Sob o Sol de Cabo Verde, ninguém nega os seus efeitos

Entre os agricultores de Cabo Verde não há negacionistas do clima. Todos sentem na pele e no sustento os efeitos das Mudanças Climáticas, que desregulam estações, lhes salinizam a água de rega e aumentam as pragas, entre outros desafios. São o fact-checking vivo dos estudos cinzentos, validando as teorias e os cenários de uma terra que, cada vez mais, exige resiliência e adaptação.

Seguindo pela estrada de Ribeira de Picos (Santa Cruz), o cenário é bastante verde e frondoso, quase um oásis comparado com a paisagem saheliana de outras partes da ilha de Santiago. É aí que encontramos Adilson Gonçalves, conhecido por Di, de 37 anos e um dos agricultores mais jovens da zona. Filho de agricultor, cresceu no meio dos campos da Ribeira e foi nesse mesmo cenário que desenvolveu a paixão pela agricultura.

Assim, em 2015, passou a dedicar-se ao cultivo da propriedade do seu pai que, devido à avançada idade, já vê difícil lidar com o trabalho duro e desafiante de quem tira o sustento da terra.

Adilson, que além da agricultura trabalha com pecuária e é também apicultor, tem o 8.º ano de escolaridade e várias formações na área, oferecidas pela Câmara Municipal, Ministério da Agricultura, INIDA e diferentes parceiros e projectos, em mudanças climáticas e boas práticas agrícolas.

E garante, que tudo o que dizem os estudos sobre o tema, e que por vezes parece tão abstracto, apocalíptico e “futurístico”, já se verificam no terreno.

Justino Lopes

Um outro caminho, no mesmo concelho, leva-nos a Justino Lopes, àquele que já foi o maior complexo agro-alimentar do país. Com cerca de 67 hectares, “o celeiro de Cabo Verde, tinha tudo. Tinha fábrica, produzia 50 a 60 toneladas de banana, exportava para Portugal…”

Hoje, o cenário é diferente. Razões complexas (políticas, económicas e sociais) que ninguém, no terreno, se delonga a aprofundar, levaram ao seu declínio. Menos de metade dos terrenos está cultivada e há cada vez menos trabalhadores.

Tal como na zona de Adilson, também aqui a agricultura é uma actividade de rostos envelhecidos, e entre eles encontramos João Varela, de 60 anos, que começou a trabalhar em Justino Lopes aos 18.

Como conta, neste momento, agricultores não chegam aos 50, e sócios, para a licença de exploração deste terreno estatal, são apenas 14.

“Muitos emigraram, outros morreram, outros reformaram-se”. Não houve reposição de pessoal.

“Hoje todos os jovens estão focados para a emigração, em ir para onde podem achar uma vida melhor”, refere João Varela. Ademais, mesmo os que ficam, fogem da agricultura. “O sector primário é um sector muito triste” em Cabo Verde, porque não é respeitado, nem gera riqueza para quem nele trabalha, lamenta.

E é um dos sectores mais afectados pelas mudanças climáticas. Também aqui, aliás, ninguém duvida das mesmas e da mão humana que as provoca.

“Todos os agricultores da Justino Lopes acreditam nas Mudanças Climáticas”, garante João Lopes, que acrescenta que o próprio Ministério da Agricultura lhes tem dado informações sobre o tema. “O sistema climático é como ‘eles’ falam”.

Mas então o que se passa com o sistema climático e como isso impacta na agricultura? Vejamos alguns dos factores mais impactantes.

Aumento das temperaturas

Um dos principais factores climáticos, fruto das Mudanças Climáticas, que impactam a vida de todos e o sector agrícola, neste caso concreto, é o aumento da temperatura.

Se ainda dúvidas restassem, os últimos meses tiraram-nas, com o ano de 2023 e os primeiros meses de 2024 a bater recordes históricos.

“Este ano em Cabo Verde, aliás, no mundo inteiro, é o ano que mais teve calor, é o ano com temperatura mais alta”, diz João Varela, lembrando que para um “país que já é seco” por natureza, o impacto é ainda maior.

Um padrão que tem vindo a ser progressivo a um ritmo alarmante, dizem os cientistas, o que é corroborado pelos agricultores, no terreno.

De acordo com o Plano Nacional de Adaptação às Mudanças Climáticas de Cabo Verde (NAP CV) de 2021, no país, “depois de 1990, a temperatura aumentou 0,04°C /ano”. Isto, em média, uma vez que o aumento foi sendo crescente.

O futuro dependerá das acções tomadas hoje, a nível mundial. Se a temperatura média global for de 1.5°C até o final do século, como visam as metas do Acordo de Paris, “a temperatura média anual em Cabo Verde pode aumentar entre 0.5°C a 1.5°C.” Com um aumento global de 2.0°C, pode chegar, aqui, a 1.0°C a 2.0°C, até 2100 como apontou o IPCC (Painel Intergovernamental para as Mudanças Climáticas) em 2021.

Mas as projecções parecem ser agora mais sombrias. O Relatório sobre a Lacuna de Emissões 2023 do PNUMA alerta que o fracasso em reduzir as emissões de gases de efeito estufa coloca a Terra em rota para um aquecimento de 2,5°C a 2,9°C neste século.

Além disso, o NAP CV também apresenta outras projecções, recentes, que sugerem um aumento em Cabo Verde de até 3,7°C, até 2090, num pior cenário.

Outras fontes indicam dados ligeiramente diferentes, mas todos coincidentes em dizer que a temperatura aumentou a um ritmo nunca antes visto, dado o período limitado de análise, e continua em ascensão.

Os agricultores, como referido, sentem esses efeitos todos os dias. E isso, garante Adilson, cria muitos problemas, e que elenca:

“Com essa quentura, a planta necessita de mais água, tem mais pragas, porque tempo quente é tempo de praga. Ora, quando há muitas pragas e há pouca água temos produção baixa”.

Adilson Gonçalves, agricultor de Ribeira dos Picos

Problemas também sentidos pelos outros cinco membros da Cooperativa agropecuária de Ribeira dos Picos, a que pertence.

Os impactos na agricultura já foram inclusive quantificados pelo Banco Mundial, que estima que em média, “entre 2007 e 2020 o aumento de um grau na temperatura esteja associado a uma redução adicional da taxa de crescimento de 4,15 pontos percentuais na agricultura”, conforme o “Memorando Económico do País 2023: Navegar em Mares Agitados”.

Pragas

Um outro problema relacionado com o calor é, como referiu Adilson, o aumento de pragas: as clássicas, mas também o surgimento de novas. Algo também enunciado em todos os estudos científicos.

“A partir das interacções entre os diversos elementos e factores climáticos, em termos de risco para o sector agrícola, podem surgir novas pragas e espécies invasoras, capazes de perturbar a boa produção e prejudicar a segurança alimentar”, lê-se, por exemplo, no já citado o NAP CV.

Na natureza equilíbrio é tudo e estas mudanças criam, pois, um desequilíbrio ambiental que leva, por exemplo, ao aumento da população de certas espécies que normalmente não são consideradas pragas. Com o crescimento populacional, o dano causado na agricultura aumenta também, colocando-as já no conceito de praga, e “exigindo medidas de contenção da população”, explica Aline Rendall, investigadora do INIDA.

Ao mesmo tempo, com a seca há uma redução da vegetação natural dos campos. Os bichos vão então para onde encontram alimento, ou seja, para os campos agrícolas.

“Muitas vezes, quando temos três, quatro anos de seca, os agricultores dizem que apareceu uma praga diferente. Às vezes, não é diferente. [São animais que] como tinham outras alternativas, não ocupavam muito a área agrícola. Mas, quando está seca, a opção de alimento diminui e vão para onde há alimento. Isso leva, muitas vezes, a surgimento de pragas, que não são aquelas pragas clássicas”, acrescenta.

Há, pois, as velhas, as pontuais e as novas e tudo somado antes “não tínhamos tantas pragas”, frisa Adilson. O cenário terá começado a acentuar-se, se a memória não lhe falha, a partir de 2018.

Conforme ilustra, surgiu, desde então, uma praga que se desconhecia, a cochonilha, que acabou com a produção de papaia. Os agricultores desanimaram, viam as plantações morrer, e não tinham “conhecimento de porque isso acontecia”.

Quando há surtos, chamam o INIDA que recolhe “folhas e frutos e vão fazer análises” e os apoia no combate às pragas, nomeadamente através da distribuição de predadores das pragas.

“Vamos buscar vida que criam no laboratório e largamos aqui”, conta.

E recebem também formação sobre o que devem usar para as combater de um modo amigo do ambiente, evitando agro-tóxicos, “que são prejudiciais, mesmo para a terra, fazem aquela lixiviação, enfim, um monte de factores”.

Adilson, aliás, garante fazer uma agricultura biológica, usando restos de vegetais para a compostagem e outros biofertilizantes, bem como biopesticidas. “Para ajudar com o sistema”.

Também em Justino Lopes, “as pragas aumentam cada vez mais” e soma-se à falta de água, complicando a vida dos agricultores. Este é um problema nacional, considera João Varela.

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João Varela, agricultor em Justino Lopes

“Não é só em Santa Cruz, é a ilha de Santiago em geral, e até outra ilhas. Todo o Cabo Verde tem agricultores e a situação dos agricultores é igual. Essa é a situação do agricultor”…

Menos água

Quando se fala em agricultura, a eterna questão da falta de água é incontornável, e apesar de as secas cíclicas que sempre afectaram Cabo Verde, há mudanças nos padrões de precipitação.

A irregularidade da precipitação, na verdade, nunca foi tão pronunciada e tende a piorar, dizem os estudos. “Há uma tendência de diminuição das quantidades das precipitações”, frisa o NAP CV. Os dados do IPCC indicam que essa redução pode variar entre 5% a 10%, até ao final do século, podendo atingir os 20%, com um aumento de temperatura global de 2.0ºC (ao invés dos 1,5 pretendidos).

Os cálculos presentes já corroboram os impactos. “Em média, entre 2007 e 2020, a diminuição do desvio padrão da chuva anual está associada a uma redução de 3,11 pontos percentuais na taxa de crescimento da produção agrícola”, sustenta o Banco Mundial, no Memorando de 2023.

E nos terrenos, não há quem não sinta as transformações.Na localidade de Ribeira dos Picos, antigamente a água era abundante por toda parte. Todos faziam rega por alagamento e a água nunca faltava, relembra Adilson.

Os agricultores pensavam que essa abundância perduraria, “mas infelizmente as coisas mudam”. Já não há água “riba chão”, como nos seus tempos de criança, em que percorria longas distâncias sempre com os pés na água e onde bastava colocar um “tubo no chão” para extrair o líquido. “Não usávamos combustível nem motor.”

Hoje, há escassez e a esse problema agrava-se com o calor. A água, nomeadamente a da rega alagada, “seca mais rápido devido à temperatura”, assinala o agricultor.

Novos tempos pedem novos métodos. Uma boa parte dos agricultores já adoptou o sistema gota-a-gota. Adilson, que o implementou há pouco mais de dois anos é, agora, defensor deste sistema, pois permite uma gestão mais eficiente da água. No entanto, lamenta, “muitas pessoas não têm consciência da rega localizada, ficaram com aquela tradição na cabeça de que rega alagada dá mais”. Uma ideia que diz ser errada, e que está a prejudicar a disponibilidade de água.

Além do uso do sistema gota-a-gota, Adilson selecciona culturas adaptadas ao actual quadro climático, como plantas mais resistentes, que necessitam de menos água.

Também em Justino Lopes, em toda a propriedade, o método de rega usado é o gota-a-gota, “com água de furo”. Nem que quisessem fazer de outro modo, não seria possível. A “água não dá para alagamento”, conta João Varela. De qualquer forma, “com a gota-a-gota temos mais rendimento, é muito mais fácil poupar em tudo”, refere.

Um aspecto interessante e “amigo do ambiente” que merece destaque é o uso das energias renováveis a que a associação de agricultores da Justino Lopes aderiu. A associação instalou um sistema de energia solar para extrair água num poço, um projecto apoiado pelo GEF -Small Grants Programme (que cobriu 75% dos custos) e que tem dado resultados excelentes, permitindo uma poupança de cerca de 70 contos de energia por mês.

“Com tanto sol que Cabo Verde tem, o país podia ter 30, 40, 50 furos equipado com painéis solares, sendo que ajuda agricultores a ganhar o pão de cada dia. Não é ser fã da energia solar, é a realidade. O país deveria investir mais nisso para ajudar a quebrar os gastos”, defende o agricultor.

Fenómenos extremos

Na natureza, nos ecossistemas, há uma intricada rede de interdependências entre os elementos, onde cada aspecto influencia os demais.

Assim, “as temperaturas mais elevadas intensificarão o ciclo hidrológico, resultando em eventos de chuvas extremas mais frequentes durante a estação de chuva. Portanto, os eventos pluviométricos extremos mais frequentes/intensos, combinados com a diminuição da chuva total, reforçarão o padrão de ‘nunca chove, mas quando chove, chove torrencialmente’ observado em Cabo Verde nos últimos anos, e em outras regiões secas do mundo”, lê-se no memorando, Navegar em mares agitados, do Banco Mundial.

Os agricultores conhecem bem o chavão citado. Quando chove, “é pouco tempo, mas chove muito e arrasta a terra toda por aí abaixo”, conta Adilson Gonçalves.

A sua zona, Ribeira dos Picos, é aliás uma das bacias com maior risco de inundações de Cabo Verde. De acordo com o jovem agricultor, têm sido levadas a cabo medidas de mitigação ao longo dos anos, como a plantação de acácias ou babosas “para diminuir erosão, mas nem toda a gente tem consciência”, e até há quem danifique essas plantas, lamenta.

As “fortes inundações momentâneas e o escoamento superficial resultantes também causam perdas em lotes agrícolas localizados em áreas baixas e costeiras”, lembra, por seu lado, o NAP CV.

E a Salinidade

A água escasseia, o calor aperta, a precipitação extrema provoca danos e, a par disso, há ainda uma outra grande preocupação: a intrusão salina.

“A água salgada já entrou na comunidade”, desabafa Adilson. O efeito é visível. “Com o correr do tempo temos reparado que quando regamos o chão, o solo fica esbranquiçado”, conta. Após a rega os terrenos cobrem-se de um manto esbranquiçado.

São problemas que Adilson associa ao excesso de bombagem para a rega alagada. “Às vezes tiramos mais do que aquilo que [a natureza] nos dá, mas é a lei da vida, porque temos família para alimentar…”

Em Cabo Verde, onde não há rios e nascentes, usam-se, pois, os furos, muitos dos quais situados na zona costeira. No entanto, a disponibilidade de água subterrânea também é limitada e também os estudos mostram que a contínua extracção está a aumentar a intrusão de água salgada, que irá contaminar os lençóis freáticos, pondo em causa a qualidade da água. Além da sobreexploração, esse problema é exacerbado pelo aumento do nível do mar causado pelas Mudanças Climáticas.

Um estudo intitulado “Past and Future sea level in the archipelago of Cabo Verde”, disponível no Portal do Clima, refere que a elevação do nível do mar no século XX teve uma velocidade média de 1 a 2 mm/ano, sendo a mais rápida nos últimos 3000 anos. Nos últimos 10 anos, (o estudo é de 2021) continuou a acelerar e atingiu 4,3 mm/ano em média. Entretanto, o seu autor, D. le Bars, usou dados dos observatórios de Palmeira e Porto Grande e conclui que Cabo Verde, entre 1992-2019, registou uma elevação semelhante à mundial: 3 mm/ano. Quanto ao futuro, o certo é que continuará a subir. Só não se sabe é ao certo quanto. “O nível do mar em 2100 em Cabo Verde será entre 30 cm e 120 cm mais alto do que durante o período de 1986-2005, dependendo das emissões e das incertezas na resposta climática”, lê-se.

O mar vai então subindo e entrando e, em conjunto, como referido, com outros factores, o sal corre nos campos. O efeito já se vê no chão e na produção. Adilson menciona que a produção de banana diminuiu devido à salinidade do solo, e a escolha dos terrenos para cultivo de outros produtos como papaia também requer cuidado, pois estes não resistem bem à água salobra.

E até o sabor de alguns produtos vai mudando com o aumento da salinidade. “Não fica com o aquele sabor que tinha.”

Tudo isto vai exigindo algo “conhecimento para plantar plantas que se adaptem” aos novos problemas.

Na Justino Lopes, o problema é também notado. “Temos falta de água, estamos perto do mar e assim a água salga. Quando a água está salgada, a produção baixa”, resume João Varela.

O problema intensificou-se desde há alguns anos, “quando a chuva deixou de chover”.

“A água salgada começou a subir e está a subir cada vez mais”. Felizmente, a Barragem de Figueira Gorda equilibra um pouco a salubridade. “A água desce para o lençol freático o que ajuda um bocadinho. Se não fosse essa barragem não sabemos como estaríamos”.

Assim, apesar da salinização ainda vai dando para fazer alguma prática agrícola. “Se fosse impossível não estaríamos aqui”, comenta de forma bem-humorada.

Solução? João Varela recita o que ouviu dos técnicos: não é fazer mais perfurações, “agora é preciso é trabalhar com a água do mar. Dessalinizar”.

Reportagem realizada no âmbito do projecto Terra África, implementado pela CFI – Agência Francesa de Desenvolvimento dos Media. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1179 de 3 de Julho de 2024.

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