Uma relação marcada por uma consciência pesada histórica

(Foto: Joseph/AP)

O Haiti tem experimentado desde fevereiro de 2024 um recrudescimento da crise que o assola. Sua crise é tamanha que até conseguiu romper a barreira midiática, que até aqui se ocupou com as guerras na Ucrânia e em Gaza. A sequência dos eventos não vem muito ao caso, porque o que nos interessa é tratar desse contexto bilateral preciso, ou, mais especificamente, desse recalque francês de diferentes facetas em relação ao Haiti.

Como falar na França sobre Toussaint-L´Ouverture, herói haitiano da emancipação do Haiti? Neste início de abril, o Haiti comemora a morte do precursor de sua independência, François-Dominique Toussaint L´Ouverture, que morreu no dia 7 de abril de 1803, enterrado vivo por Napoleão Bonaparte em uma cela gelada do Forte de Joux, na Franche-Comté. Toussaint L´Ouverture, ex-escravo que se tornou um general da Revolução Francesa, se juntou à República quando ela, em 1794, optou pela abolição da escravidão. Como governador do território, chamado então de Saint-Domingue, expulsou os invasores ingleses e espanhóis. Ao restituir as leis “antigas”, e com elas a escravidão, Napoleão quebrou o pacto da universalidade dos direitos humanos, assumido pelos signatários da nova convenção. Atraído para uma armadilha, o governador Toussaint L´Ouverture foi preso pelos militares enviados pelo Primeiro-Cônsul, e transferido para Joux. Esse episódio pouco glorioso encontrou na França um silêncio eloquente, difícil de se tranpor. Foi preciso esperar até 1998 para o primeiro reconhecimento oficial. Uma placa comemorativa, lembrando “a memória de Toussaint L´Ouverture, combatente da liberdade”, foi afixada no Panteão naquele ano.

O restabelecimento da escravidão, a prisão de Toussaint L´Ouverture – quem melhor personificava as virtudes republicanas –, e a guilhotina – que lhe tirou a vida – ainda hoje desafiam a consciência dos franceses, 221 anos depois. Para além de suas muitas ambiguidades, L´Ouverture foi o responsável pela inauguração das perspectivas associadas à Nova Aliança, baseadas nos valores do Iluminismo que os antigos mestres e escravos compartilhavam. Uma memória e uma mensagem que os haitianos cultivam e lembram na França, na Navarra e na Suíça, há vários anos, convidando os franceses, suíços e outros europeus a compartilharem com eles a memória do que foi, infelizmente, brutalmente interrompido pelas mãos do general Bonaparte. O prefeito da pequena cidade de La Cluse-et-Mijoux, responsável pelo Forte de Joux, organiza todos os anos uma celebração laica no castelo-prisão para os participantes da peregrinação republicana.

Dois eminentes historiadores descreveram a reviravolta moral e política almejada por Bonaparte como sendo uma espécie de demência colonial [1]. A demência colonial remonta a 1697, quando a monarquia francesa estabeleceu o sistema de plantações escravagistas. Em 1802, ao encerrar sua breve experiência republicana, constituiu um outro momento chave. Haiti – Saint-Domingue – tem sido, desde então, o objeto de uma espécie de lobotomia nacional que fez apagar da memória francesa todo vestígio de seu passado colonial. “Pérola do Caribe”, Saint-Domingue, enriqueceu a monarquia borbônica com seu café e seu açúcar, ainda no século XVIII, riqueza esta adquirida às custas da feroz exploração de mão de obra africana deportada da costa dos escravos. Não havia ali “reprodução” humana, como em outras Américas açucareiras, mas sim um sistema de esgotamento no trabalho programado por cerca de sete anos, “compensado” por uma reposição garantida pela importação massiva e regular de “madeira de ébano” africana. Essa violência, embora extrema, ainda que regulada por um rigoroso “código negro” – quase nunca respeitado –, proporcionou aos seus iniciadores – o rei, uma aristocracia açucareira não residente, os armadores de Bordéus, Nantes e La Rochelle – excepcionais rendimentos. Tanto que o capital acumulado nesse processo deu origem a muitas fortunas industriais e comerciais que conhecemos no século XIX. Um capital que havia sido suspenso em 1794 pela abolição da escravidão decretada pelos Convencionalistas, impulsionados pelas demandas republicanas de pessoas negras. Os latifundiários, preocupados em recuperar os lucros perdidos após a abolição e a Revolução, exerceram com sucesso uma enorme pressão sobre Napoleão. O status quo colonial, escravista, foi restaurado, no papel, no ano de 1802, por um Primeiro-Cônsul mais interessado no influxo de francos-ouro. Foi essa demência – que floresceu sobre a ganância – que selou seu destino. Rejeitando essa regressão estatutária, os “escravos” haitianos pegaram em armas e derrotaram, em Vertières, o corpo expedicionário de Napoleão[2], no ano de 1803.

A demência colonial, o comércio contínuo de escravos, o ciclo curto de vida dos trabalhadores foram excluídos da memória nacional, alienados dos programas escolares, do mesmo modo que a derrota sofrida pelos soldados de Napoleão pelo exército de escravizados revoltosos[3]. O presidente da Fundação para a Memória da Escravidão, Jean-Marc Ayrault, lamentou publicamente o acontecido em 2023, por ocasião do 220º aniversário da morte de Toussaint-L´Ouverture.

A conquista da independência pelo Haiti, em 1804, distanciou ainda mais esses países. A primeira visita de um presidente francês ocorreu em 2010, com Nicolas Sarkozy. Mas foi preciso esperar 2015 para que ocorresse uma primeira viagem oficial, dessa vez realizada por François Hollande. O primeiro centenário da independência, em 1904, e o segundo, em 2004, não cativaram nem Émile Loubet nem Jacques Chirac, que presidiam o país à época. Em 1904, a França enviou apenas algumas pinturas comemorativas. Em 2004, ela elaborou um relatório intitulado “O Haiti e a França”, assinado por Régis Debray, a pedido do ministro das Relações Exteriores[4]. Esta dupla ausência não justificada – ao menos publicamente –, ressalta um grande constrangimento. A França condicionou o reconhecimento da independência haitiana ao pagamento de uma indenização em francos-ouro, obrigando o Haiti a “compensar” os antigos colonos franceses pela perda de suas terras e escravos. Após o desdobramento de uma grande frota francesa ao largo de Porto Príncipe, em 1825, o governo haitiano concordou em pagar os 150 milhões exigidos por Charles X, e a quantia foi reduzida para 90 milhões sob a batuta de Louis Philippe. O Haiti pagou o montante no ano de 1883, mas os juros da dívida só foram sanados em 1950 [5].

Este tratado desigual não suscita apenas uma questão de moralidade. Segundo o economista Thomas Piketty, o processo influenciou “o desenvolvimento da ilha que foi determinado pela questão da indenização. […] Este tributo representava mais de 300% da renda nacional do Haiti em 1825. […] O pagamento médio foi de cerca de 5% da renda nacional haitiana por ano entre 1840 e 1915”. Corrigir essa injustiça representaria para a França, ainda segundo o economista, um valor “de 1% da dívida pública atual. […] Para o Haiti, isso faria uma enorme diferença em termos de investimentos e infraestrutura”[6].

Esse litígio gerou uma consciência pesada do lado francês, por sua vez ancorada em uma negação assumida até então por todos os chefes de Estado. “O pedido haitiano” (de reparação financeira), como está escrito no relatório Debray, “não tem fundamento jurídico, exceto […] o de requalificar atos do passado”.

As “caçarolas” da história, penduradas e arrastadas pelos franceses permitem entender a distância estrutural de sua relação com o Haiti: visitas presidenciais tardias, ausência do Haiti nos programas escolares, contorno do passivo da dívida da independência liquidada em 1950 e, por fim, declarações homeopáticas sobre as crises cíclicas dos últimos anos. Em 2010, Nicolas Sarkozy; em 2015, François Hollande; em 2023 e 2024, Emmanuel Macron, cada um a seu modo, proferiram palavras de elegante e cautelosa solidariedade. Para citar o Ministério francês das Relações Exteriores, “A França e o Haiti compartilham uma longa história, marcada por uma cooperação de múltiplas facetas, cujas ações e parceiros testemunham a profundidade e a diversidade dessas relações (sic)…”.

No dia 8 de março de 2024, Victorin Lurel, senador de Guadalupe, escreveu ao presidente da República sobre a crise haitiana, “desapontado com a aparente falta de entusiasmo da França em relação ao Haiti […] levando em conta a imensidão da dívida pública, financeira e moral […] que a França deve ao povo haitiano.”

[1] Yves Benot, Marcel Dorigny, La démence coloniale sous Napoléon, Paris, La Découverte, 2006. 

[2] Jean Claude Bruffaerts et Jean Marie Théodat, Haïti, épopée d’une nation, Paris, Hémisphères Éditions, 2023.

[3]  Jean-Pierre Le Glaunec, L’Armée indigène. La défaite de Napoléon en Haïti, Paris, Lux Éditeur, 2021.

[4] Régis Debray, Haïti et la France, Paris, La Table ronde, 2004. 

[5] Jean-Claude Bruffarts, Marcel Dorigny, Gusti-Klara Gaillard, Jean-Marie Théodat, Haïti-France, les chaînes de la dette : le rapport Mackau, Paris, Hémisphères, 2022. 

[6] Thomas Piketty, Une brève histoire de l’égalité, Paris, Seuil, 2021, pp 109-113.

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Jean-Jacques Kourliandsky é Diretor do “Observatório da América Latina” junto à Fundação Jean Jaurès, na França, é especialista em análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe, e autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014). Colabora frequentemente com o “Observatório da Imprensa”, no Brasil, em parceria com o Laboratório de Estudos do Discurso (LABOR) e com o Laboratório de Estudos da Leitura (LIRE), ambos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).


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