Fonte: Global Voices. Crédito: USAID/Flickr/CC: BY-SA 2.0)
Quinto da série “Atuação e sombras da USAID na América Latina”
Por Camila Feix Vidal e Pedro Augusto Mendes de Negreiros* [Informe OPEU] [USAID] [Venezuela]
Em fins de 2021, cerca de seis milhões de venezuelanos se encontravam fora de seu país de origem. Seus destinos são, como de costume nos fluxos migratórios entre países do Sul, majoritariamente os países vizinhos: Colômbia, Peru, Chile, Equador e Brasil, que acolheram mais de 4,6 milhões de imigrantes venezuelanos. De acordo com dados da Plataforma de Coordenação Interagencial para Refugiados e Imigrantes Venezuelanos (R4V), ao fim de 2021, 2,59 milhões de imigrantes venezuelanos possuem vistos de autorização de residência, 952 mil são solicitantes de refúgio e 186 mil foram reconhecidos efetivamente como refugiados em outros países.
O fluxo de imigrantes venezuelanos tem sido auxiliado por atores internacionais de assistência humanitária, assim como por atores locais de suporte às migrações. Destaca-se a atuação das agências internacionais da Organização das Nações Unidas (ONU), sobretudo a Organização Internacional de Migrações (OIM) e o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), que, em 2018, estabeleceram conjuntamente a R4V. Outro ator importante na coordenação do fluxo migratório venezuelano é a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, na sigla em inglês), responsável por vários projetos bilaterais de apoio à população migratória venezuelana nos diversos países receptores da América Latina. Formalmente, essas agências internacionais, em conjunto com atores locais, buscam fortalecer as capacidades das sociedades que recebem os imigrantes venezuelanos, especialmente em questões de proteção e regularização, garantia de direitos, alimentação e de inserção laboral.
Do referencial brasileiro, é perceptível o aumento do número de imigrantes venezuelanos após 2015, concentrados, inicialmente, na região fronteiriça de Pacaraima; depois, em Boa Vista e Manaus; e, atualmente, no restante do país. Desde 2019, os venezuelanos compõem o grupo mais numeroso de imigrantes residentes (Shamsuddin et al., 2021). Esse novo fluxo migratório demandou ação do governo brasileiro, que instaurou, em 2018, a Operação Acolhida, com o objetivo de organizar a entrada de venezuelanos no Brasil e oferecer oportunidade de interiorização dessa nova população. O projeto é realizado em parceria com diversos atores, nacionais e internacionais, a exemplo das Forças Armadas, da Polícia Federal, da USAID, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, do Comitê Internacional da Cruz Vermelha e da Cáritas. Em 2022, o número de venezuelanos interiorizados por meio da Operação Acolhida ultrapassou 66 mil (Brasil, 2022). Nesse sentido, um dos motivadores para a migração é a crise multifacetada em curso na Venezuela, cujo ponto de origem foi a crise internacional de preços do petróleo, em 2009, e as inúmeras sanções estadunidenses, canadenses e europeias. O objetivo dessas medidas é pressionar o governo da Venezuela e isolá-lo internacionalmente.
Não obstante a imposição unilateral de diversas ferramentas de isolamento internacional da Venezuela, os Estados Unidos atuam, também, para “assistência de caráter humanitário” à população migrante venezuelana. Isso é realizado, sobretudo, via USAID. De acordo com os dados dessa agência e do Departamento de Estado (DoS, na sigla em inglês), as obrigações governamentais dos EUA com a assistência internacional para a Venezuela somaram, nos anos de 2019 e 2020, US$ 72,2 milhões e US$ 155 milhões, respectivamente. Em 2020, US$ 65 milhões foram endereçados para o setor de “resposta emergencial”, enquanto US$ 60,9 milhões beneficiaram “governo e sociedade civil”. Também é notável a participação dos Estados Unidos no financiamento do Regional Refugee and Migrant Response Plan (Plano Regional de Resposta a Refugiados e Migrantes) ― em 2021, o país foi responsável pela doação de US$ 395 milhões para o programa. Parece-nos que a atuação aparentemente contraditória dos Estados Unidos, ao aplicar sanções e bloqueios internacionais à Venezuela, enquanto, simultaneamente, favorece a “assistência humanitária”, ilustra a atuação no sentido do fortalecimento de uma oposição doméstica com objetivo de manutenção da sua hegemonia. Ou seja, entendemos aqui que os EUA, via USAID, utilizam-se da migração venezuelana como instrumental para isolar ainda mais a Venezuela e manter sua hegemonia regional.
É importante mencionar que o fluxo migratório venezuelano, incentivado pelas ações estadunidenses, configura-se como um elemento legitimador das narrativas que caracterizam o governo venezuelano como antidemocrático e responsável por violações generalizadas de direitos humanos: um “Estado falido”, causador da migração em massa de sua população. Ao mesmo tempo, o apoio à imigração também funciona como legitimador da imagem dos Estados Unidos como bastião hegemônico da moral, dos direitos humanos e da autodeterminação dos povos.
(Arquivo) Centenas de venezuelanos em situação de mobilidade humana esperam na fila da Alfândega do Equador para carimbar seus passaportes e seguir viagem, em 8 ago. 2018 (Crédito: UNICEF Equador/Flickr)
Por fim, a partir de coleta de dados primários publicados por agências domésticas e internacionais de assistência internacional estadunidense, evidenciamos como os EUA fazem uso do apoio financeiro, logístico e ideológico aos imigrantes venezuelanos na América Latina como ferramenta complementar à política externa principal de sanções, bloqueios comerciais e financeiros que visa à mudança de regime por meio do isolamento internacional da Venezuela. Dados empíricos do financiamento bilateral dos Estados Unidos foram coletados dos bancos de dados oficiais das suas agências de ajuda externa por meio do portal Foreign Assistance, do Governo Federal, que compila os gastos governamentais de assistência internacional providos pela USAID e pelo Departamento de Estado. Aqui, buscamos sistematizar os dados referentes aos principais países envolvidos na crise migratória atual (Venezuela, Brasil, Colômbia e Peru), dando atenção aos valores transferidos, setores de incorporação e atividades planejadas, assim como a evolução dessas variáveis entre os anos de 2016 e 2020.
Relação EUA vs. Venezuela
A Venezuela é uma nação sustentada, sobretudo, pela sua renda petroleira. Por conta do papel essencial exercido pelo petróleo venezuelano na recuperação das economias após a Segunda Guerra Mundial, a Venezuela foi o principal beneficiário latino-americano do Plano Marshall, o que resultou em um estreitamento de relações com os Estados Unidos. Entretanto, com a nacionalização da indústria petroleira, em 1976, por meio da criação da Petróleos de Venezuela S.A. (PDVSA), buscou-se aumentar a participação estatal no setor energético, limitando o controle estrangeiro e as concessionárias privadas (entre elas, as estadunidenses Exxon e Shell). Ao longo da metade final do século XX, a PDVSA distanciar-se-ia dos seus objetivos principais e acabaria sobrepujada pelas estratégias de mercado das companhias transnacionais. Com a crise internacional das dívidas, em 1983, a “abertura petroleira” buscava atrair mais investimentos privados.
O processo contemporâneo de posicionamento antihegemônico venezuelano tem início com a eleição de Hugo Chávez, em 1999, e com seu projeto de implementação do “socialismo do século XXI”, baseado na participação popular e no investimento em programas sociais, por meio da democratização das riquezas naturais do país diante da crise do modelo neoliberal estadunidense – um claro contraponto ao modelo de poder oligárquico anterior, conhecido como o Pacto de Punto Fijo.
A chegada da esquerda ao poder na Venezuela provocou a destituição do alinhamento com os Estados Unidos e o fim das políticas de privatizações dos anos 1990, mas ainda manteve a diplomacia pragmática do petróleo. O processo de degradação do puntofijismo teve como foco inicial a reforma do Estado por meio da consolidação de diversos partidos de esquerda, como o MAS (Movimiento al Socialismo), a LCR (La Causa Radical), o PCV (Partido Comunista Venezuelano) e o MBR-200 (Movimiento Bolivariano Revolucionario).
Desde então, os EUA executam uma guerra híbrida contra a Venezuela: uma combinação de meios convencionais e não convencionais, mediante um amplo leque de atores estatais e não estatais que influenciam diversos aspectos da vida social e política, a fim de consagrar sua dominação e seus interesses nacionais. Assim, pode-se afirmar que as relações contemporâneas entre os Estados Unidos e a Venezuela se resumem a, essencialmente, dois tipos: as unilaterais, de isolamento internacional; e as classificadas como “assistência humanitária”. As primeiras são o resultado direto da postura de não alinhamento construída desde o começo do século, especialmente no que tange ao controle nacional do petróleo. Essas medidas são sanções econômicas e bloqueios comerciais e financeiros, entre outras, que, desde 2015, foram sistematicamente institucionalizadas pelos Estados Unidos. As segundas representam os programas bilaterais, executados, sobretudo, por meio da USAID. Esses programas abrangem diversos setores, desde fomento à democratização e fomento da sociedade civil, passando por assistência militar, ajuda sanitária, educacional, logística e, mais importante para o nosso objeto de estudo, proteção de indivíduos em situação de vulnerabilidade (imigrantes). São realizados tanto diretamente, na Venezuela, quanto indiretamente, em países vizinhos.
Com a chegada de Maduro à Presidência, em 2013, a postura estadunidense é intensificada. A linha de ação dos Estados Unidos e de seus aliados regionais foi definida pela Lei 113-278, de 2014, intitulada “Ato de Defesa dos Direitos Humanos e da Sociedade Civil na Venezuela”, cujo objetivo é “impor sanções específicas a pessoas responsáveis por violações de direitos humanos de protestantes antigoverno na Venezuela, fortalecer a sociedade civil na Venezuela, entre outros propósitos”. Nela, é institucionalizada a aplicação de sanções, por parte do presidente dos Estados Unidos, a indivíduos que, em nome do governo venezuelano, tenham apoiado ou cometido abusos de direitos humanos na Venezuela ou prendido pessoas por exercício de “sua liberdade de expressão ou de assembleia”.
A instrumentalização da migração venezuelana
A Venezuela é, atualmente, um dos países com o maior número de emigrantes do planeta, sendo origem do maior fluxo de refugiados e imigrantes da história da região. O número total de imigrantes internacionais era, no fim de 2020, de 281 milhões (3,6% da população mundial), e o de pessoas deslocadas internamente, de 55 milhões – cifras que, ao longo dos últimos 50 anos, representam uma parcela crescente da população mundial (McAuliffe, Triandafyllidou, 2021). Em 2020, o número de emigrantes venezuelanos era de 4,49 milhões, ou 13,6% da população total. Já em 2022, o número de venezuelanos deslocados (incluindo refugiados e imigrantes) chegou a 6 milhões, dos quais 4,8 milhões estão localizados somente na Colômbia (R4V, 2021).
Em termos gerais, a Europa é a região com o maior número de imigrantes internacionais (30,9%), seguida de Ásia (30,5%), América do Norte (20,9%), África (9%), América Latina e Caribe (5,3%) e, finalmente, Oceania (3,3%). Dessas regiões, a parcela de imigrantes internacionais na América Latina e no Caribe mais que dobrou, sendo a região com maior taxa de crescimento do número de imigrantes. O “corredor” entre a Venezuela e a Colômbia, por exemplo, passou a ser importante em termos globais, com um fluxo de quase 2 milhões de imigrantes apenas em 2020. Segundo a OIM, a migração venezuelana é considerada “uma das maiores crises de deslocamento e migração do mundo”, devido à “instabilidade econômica e política do país” (apud McAuliffe; Triandafyllidou, 2021, p. 98-99, 108). Nesse sentido, percebem-se fortes fluxos de auxílio internacional para os países acolhedores de imigrantes venezuelanos, a exemplo do que é oferecido pela USAID.
O principal foco da política de assistência externa dos Estados Unidos é o Oriente Médio e Norte da África, além da África subsaariana, enquanto a parcela da assistência externa dos EUA reservada para as Américas foi pequena, cerca de 6% do total. Cabe notar que o tipo de assistência é diferente para cada região: enquanto na primeira o foco é, sobretudo, na assistência militar; na segunda, o foco é quase exclusivamente econômico, com maior peso para os setores de saúde e assistência humanitária. Na região latina, o principal país beneficiado foi a Colômbia, com US$ 812 milhões, seguido de México, com US$ 270 milhões, Peru, com US$ 223 milhões, e Venezuela, que recebeu US$ 163 milhões. O perfil da assistência para países latinos também é distinto, sendo o foco quase exclusivamente em assistência econômica, com grande ênfase nos setores de assistência humanitária, democracia, direitos humanos e governança, paz e segurança e saúde. Em países como Colômbia e Peru, os setores de paz e segurança, abrangendo o combate ao narcotráfico, são historicamente um grande foco da assistência externa dos Estados Unidos.
A assistência prestada ao Brasil durante o ano de 2020 somou US$ 86,8 milhões e demonstra uma tendência regional: a concentração na categoria humanitária, por meio de projetos de proteção e integração de imigrantes venezuelanos. Quando os dados são comparados com os de 2015, início da crise migratória venezuelana, as diferenças se apresentam não somente na natureza da assistência, mas também nos valores destinados à assistência externa – os principais setores apoiados eram proteção ambiental, saúde e governança, resultando em um total de US$ 16,4 milhões. A assistência ao Brasil aumenta consideravelmente em 2019, quando o apoio a imigrantes venezuelanos também toma uma posição de maior peso. Como ilustra a tabela abaixo, entre os dez maiores projetos realizados no Brasil em 2020, ao menos quatro têm foco específico em imigrantes da Venezuela, e cinco deles são administrados diretamente pela USAID.
Tabela 1: Principais atividades de assistência estadunidense para o Brasil (2020)
Atividade | Setor | Agência administradora | Valor (US$) |
Não disponível | Saúde básica | USAID | 16.293.563 |
Assistência de emergência WASH1 para imigrantes venezuelanos | Resposta de emergência | USAID | 11.500.000 |
Biodiversidade | Proteção ao meio ambiente | USAID | 5.000.000 |
Contribuição para o ACNUR/RMRP | Resposta de emergência | Departamento de Estado (DoS) | 4.900.000 |
Não disponível | Saúde básica | USAID | 4.541.059 |
Não disponível | Resposta de emergência | DoS | 4.100.000 |
Contribuição para a OIM/RMRP | Resposta de emergência | DoS | 3.850.000 |
Não disponível | Resposta de emergência | DoS | 3.600.000 |
Não disponível | Resposta de emergência | USAID | 2.500.000 |
Reforçar proteção e integração de imigrantes e refugiados venezuelanos vulneráveis no Brasil | Resposta de emergência | DoS | 2.300.000 |
1 Water, Sanitation and Hygiene.
Fonte: Elaboração própria com base em DoS, 2022.
No Peru, a USAID financia mais da metade das dez principais atividades de assistência dos EUA, e o apoio a imigrantes venezuelanos também está presente. Conforme tabela abaixo, entre os dez maiores projetos, três são em resposta à migração venezuelana, sendo dois deles contribuições para o RMRP.
Tabela 2: Principais atividades de assistência estadunidense para o Peru (2020)
Atividade | Setor | Agência | Valor (US$) |
Não disponível | Governo e sociedade sivil | DoS | 40.174.743 |
Assistência de Emergência contra a Fome | Resposta de emergência | USAID | 13.550.000 |
Assistência conjunta do Escritório para Assistência a Desastres Estrangeiros (OFDA) e Escritório para Fome e Paz (OFP) para Nutrição e Proteção no Peru | Resposta de emergência | USAID | 10.350.000 |
Desenvolvimento Alternativo e Formas de Vida Alternativas | Agricultura | USAID | 8.000.000 |
Não disponível | Saúde básica | DoS | 7.302.564 |
Parceria de fortalecimento institucional para DEVIDA2 | Agricultura | USAID | 7.000.000 |
Não disponível | Gastos operacionais | USAID | 6.702.817 |
Apoio a imigrantes e refugiados venezuelanos | Resposta de emergência | USAID | 6.451.900 |
Contribuição para o ACNUR/RMRP | Resposta de emergência | Departamento de Estado | 6.100.000 |
Contribuição para a OIM/RMRP | Resposta de emergência | Departamento de Estado | 5.600.000 |
2 Comissão Nacional para o Desenvolvimento e Vida sem Drogas
Fonte: Elaboração própria com base em DOS, 2022.
A assistência ao Equador não é diferente. Como mostra a tabela abaixo, entre as dez maiores atividades de assistência, três são referentes à migração venezuelana e executadas diretamente pela USAID.
Tabela 3: Principais atividades de assistência estadunidense para o Equador (2020)
Atividade | Setor | Agência | Valor (US$) |
Programa de Emergência | Resposta de emergência | USAID | 35.000.000 |
Não disponível | DoS | 11.779.510 | |
Contribuição para OIM/RMRP | Resposta de emergência | DoS | 11.300.000 |
Contribuição para ACNUR/RMRP | Resposta de emergência | DoS | 6.700.000 |
Proteção de refugiados | Resposta de emergência | DoS | 6.408.000 |
Não disponível | Resposta de emergência | DoS | 6.000.000 |
Assistência para covid-19 | Saúde básica | USAID | 5.000,000 |
Não disponível | Saúde básica | USAID | 5.000,000 |
Não disponível | Resposta de emergência | DOS | 4.300.000 |
Contribuição para OIM/RMRP | Resposta de emergência | DOS | 4.300.000 |
Fonte: Elaboração própria com base em DOS, 2022.
Na Colômbia, onde a USAID administra diretamente metade das principais atividades de assistência, dois entre os nove maiores gastos são contribuições para o RMRP, conforme a Tabela 4.
Tabela 4 – Principais atividades de assistência estadunidense para a Colômbia (2020)
Atividade | Setor | Agência | Valor (US$) |
Não disponível | Governo e sociedade civil | DoS | 268.679.844 |
Não disponível | Resposta de emergência | USAID | 64.000.000 |
Programa de Financiamento Militar Estrangeiro | Conflito, paz e segurança | DoS | 63.944.498 |
Auxílio múltiplo para atividades de nutrição | Resposta de emergência | USAID | 32.000.000 |
Contribuição para OIM/RMRP | Resposta de emergência | DoS | 22.630.000 |
Programas de Emergência | Resposta de emergência | USAID | 20.500.000 |
Desenvolvimento comunitário e Oportunidades em atividades lícitas | Agricultura | USAID | 18.316.796 |
Aliança Produtores e Mercados | Agricultura | USAID | 14.410.031 |
Contribuição para ACNUR/RMRP | Resposta de emergência | DoS | 11.300.000 |
Fonte: Elaboração própria com base em DoS, 2022.
Ao analisarmos a assistência prestada diretamente à Venezuela, o perfil parece ser distinto dos países anteriormente apresentados. A maior categoria assistida, similarmente aos casos dos demais países apresentados, é a de “respostas de emergência” (50%). Contudo, diferentemente dos casos anteriores, é seguida pela categoria “governo e sociedade civil” (38%) caracterizada, na Venezuela, por setores como participação democrática e sociedade civil, mídia e livre circulação de informações, administração de finanças públicas e direitos humanos. De acordo com Salgado (2019),
[O] governo estadunidense utilizou de diversas instituições, como a Agência dos EUA para Desenvolvimento Internacional (USAID), o Escritório para Transição Internacional (OTI) e The National Endowment for Democracy (NED), por exemplo, para financiar e treinar a oposição venezuelana, com objetivo de organizar setores que eles reconheciam como “sociedade civil” venezuelana contra o governo Chávez.
Essa oposição foi coordenada não somente para agir conjuntamente no referendo revocatório de 2004, com objetivo de invalidar a Presidência de Chávez, mas para organizá-lo e fiscalizar seu andamento. O grupo oposicionista Sumaté, por exemplo, teve contato direto com o corpo diplomático dos EUA e recebeu financiamento da USAID/OTI. Outro aspecto importante é a maneira como a assistência humanitária é prestada. De acordo com relatório da USAID de 2021, a assistência fornecida à Venezuela não apresenta o controle acerca da efetividade dos projetos apoiados pela agência, e as atividades ali prestadas foram reconhecidamente utilizadas como instrumento de apoio ao presidente interino.
Nesse sentido, percebemos como a assistência internacional na Venezuela não é necessariamente focada na melhora das condições de desenvolvimento do país, mas sim no fomento de grupos de oposição e de uma “cultura democrática”, favorecendo o interesse hegemônico de fragilizar e provocar a mudança de regime na Venezuela. Ademais, o valor prestado pelos EUA como assistência para a Venezuela é ínfimo, quando comparado aos danos causados pelas sanções aplicadas entre 2015 e 2019. Ao mesmo tempo, em países vizinhos aliados aos EUA, é explícito o esforço no acolhimento e na integração dos imigrantes venezuelanos, algo que pode funcionar como um motivador importante para a decisão de imigrar. Ao mesmo tempo, na esfera da política doméstica, os Estados Unidos fortalecem as estruturas de controle da imigração. Similarmente ao caso venezuelano, a imigração cubana, por exemplo, foi fortemente incentivada durante a década de 1960 como forma de enfraquecer e isolar o governo de Osvaldo Dorticós Torrado (1959-1976) e de Fidel Castro (1976-2006).
No Brasil, em sua visita à fronteira entre Venezuela e Brasil, em 2020, o então presidente Jair Bolsonaro e o ex-chanceler Ernesto Araújo aclamaram a visita do antigo secretário de Estado estadunidense, Michael Pompeo, agradecendo-lhe pelo apoio à Operação Acolhida. Da mesma forma, os países que compõem o Grupo de Lima decidiram, em janeiro de 2019, não reconhecer a legitimidade da reeleição de Nicolás Maduro, reforçando seu respaldo à Assembleia Nacional. Na nota então lançada, reiteram a visão da migração venezuelana como resultado direto da crise política e humanitária na Venezuela.
Assim, percebendo as importantes lacunas de análise, sobretudo no que tange à origem das dificuldades sociais e econômicas do país (em especial as sanções existentes), a narrativa internacional demonstra uma lógica específica, simpática aos objetivos de política externa da potência hegemônica. Não é razoável crer que as narrativas dominantes sejam produtos da ignorância em relação à realidade venezuelana e à atuação internacional dos Estados Unidos, mas sim que sejam formas de propagação de um discurso favorável ao status quo. As migrações venezuelanas podem ser vistas, desse modo, como elemento importante na manutenção da ordem mundial hegemônica, principalmente no contexto da política externa dos Estados Unidos, que propagam a narrativa que caracteriza a Venezuela como um Estado falido governado por um ditador, com violações generalizadas de direitos humanos. Nesse sentido, o apoio à migração, combinado ao de produção de instabilidade interna do país latino por meio de sanções econômicas e de isolamento internacional, serviria tanto como instrumento incentivador da emigração como fato legitimador da imagem dos Estados Unidos como defensores da ordem mundial democrática, dos direitos humanos e da autodeterminação dos povos.
O papel dos Estados Unidos, no âmbito da assistência humanitária com base no trabalho desenvolvido pela USAID e pelo DoS, configura-se, para a Venezuela, a partir dos setores de governo e sociedade civil; enquanto para os demais países da região são prioritários os setores humanitários, fortemente ligados ao acolhimento e à integração de imigrantes venezuelanos. Neste sentido, reforça-se a visão de que a potência hegemônica não busca eliminar efetivamente a migração por meio da estabilização da crise venezuelana, mas sim utilizar o fluxo de imigrantes como instrumento retórico adicional para o discurso acusatório contra o governo venezuelano.
* Camila Feix Vidal é professora no Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e faz parte do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Política Internacional Contemporânea (GEPPIC) e do Instituto de Estudos para América Latina (IELA/UFSC). Contato: camila.vidal@ufsc.br e camilafeixvidal@gmail.com .
Pedro Negreiros é graduado em Relações Internacionais pela UFSC. Contato: pdnegreiros@gmail.com.
** Primeira revisão: Simone Gondim. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Revisão e edição finais: Tatiana Teixeira. Recebido em 20 mar. 2025. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.*
*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mail: tatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mail: tcarlotti@gmail.com.
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