Peru libera agrotóxicos proibidos na Europa

Um trapo era a única proteção que Lorgio Ñaupas usava nos primeiros anos aplicando agrotóxicos em campos de algodão. Décadas depois, ele ainda guarda memórias desagradáveis.

“Uma vez quase morri”, disse o homem de 57 anos que hoje trabalha em uma fazenda no Vale de Chillón, ao norte de Lima. “Passei uma semana inteira pulverizando [a plantação], tive dor de cabeça e vomitei”. 

Ele também recorda o dia em que acidentalmente derramou o herbicida paraquat na perna de um de seus filhos, provocando um ferimento que até hoje deixa uma cicatriz. Ñaupas diz que suas experiências ruins lhe ensinaram que os pesticidas não são apenas um veneno potente para pragas e ervas daninhas, mas também perigosos à saúde humana e ao solo. Hoje ele se dedica à agroecologia, que promove práticas mais sustentáveis de cultivo e manejo do solo, sem usar essas substâncias químicas. 

“Por que permitimos agrotóxicos tão perigosos? Não há outras maneiras de evitar que nos envenenemos?”, questionou Ñaupas.

A partir de uma análise do mercado peruano, o Dialogue Earth e o Salud con Lupa encontraram brechas nos sistemas de avaliação e autorização de agrotóxicos no país. Com isso, gigantes do setor como a chinesa Syngenta, cuja fábrica e sede estão instaladas na Suíça, podem registrar e vender no Peru produtos hoje proibidos em outros países como os da Europa.  

Muitos registros de produtos químicos no Peru têm validade permanente, ao contrário de Chile, Costa Rica e União Europeia, que limitam as autorizações a uma década — depois disto, elas precisam ser revistas com base nos estudos mais recentes.

No Peru, depois que uma empresa recebe autorização para vender um agrotóxico, seus impactos não são reavaliados com dados técnicos ou estudos científicos, a menos que haja iniciativas extraordinárias por parte dos órgãos reguladores. A Syngenta tem autorização para vender no país 42 pesticidas proibidos na União Europeia e na Suíça.

Por que permitimos agrotóxicos tão perigosos? Não há outras maneiras de evitar que nos envenenemos?

Lorgio Ñaupas, agricultor

Em 2011, o Peru atualizou seu sistema de registro de pesticidas para adequá-lo aos padrões ambientais exigidos pela Comunidade Andina, bloco econômico sul-americano. Mas esse esforço não tornou o sistema mais rígido ou transparente. 

Pelo contrário, a avaliação costuma priorizar testes dos próprios fabricantes, e não de análises científicas independentes. Além disso, continua difícil o acesso às evidências que embasam as autorizações — o Dialogue Earth só conseguiu a documentação dos produtos da Syngenta após um pedido com base na Lei de Transparência e Acesso à Informação Pública do Peru.

Na última década, o Peru restringiu apenas nove pesticidas por possíveis riscos à saúde humana e ao meio ambiente, segundo nossa análise do sistema de avaliação. Já a União Europeia barrou 119 agroquímicos no mesmo período. 

Uma dessas proibições foi a do herbicida que queimou a perna do filho de Ñaupas: o paraquat, um dos produtos mais vendidos pela Syngenta e até 28 vezes mais tóxico do que o glifosato, outro agrotóxico danoso e bastante conhecido. O paraquat só foi proibido em 2021, apesar de evidências científicas alertarem para seus efeitos nocivos desde 1983. 

Ainda assim, descobrimos que o paraquat continua circulando no Peru, por meio de contrabando pela fronteira terrestre com o Equador, onde seu uso é legal.

“Quando a plantação de palmito é pulverizada com paraquat, nossos olhos ardem e depois temos tontura e diarreia grave”, disse Frobin Gil, agricultor que vive em Pedro Vicente Maldonado, município na província equatoriana de Pichincha conhecido como “a capital do palmito”. Gil não sabia que o pesticida que ele usa para fumigar o palmito já foi proibido no Peru e em outras partes do mundo devido à sua alta toxicidade.

Uma situação semelhante é vista no município de General Lagos, na província argentina de Santa Fé, onde são cultivados soja e legumes resistentes a herbicidas. Com o uso permitido no país, o paraquat também é aplicado lá.

“Se o tomateiro for muito alto e eu precisar aplicar o pesticida na copa da árvore, ele cai no meu rosto — tenho que me lavar imediatamente porque arde muito”, diz Miguel Romero, que pulveriza o agroquímico em cultivos locais.

Trabalhador observa grãos de soja em uma fazenda em Firmat, na província de Santa Fé, Argentina. O país ainda permite o uso de paraquat, pesticida recentemente proibido no Peru devido a seus efeitos nocivos à saúde (Imagem: Patricio Murphy / Alamy)

Peru: legislação permissiva

Quando uma empresa solicita o registro de um agrotóxico no Peru, ela envia um relatório ao Serviço Nacional de Saúde Agrícola (Senasa), responsável por liberar ou não o produto e pelo monitoramento das condições em que os alimentos são cultivados. O Senasa faz uma avaliação própria e solicita pareceres de outros dois órgãos: a avaliação ambiental da Direção de Gestão Ambiental Agrícola (DGAA), subordinada ao Ministério de Desenvolvimento Agrário e Irrigação (Midagri); e a avaliação de impacto à saúde humana da Direção-Geral de Saúde Ambiental e Segurança Alimentar, subordinada ao Ministério da Saúde.

Os pareceres dessas entidades usam como base os relatórios e estudos anexados pelos fabricantes. Ao analisar as autorizações dos pesticidas mais vendidos pela Syngenta no Peru, a reportagem concluiu que a maioria estava baseada em estudos antigos, alguns datados de quatro décadas atrás.

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O herbicida diquat — proibido na União Europeia em 2019 e na Suíça em 2022 — é permitido no Peru desde 2015, e um dos estudos usados de base é de 1985, quando se afirmava que a substância não era perigosa. No mesmo ano em que reguladores peruanos autorizaram o diquat, um estudo na União Europeia apontava que a pulverização do pesticida era preocupante, uma vez que ele poderia causar distúrbios ao metabolismo humano — algo contestado pela Syngenta.

Outro caso é a atrazina, proibida em 44 países, inclusive na Suíça, devido aos riscos de contaminação das fontes de água. Em 2004, a atrazina foi proibida na União Europeia, mas duas décadas depois ainda é usada no Peru, onde seu impacto na água tampouco é monitorado. A Syngenta foi uma das primeiras empresas a registrar a atrazina no país latino-americano, na década de 1990.

Já o mancozeb é um fungicida proibido na Suíça desde 2021. Há dois anos, ele ganhou destaque no Peru depois que sua cor azulada tingiu a mão de quem manejava ramos de cebolinha em mercados locais. A licença de uso do mancozeb foi atualizada em 2016, apesar das evidências científicas indicarem seus efeitos negativos para o sistema endócrino humano.

O Peru também permite o uso do glifosato, embora ele seja descrito como “provavelmente cancerígeno” pela Organização Mundial da Saúde. Em 2023, a autorização do glifosato foi prorrogada por dez anos na União Europeia, resultado do lobby da Syngenta e de outras sete empresas, que podem ter influenciado os pareceres técnicos sobre os riscos apresentados pelo agrotóxico. O glifosato também segue em uso na Suíça, após a população ter rejeitado, em 2021, o banimento de pesticidas sintéticos.

Setor influente

No Peru, os fabricantes de pesticidas defendem seus interesses por meio da Cultivida, associação de 23 empresas do ramo presidida pela Syngenta. Entre fevereiro e novembro de 2023, a Cultivida realizou uma série de reuniões com funcionários do Midagri para desenvolver plataformas que ajudassem a avaliar os riscos ambientais de seus produtos. 

Em 11 de abril, o lançamento das propostas ocorreu em um evento a portas fechadas. Além do ministério, apenas representantes de organizações agroquímicas e empresariais participaram. A primeira alternativa apresentada pela associação mede os níveis de resíduos de pesticidas deixados nas águas superficiais pela chuva, enquanto que a segunda calcula o impacto das substâncias no solo e nas fontes de água ao redor das plantações.

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O Midagri incorporou a segunda opção no protocolo de registro de um novo pesticida. Mas o ministério não mencionou que, entre as organizações que apoiaram o desenvolvimento desses programas, estava a CropLife, associação internacional de produtores de agroquímicos da qual a Cultivida faz parte, e que inclui a Syngenta, ao lado de outras grandes do setor, como Bayer, FMC, BASF, Sumitomo Chemical e Corteva Agrosciences. 

Procurada pela reportagem, a Cultivida negou que esses fabricantes estejam interferindo na avaliação de agrotóxicos por meio da oferta de ferramentas tecnológicas. Mas algumas organizações da sociedade civil desconfiam dos motivos por trás dessas ações. 

“Os fabricantes oferecem essas ferramentas como um salvo-conduto para dizer que estão controlando a maneira na qual os pesticidas são aplicados nas plantações”, diz Juan Sánchez, consultor em políticas de desenvolvimento rural e diretor da Rede Peruana de Agricultura Orgânica.

Jaime Delgado, advogado e ex-presidente da Aspec, organização peruana de direitos do consumidor, reforça que as empresas a serem avaliadas não deveriam se envolver na formulação do sistema de avaliação do governo.

Nossa reportagem identificou ainda sinais de interseção entre trabalhadores do governo e da indústria. Juan Carlos Arévalo Rengifo, é funcionário da DGAA, encarregada de avaliar os impactos ambientais dos pesticidas no Peru, desde 2018. Ele emitiu relatórios favoráveis aos pesticidas atrazina, brodifacoum, ciproconazol e profenofós. Entre 2014 e 2016, ele atuou como representante agrícola da Syngenta.

Produtor usa métodos tradicionais para arar campos no Peru

Produtor usa métodos tradicionais para arar campos no Peru. A Syngenta forneceu assistência técnica e treinamento a agricultores do país, inclusive a respeito do uso de pesticidas em cultivos tradicionais (Imagem: John Warburton-Lee Photography / Alamy)

Enquanto trabalhava na Syngenta, Arévalo forneceu assistência técnica sobre o uso de pesticidas em culturas agroindustriais e tradicionais, treinou agricultores sobre o manejo de agroquímicos e também comercializou essas substâncias. Em seguida, Arévalo realizou trabalhos semelhantes nas empresas Novagro e Neoagrum antes de ingressar no governo.

Conforme o advogado trabalhista Ricardo Valderrama, essa situação poderia representar um conflito de interesses, já que um ex-funcionário teria participado da avaliação das solicitações de registro de sua antiga empresa: “Se ele não se absteve e for identificado um conflito de interesses, ele poderia até ser demitido”.

Procurado para comentar o caso, Arévalo disse que não houve conflito de interesses, pois teria trabalhado na área de vendas da Syngenta, e não no registro de produtos. 

“Os relatórios ainda são revisados pelo coordenador, pelo especialista jurídico e pelo diretor [da DGAA], justamente para evitar qualquer favorecimento”, defendeu Arévalo. “Como não tenho nenhum relacionamento familiar, de amizade ou comercial com as empresas, minha objetividade, boa-fé e julgamento não foram afetados no momento do meu trabalho”.

O Midagri e a Syngenta Peru foram contatados pela reportagem, mas não responderam até o momento da publicação. 

Esta reportagem foi produzida pelo Dialogue Earth em colaboração com a Salud con Lupa.


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