SÃO PAULO – Ao obstruir o registro de Corina Yoris como candidata, a ditadura de Nicolás Maduro acabou de vez com qualquer ilusão de eleições livres e justas na Venezuela. Essa, segundo analistas ouvidos pelo Estadão, era justamente a aposta do Itamaraty, que evitava fazer críticas públicas ao regime – até agora.
Embora tenha adotado um tom mais brando que outros vizinhos sul-americanos e reafirmado que é contra as sanções, o ministério das Relações Exteriores expressou preocupação com o processo eleitoral na Venezuela, o que indica uma mudança de posicionamento. “Parece ter sido ditado pelo Departamento de Estado dos EUA”, reagiu Caracas.
Como mostrou o Estadão, o Brasil se irritou com a quebra do acordo e o próprio Lula avalia fazer uma crítica pública, depois do esforço para reabilitar Nicolás Maduro.
“A aposta do governo era tentar trazer Maduro para perto novamente para de, alguma maneira, ajudar a costurar uma transição pacífica porque não interessa enquanto País que a situação na Venezuela degringole ainda mais”, afirma a professora do Departamento de Relações Internacionais da Unifesp Carolina Pedroso. Para ela, o governo esperou enquanto foi possível por uma sinalização de que o Palácio de Miraflores estaria disposto a colaborar.
À medida em que a votação se aproxima, no entanto, a ditadura de Nicolás Maduro deixa claro que não vai cumprir o Acordo de Barbados, como ficou conhecida a promessa de eleições livres e justas na Venezuela. A principal figura da oposição, María Corina Machado, está inelegível, seus assessores mais próximos foram presos e Corina Yoris, que deveria substituí-la nas urnas, denunciou que foi impedida de registrar a candidatura.
“A candidatura das duas Corinas é a que teria mais condições de vencer Maduro até pela mobilização das primárias e pela grande adesão do anti-chavismo à liderança de María Corina Machado. Isso torna evidente como esses acordos não foram cumpridos por Maduro”, afirma Carolina Pedroso.
Os problemas, que se acumulam desde que Nicolás Maduro ameaçou anexar o Essequibo da Guiana, no movimento que a oposição denunciou como uma cortina de fumaça antes das eleições, tornou a posição do governo sobre a Venezuela insustentável.
“Ficou muito claro que o que vai acontecer na Venezuela não é uma eleição, é um ritual de consagração de Nicolás Maduro”, afirma o analista Mauricio Santoro.
Enquanto a oposição discute o que fazer a partir de agora, a comunidade internacional aumenta a pressão. As críticas vêm até mesmo de governos mais simpáticos a Nicolás Maduro, como o de Lula, no Brasil, e o de Gustavo Petro, na Colômbia, ambos de esquerda.
No caso brasileiro, também pesa para a mudança de posição a queda recente na popularidade do petista, apontada pelos principais institutos de pesquisa do País, avalia Mauricio Santoro, cientista político, professor de relações internacionais e colaborador do Centro de Estudos Político-Estratégicos da Marinha.
“O senso comum diz que diplomacia não dá voto, mas o mundo mudou. Pode até não dar voto, mas tira voto. É um dos elementos da formação da identidade política em um ambiente tão polarizado”, afirma. “Parte considerável do eleitorado rejeita esse defesa de regimes autoritários, sobretudo Venezuela e Rússia. Isso tem impacto. E esse impacto é ainda maior porque muitas pessoas que votaram em Lula votaram menos por uma adesão ao programa político e mais porque viram nele uma alternativa a um projeto autoritário. Essas pessoas se frustram com a defesa ideológica a regimes autoritários”.
Se a política externa para Venezuela sob Jair Bolsonaro era marcada pelo isolamento total, inclusive com o fechamento da embaixada brasileira em Caracas, Lula retomou laços com Caracas. E foi além: relativizou o conceito de democracia para defender o aliado histórico; anunciou o “começo da volta de Maduro” ao recebê-lo com pompas em Brasília e sugerir que as críticas seriam parte de uma “narrativa”.
Todo esse acolhimento mostra uma recusa do presidente em entender que a Venezuela hoje é muito diferente do que era quando ele chegou ao Palácio do Planalto pela primeira, em 2003, afirma Santoro ecoando uma crítica que tem sido feita com frequência à política externa do Lula 3. “Maduro não tem a legitimidade democrática que Hugo Chávez em algum momento teve, vem em uma escalada autoritária que já dura há pelo menos dez anos, com uma crise econômica e uma crise de refugiados”, lembra.
Apesar da mudança de posição sobre as eleições, contudo, especialistas acreditam que Brasília deve manter os canais de diálogo com Caracas abertos. “Há uma pressão, mas é uma pressão que não quer romper os laços”, afirma Carolina Pedroso.
Nos próximos dias e semanas, concorda Santoro, o Itamaraty deve continuar criticando a Venezuela, mas sempre alguns tons abaixo de outros países sul-americanos como a Argentina de Javier Milei e o Uruguai de Luis Lacalle Pou, da direita, e também do Chile, liderado por Gabriel Boric, de esquerda.
Foi o que se viu, por exemplo, às margens da Cúpula de líderes sul-americanos, em Brasília, quando Lula criou atritos com Boric e Lacalle Pou ao defender Maduro, sem mencionar as denúncias de violações dos direitos humanos na Venezuela.
Essas diferenças expõem os desafios da proposta de integração regional, defendida por Lula, especialmente com a América do Sul polarizada, sem a confluência proporcionada pela “onda rosa”, como ficou conhecida a guinada que à esquerda do começo do século. Exemplo disso foi a tentativa de reavivar a União de Nações Sul-Americanas (Unsaul), que não vingou.
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