Viajar além do cliché: “Em todos os países do mundo alguém me ajudou a continuar” | ABVP Travel Fest
#Portugal. O Palácio da Pena (Sintra), as vinhas do Douro, as fachadas de azulejo, o pôr do Sol sobre o rio. #República Checa: castelo, Ponte Carlos, ou o trdelnik, o cone de massa doce recheada muito “instagramável” mas que não tem sequer origem no país. Quantas vezes vimos as mesmas listas, as mesmas dicas, as mesmas fotos? O pontapé na Casa Dançante de Praga, o empurrão à Torre de Pisa. O viajante de costas na montanha. Os pés a sair da tenda sobre a paisagem.
Ao longo do fim-de-semana, a terceira edição do ABVP Travel Fest, pela primeira vez em Guimarães, levou a palco 11 viajantes de oito países diferentes para nos inspirarem a descobrir o mundo para além dos estereótipos. Quem nunca viu alguém chegar, tirar uma fotografia a um lugar e virar costas no momento seguinte sem chegar realmente a vê-lo? “Acho que quando forem rever as fotos vão pensar: ‘Nem acredito que estive aqui’”, lançava Torbjørn Pedersen (Thor, Once Upon a Saga), o dinamarquês que acaba de visitar todos os países do mundo sem voar ou regressar a casa, durante a única mesa redonda do evento, dedicada ao tema “Como podemos mudar a forma como viajamos”.
No sábado de manhã, Dave e Debora, o casal canadiano do projecto The Planet D , abririam o debate ao lançar as primeiras respostas. “Têm de encontrar o vosso porquê.” Falavam sobretudo para bloggers, instagrammers e produtores de conteúdos de viagens, mas poderia ser para cada um de nós. “Garanta que é um inovador e não um imitador. Não poderá ser bem-sucedido fazendo o que os outros fazem”, argumentavam em palco, depois de partilharem a história de sucesso do site de viagens The Planet D, criado em 2008 e que conta hoje com mais de um milhão de leitores, somando as redes sociais. Dicas? Tenha um propósito, um plano para atingi-lo, encontre um nicho, seja inovador, e lembre-se de que é preciso muita perseverança, porque “leva tempo”, e é mais “difícil ser original hoje em dia”.
“Têm de se lembrar de que são convidados no país”
Terão vindo as redes sociais corromper a viagem? Estão o turismo de massas e o sobreturismo a destruir o planeta? O documentário The Last Tourist, lançado este ano, veio lembrar que “o mundo tornou-se uma ervilha para as massas”, com todos os problemas que isso causa nas comunidades locais e planeta: “Mais de 500.000 animais sofrem em todo o mundo em diferentes tipos de atracções turísticas”, o lixo, a destruição de monumentos culturais e naturais, o “volunturismo” como negócio e as crianças colocadas em orfanatos e exploradas para que os proprietários lucrem com os turistas, ou as economias locais estranguladas pelos grandes grupos internacionais.
“Têm de se lembrar que são convidados no país”, sublinhava Thor, momentos depois, na mesa redonda. Tal como em casa de um amigo, “devemos comportar-nos da melhor forma”: elogiar, tratar com respeito e dignidade, e observar, “ser uma esponja”. Tal como nos trilhos, “deixar apenas pegadas”. Em viagem, tanto somos embaixadores do nosso país, recordava Thor, como influenciadores da nossa comunidade, por maior ou menor que ela seja, mas também das pessoas com quem nos cruzamos ao longo da viagem, acrescentava JoAnna Haugen, escritora, antiga jornalista do sector das viagens e fundadora da Rooted, uma plataforma que trabalha na intersecção entre turismo sustentável, storytelling, e impacto social.
Levar um saco para recolher lixo durante as caminhadas, participar numa acção de restauro de um trilho ou num projecto de ciência cidadã. “As estatísticas são chocantes mas não acho que tenhamos de pensar assim tanto para nos tornarmos bons cidadãos globais”, contrapunha a norte-americana. JoAnna, por exemplo, decidiu nunca visitar a Antárctida, uma vez que o crescimento do turismo na região está a contribuir para acelerar o desaparecimento da mesma, e prefere viajar para fazer longas caminhadas de semanas, “uma óptima estratégia de encontro à sustentabilidade”: a pegada ecológica é reduzida e, por serem áreas mais rurais, acaba por ficar alojada e comer não só sempre em lugares diferentes todos os dias, como em projectos familiares, contribuindo para a economia local de uma forma mais equitativa.
No domingo, JoAnna voltava a palco para lembrar o papel positivo que todos podemos ter, tanto na forma como viajamos e no contributo que deixamos no destino, como na forma como partilhamos as experiências vividas em viagem, sobretudo nas redes sociais. Voltar ao porquê. Num inquérito publicado pela Allianz Global Assistance em 2018, mais de um terço dos millennials assumia tentar enganar os seus seguidores ao fazer as férias parecerem melhores nas redes sociais do que estavam, de facto, a ser; 65% do total dos inquiridos fazia-o para tentar deixá-los com inveja e 51% para competir com outros que faziam o mesmo. Outro estudo indicava que 40% escolhia o destino com base no Instagram.
Daí que as fotografias e vídeos depois resultem numa repetição até à exaustão, sem reflectirem as “nuances” e “complexidades” inerentes a qualquer comunidade. Mudar o impacto do turismo e das viagens nos destinos passa também por mudar a forma como os mostramos: desafia a narrativa dominante, tem em conta as palavras usadas e os preconceitos e perspectivas pessoais, adiciona contexto histórico, cultural, logístico, ou sensorial, e cria uma narrativa equilibrada foram algumas das dicas deixadas em palco por JoAnna. “Tanto nas viagens como na escrita, a coisa com que mais lutas é o estereótipo”, haveria de recordar o escritor José Luís Peixoto.
“Achei que todas as aventuras já tinham sido feitas”
Mas nem só de lições e reflexões viveu o ABVP Travel Fest, um evento organizado pela Associação de Bloggers de Viagem Portugueses. Houve também lugar a muita da mais pura inspiração a viajar ao longo do fim-de-semana, com a partilha de experiências e trabalhos à volta do mundo. Conhecemos várias tradições únicas da Indonésia, Índia, Chade, Etiópia ou China através das imagens do espanhol Arturo López Illana. Mergulhámos nas tribos e minorias étnicas de Angola através das imagens de José Silva Pinto, para regressar ao país africano (e não só) nos voos acrobáticos sobre paisagens imensas e maravilhosas com os drones de Artur Carvalho.
Com o brasileiro Guilherme Canever descobrimos que existem dez “países que não existem” e que para a maioria das pessoas que ali vive “não importa se é um país ou outro”, a ligação é “com a terra”. Talvez a divergência que leva os territórios a declarar unilateralmente a independência seja, por vezes, mais política ou económica do que cultural, mas Guilherme não deixou de lembrar que “esse nacionalismo que critica e que faz parte do problema é também o que procura quando viaja, essa questão da identidade” “Não quero viajar para um lugar igual aos outros.”
Rimo-nos com a audácia e honestidade de Janek Rubeš, do projecto Honest Guide. E voltámos a rir, a cantar, e a chorar com a montanha-russa de emoções que é a forma brilhante e descontraída com que David Freitas partilha as suas viagens até Catió, na Guiné-Bissau, no projecto Ambulance for Hearts. No domingo, foi um Teatro Jordão muito bem composto a levantar-se para uma das maiores ovações do evento. Foram vendidos mais de 230 bilhetes e, para o ano, Filipe Morato Gomes, presidente da ABVP, ambiciona ter casa cheia num evento que, mais do que dois dias de conferências, se tornou uma “microfamília” de apaixonados por viagens. A próxima edição será de novo em Guimarães e nem será preciso esperar um ano: o quarto ABVP Travel Fest está marcado para 11 e 12 de Maio.
Numa lição de humildade e perserverança, a última e mais aguardada palestra do festival devolveu-nos o mundo. “Achei que todas as aventuras já tinham sido feitas”, lançava Thor. Dez anos depois, o dinamarquês tornou-se em Julho a primeira pessoa de sempre a visitar todos os países do mundo sem voar ou regressar a casa. Num mundo sobrecarregado de viajantes e imagens de viagens, ainda é possível fazer algo único.
Com um mapa do mundo como cenário, Thor fez a plateia viajar à Polónia, onde a generosidade de Maria lhe mostrou que “um desconhecido é apenas um amigo que ainda não conhecemos”. “Mudou-me como pessoa.” Balançámos a bordo de um dos muitos cargueiros onde viajou durante vários dias de tempestade e imaginámos com Thor o cheiro dos pinheiros a chegar ao convés muito antes de se avistar terra na chegada ao Canadá. Sentimos o desespero de tantas tentativas frustradas de entrar na Guiné Equatorial, o único momento em que pensou em desistir. Ou o azar de, a nove países da meta, ver os quatro dias estimados para chegar a Tuvalu transformarem-se em mais de dois anos de pandemia em Hong Kong.
Apesar dos contratempos, dos sacrifícios, dos meses perdidos em logística, Thor continua a “ter algo positivo a dizer sobre todos os países do mundo”. Tentem testá-lo: terá uma história pessoal a contar sobre cada lugar. “Em todos os países do mundo alguém me ajudou a continuar.”
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