabenizá-lo. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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