A justiça portuguesa nunca tinha visto um processo assim. E as juízas que presidiram ao julgamento não hesitaram: sete anos e nove meses de prisão como pena para uma jovem que cometeu cyberbullying, onde perseguia suas vítimas através de mensagens, telefonemas e e-mails.
A CNN Portugal teve acesso aos arquivos das decisões finais do crime, que veio à tona em fevereiro de 2024 e mais parece o enredo de uma série de televisão.
Perseguição no Campus
Tudo começou no dia 20 de março de 2019. A data poderia ter sido qualquer outra, porque nem o julgamento conseguiu esclarecer os motivos que levaram Sofia a perseguir Inês (nome fictício), uma caloura de uma universidade de Lisboa da qual ela também era aluna.
As duas se conheceram através das redes sociais, quando Sofia criou diversas contas falsas, com o objetivo de se se aproximar de Inês. Durante dois anos, Sofia enviou milhares de e-mails com mensagens perturbadoras, tentando chamar a atenção da vítima de todas as formas – tendo sucesso em algumas.
Durante esse mesmo tempo em que sofreu esse assédio constante, Inês também foi coagida por Sofia a desistir de seu curso, mais tarde divulgando imagens dela na instituição onde as duas estudavam e através de outras da mesma região.
Encomendas em nome da vítima foram feitas em sexshops, lojas de beleza e até em restaurantes, chegando até a marcar consultas médicas, indicando sempre o endereço eletrónico de Inês. O sobressalto era diário e constante.
A cada e-mail, Sofia juntava mais destinatários para além da vítima. Na universidade, todos sabiam o que estava acontecendo. Nem a mãe, a tia ou o irmão de Inês escaparam do assédio.
Sofia fez, inclusive, um obituário de Inês e enviou-o para várias pessoas e instituições. E, durante a pandemia, chegou a criar uma página de angariação de fundos para que Inês pudesse ir para Wuhan, na China.
Amigos e Familiares Afetados
Mas, Sofia não perseguiu Inês apenas anonimamente. Em maio de 2019, ela procurou seu perfil do Facebook, enviando uma mensagem exprimindo preocupação quanto a um suposto bullying que ela estava sofrendo na faculdade:
“Olá. Nem sei como falar isso sem soar estranho, mas você é do (…)? É você que vem sofrendo bullying por parte de 2/3 garotas do seu curso? Criaram um perfil falso no Instagram para inventarem fofocas sobre você há mais de um mês?”.
Assim começou a conversa. E de perto, ela conseguia perceber o efeito das suas ações. Além da família de Inês, algumas amigas e colegas também foram perseguidas, com mensagens, encomendas, acusações ou dezenas de pedidos de alteração de palavras-passe para e-mails e redes sociais.
Sofia intimidava-as com a divulgação de dados se não levassem a sério determinadas ações contra Inês. Por exemplo, deixarem de segui-la nas redes sociais. Ou então, exigia novas fotos de Inês.
O objetivo final era fazer com que Inês desistisse do curso. Para os milhares de e-mails, telefonemas e mensagens, Sofia usou VPN (rede de dados privada), plataformas de endereços eletrónicos encriptados ou recorreu a falsificação de informações para culpar outras pessoas, que poderiam ser as próprias vítimas.
Os colegas de Inês chegaram até a ser alvo de buscas por parte das autoridades, período em que viveram uma humilhação que não irão esquecer, recebendo olhares tortos até dentro da universidade.
Mentiras e confissão do crime
No dia 13 de janeiro de 2020, quase um ano depois desde o início dos assédios, algo inesperado aconteceu. Do próprio endereço de e-mail, Sofia enviou uma mensagem para várias pessoas onde admite a autoria dos crimes.
“Tirem print desse e-mail e mostrem para todos os idiotas que envolvi. Sério, torne-o famoso (…). É minha cartada final, me dêem algum crédito. Como afirmei várias vezes, ‘poder é poder’ e não fiz nada além de esfregar na cara de vocês que não preciso me esconder. Então, aproveito para esfregar na cara de vocês que sim, eu fiz tudo, e que sim, eu incriminei as outras três idiotas. E uma coisa é certa, eu tive a diversão da minha vida. A única coisa que pesa na minha consciência foi ter usado aquelas garotas, que não tinham nada a ver com nada. (…) Não, não vou alegar que entraram na minha conta, chantagens, etc, porque ninguém está me coagindo, aliás, não vou alegar nada, porque qualquer tentativa de contato de vocês será negada, todo mundo está bloqueado em todo lugar”, escreveu.
No entanto, quando confrontada com a mensagem por Inês, ela admitiu que a escreveu, mas negou ter praticado os fatos. Poucos dias depois, uma nova mensagem foi enviada a alguns colegas, dando conhecimento da morte de Inês.
Quase dez dias depois, essa mensagem chegou na mãe de Inês, em empresas, no jornal da região onde a vítima morava e até em escolas onde ela teria estudado. No texto, Sofia escreveu:
“É com tristeza nos nossos corações que informamos que a nossa estimada colega (…) faleceu perdendo a batalha para uma infeção. No dia 26 vamos fazer um minuto de silêncio em sua memória, às 9:40 antes do funeral. Gostaríamos que participassem, estejam onde estiverem. O seu coração bom e puro e a sua boa disposição nunca irão morrer dentro de nós. Vamos homenageá-la! Compartilhem.”
Junto da mensagem, ela colocou duas fotos de Inês com o obituário, identificou um local e o horário do funeral, tal como do velório. No final, ela ainda assinou como “A família”.
O tribunal não teve dúvidas em dar como provado que Sofia agiu de forma repetida e constante ao longo do tempo, de forma a intimidar os destinatários e familiares de Inês, criando um ambiente de constante sobressalto, incômodo e temor.
Algumas das mensagens incluíam ameaças concretas como: pagava “200 para ensinarem uma lição física” ou, ainda, “vai levar porrada”.
Inês apresentou queixas para as autoridades, assim como outras vítimas. Todas acabaram resolvendo o caso com a Polícia Judiciária, que tem a competência de investigar a cybercriminalidade. Durante os primeiros meses as pistas sobre o autor dos crimes eram escassas, mas, em pouco tempo, todas faziam parte da mesma investigação.
Sofia foi interrogada no Ministério Público no dia 4 de dezembro de 2019 e, perante as autoridades, voltou a acusar as três colegas de Inês de serem as autoras do cyberbullying.
Ela alegava ter ouvido uma conversa entre elas e, com a ajuda de Inês, que lhe mostrou fotos, indicou quem eram. Ou seja, repetiu o que disse a Inês. Uma semana depois, ela compareceu novamente ao tribunal, onde confirmou as declarações que já tinha prestado.
Para o tribunal não houve dúvidas, ela havia se apresentado como vítima sabendo que tinha sido ela quem cometeu os crimes.
Desfecho que deixou feridas profundas
Se passaram dois anos até ao fim da perseguição, que deixaram marcas profundas em Inês. Ela não conseguia mais dormir, e quando conseguia, acordava e chorava sem parar. Só se acalmava ligando para mãe que a ajudava a controlar o medo e a ansiedade. Até o cabelo começou a cair devido ao desgaste emocional.
Ela também se afastou da antiga vida social, principalmente de todos os que haviam recebido mensagens de Sofia. Sua vida académica acabou e as notas abaixaram consideravelmente. Ir à universidade era um sacrifício.
Até hoje, sempre que Inês vê as fotos dos poucos amigos que resistiram às ameaças de Sofia, ela se assaltada pelo pânico, com medo de que elas sejam publicadas nas redes sociais. Sempre que recebe e-mails, SMS ou qualquer outro contato, ela não consegue evitar pensar que se trata de um novo ataque.
E a família de Inês também sofreu de perto esse pesadelo. Na verdade, viveram junto com ela. A tia de Inês, por exemplo, teve medo, sentiu angústia, vergonha, desgosto e sofreu um enorme desgaste emocional. E tudo aconteceu enquanto se recuperava de uma doença oncológica.
Muitas vezes, os emails enviados à tia de Inês terminavam com a promessa de novas surpresas, que lhe causavam uma ansiedade constante. Até a escola e os alunos com quem ela trabalhava receberam e-mails com conteúdos ofensivos.
Além disso, um dos erros de Sofia que ajudou as autoridades a identifica-la foi uma chamada feita para a tia de Inês através do WhatsApp. O número acabou sumindo, mas ela teve tempo de ver a fotografia associada ao número antes dele apagado.
Diversas colegas de Inês que Sofia incriminou desenvolveram crises de pânico e ansiedade constantes, além de algumas terem até dificuldade de sair de casa.
Julgamento de Sofia
Sofia sempre negou ser a autora dos crimes, seja antes ou durante o julgamento. Ela relacionou os acontecimentos com o fato de estar cansada, de se sentir culpada por acusar inocentes, tendo esperança que essa mensagem pudesse mudar seu destino.
Mas o fato é que ela já tinha se envolvido numa situação idêntica em menor escala. Na época, um inquérito foi aberto, mas acabou sendo arquivado em 2015.
Em fevereiro de 2020 a sua casa foi alvo de buscas e entregou todos os dispositivos. O que foi encontrado no seu computador não era de sua autoria, garantiu, e tinha sido um erro da polícia. No entanto, o coletivo de juízas que acompanhou o julgamento considerou que as declarações revelavam inconsistências.
Além de terem sido pouco lógicas, Sofia mostrou-se distante, desligada e pouco espontânea na forma como falou. O pai dela desconhecia por completo o que estava acontecendo, e só soube quando as autoridades foram até sua casa.
Já as declarações das vítimas foram consideradas, pelas autoridades, como esclarecedoras e genuínas. Uma delas explicou que nunca mais entrou no e-mail antigo, e optou por fazer um novo, descrevendo que tinha morrido e renascido.
Perante os depoimentos das vítimas e a extensa prova documental recolhida, as magistradas não tiveram dúvidas em considerar que as situações descritas na acusação tinham realmente acontecido.
Durante dois anos, Sofia perseguiu várias pessoas, na sua maioria com relações com Inês, recorrendo sempre ao mesmo modus operandi, temáticas e conteúdos idênticos. Para as juízas a justificação dada para uma confissão falsa não fez qualquer sentido.
Tal como o fato de ter o número da tia de Inês gravado no seu telefone, sem a conhecer e ter qualquer razão para tal, era uma evidência de que estava profundamente envolvida na autoria dos factos.
Mas uma perícia em particular deu ainda mais certezas às magistradas: uma perícia linguística. Esta analisou escritos da Sofia com um conjunto de mensagem anónimas enviadas a Inês e concluiu com elevada probabilidade que tinham sido redigidas pela mesma pessoa. Uma perícia que descreveram como muitíssimo bem fundamentada.
Mesmo assim, devido à idade de Sofia (menos de 30 anos) e às datas da prática dos crimes, o processo ficou abrangido pela Lei da Amnistia e Sofia beneficiou da extinção de 122 crimes. Entre eles estão, por exemplo, crimes de ameaça, difamação ou injúria.
Sofia acabou condenada, em cúmulo jurídico de penas, a sete anos e nove meses de prisão por 18 crimes. Uma pena pesada para um processo único na justiça portuguesa.
Foram dados como provados sete crimes de perseguição, na forma consumada; oito crimes de falsidade informática, na forma consumada; e ainda três crimes de denúncia caluniosa, na forma consumada.
Sofia está igualmente condenada a duas penas acessórias: a proibição de contatos por qualquer meio com as vítimas, pelo período de três anos, incluindo o afastamento da residência e do local de trabalho das mesmas e a obrigação de frequência de programa específico de prevenção de condutas típicas da perseguição.
O tribunal considerou ainda procedentes a maioria dos pedidos de indemnização feitos pelas vítimas. Ao todo, Sofia deverá pagar perto de 54 mil euros. A maior fatia irá para Inês, num total de 30.780 euros. À tia de Inês ficam destinados 10 mil euros.
A decisão de fevereiro foi tomada pela primeira instância, o que significa que Sofia ainda pode recorrer, tal como as vítimas se assim o entenderem.
À CNN Portugal, David Silva Ramalho, advogado de algumas das vítimas, não quis falar sobre o processo. No entanto, admitiu que a decisão “marca uma etapa importante num longo e difícil processo para as [suas] constituintes”.
Considerou ainda que a decisão foi “justa, ponderada, bem fundamentada e proporcional, que dá resposta adequada à gravidade dos fatos do processo”.
Apesar de compreender “o interesse público da decisão”, lembrou que “a sua excessiva mediatização tem um impacto, e um impacto muito relevante, nas vítimas, que se veem diariamente confrontadas com um período da sua vida que só querem esquecer”.
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