Para Portugal, o 25 de abril é um monumento. Uma data simbólica. Um divisor de águas que, em 1974, marcou não só o ponto de cesura entre o fim da ditadura e o nascimento da democracia, mas também o colapso do colonialismo e o sucesso definitivo das lutas pela independência das chamadas “províncias ultramarinas” lusitanas, nomeadamente em África. «É um momento fundador da história do país, de tal forma que hoje ninguém — exceto uma pequena minoria — se atreve a pô-lo em questão ou contestá-lo publicamente», diz a L’Osservatore Romano Fernando Tavares Pimenta, historiador e investigador do Centro de Estudos de História do Atlântico-Alberto Vieira, da Madeira.
As notas de “Grândola, Vila Morena”, uma canção de Zeca Afonso dedicada ao movimento proletário, até então proibida pela censura, que na manhã do 25 de abril deu o La à revolução, e os cravos enfiados nos canhões e espingardas, correm o risco de serem banalizados e de se tornarem fotogramas a guardar nostalgicamente no baú de uma memória romântica. Em vez disso, «algo de singular e único aconteceu realmente nesse dia, pois o que tinha começado como um golpe de Estado militar de alguns capitães em particular — os “capitães de abril” — fartos do regime salazarista do “Estado Novo”, que via Marcelo Caetano no poder desde 1968, transformou-se quase imediatamente numa revolução popular pacífica: queriam o fim da ditadura e o fim das guerras em curso nas colónias africanas portuguesas, e o povo “libertado” saiu espontaneamente à rua apoiando a ação dos militares» reunidos no Movimento das Forças Armadas (Mfa). «Não foi, pois, o poder das armas», escreveu Franco Lorenzoni, correspondente no país em 1974-1975, «que derrubou o fascismo português, mas a renúncia explícita ao seu uso por parte dos militares, que permitiu à população solidarizar-se com aquela revolta e conquistar finalmente a liberdade e a democracia».
Depois destes sucessos, vieram o pluralismo partidário e a construção de um sistema social e de proteção social à semelhança de outros países da Europa Ocidental, «uma conquista civilizacional», diz Pimenta. Porque tudo isto permitiu também que uma grande parte da população saísse do atraso: «Infelizmente, estávamos na condição de Estado rico num país muito empobrecido (nos anos 60 e 70, cerca de 1,5 milhões de pessoas saíram de Portugal também para fugir à pobreza) e, para dar um exemplo, com a maior taxa de mortalidade infantil do continente. Havia uma grande vontade de mudar as estruturas económicas e sociais».
Ao mesmo tempo, porém, de certa forma, a “revolução dos cravos” é também uma consequência do processo de lutas anticoloniais em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. «Pode dizer-se com segurança que o 25 de abril não teria existido sem as guerras pela independência africana, que progressivamente desgastaram, extenuaram e empobreceram o país, e, por outro lado, esse dia foi crucial para que os países africanos conseguissem aquilo por que lutavam desde 1961», salienta.
A atenção da Igreja Católica também foi significativa na altura. Destaca-se a audiência que Paulo vi concedeu em 1970 aos líderes da luta anticolonial, o guineense Amílcar Cabral, o moçambicano Marcelino dos Santos e o angolano António Agostinho Neto. Mas «vale a pena referir sobretudo o papel de acompanhamento que desempenhou no período que se seguiu, nomeadamente o da construção de estruturas democráticas liberais de matriz europeia e ocidental em Portugal, e o desenvolvimento social dos países africanos».
As palavras do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, que poucos dias antes das comemorações do cinquentenário da revolução se manifestou a favor de uma espécie de compensação «aos países que sofreram com o tráfico transatlântico de escravos», estão hoje a suscitar polémica no mundo político português.
A proposta foi imediatamente travada pelo executivo de centro-direita, investido no início de abril sob a liderança de Luís Montenegro, líder da coligação “Aliança Democrática”: numa declaração retomada pela Reuters, o Governo explicou que não havia «nenhum processo ou programa de ações específicas» para pagar reparações e sublinhou que pretendia «aprofundar as relações mútuas, o respeito pela verdade histórica e uma cooperação cada vez mais intensa e estreita, baseada na reconciliação de povos irmãos». Estas tomadas de posição, explicou Pimenta, «tocam um terreno muito delicado e correm sempre o risco de gerar tensões se forem feitas de forma generalizada. Entretanto, há que fazer distinções, não se pode correr o risco de simplificar. Em primeiro lugar, o colonialismo — que se desenvolveu entre os séculos xv e xx — é diferente da escravatura propriamente dita, que foi legalmente abolida no antigo império português durante o século xix . Segundo: a experiência colonial não foi igual em todo o lado, tendo assumido diferentes especificidades em vários territórios. Terceiro: estas são questões que devem ser aprofundadas também do ponto de vista da investigação histórica, antes de serem partilhadas, talvez estudando concretamente as formas de indemnizar aqueles que concretamente sofreram violências ou massacres. Por fim, acrescento, pode haver hoje formas mais frutuosas de cooperação a nível económico, social, cultural e político que visem o desenvolvimento, em diálogo com as comunidades locais, como, entre outras coisas, já acontece em grande parte na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (Cplp). No seu seio, há processos que vão para além das simples relações diplomáticas: entre Portugal e as antigas províncias ultramarinas há um grau de colaboração muito diferente do que acontece, por exemplo, entre outros países da Europa Ocidental e as suas antigas colónias». Uma especificidade na qual Lisboa, pretende continuar a apostar.
Roberto Paglialonga
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