Os jovens médicos que há 50 anos iniciaram uma revolução em Portugal. A da Saúde

“Chamaram-me de urgência para fazer um parto em Ferreira do Alentejo e lá fui, claro, a pretender mostrar confiança. Estavam lá umas freiras da Misericórdia, habituadas a fazer partos, e acabou por correr tudo bem. No fim foram buscar uma garrafinha de amêndoa amarga para bebermos atrás do biombo para comemorar num cúmplice pecadilho a vida, todas a rir e felizes por ter corrido tudo bem. Mas eu não sabia se ia correr tudo bem. Tinha assistido a uns partos na Magalhães Coutinho [maternidade de Lisboa inaugurada em 1931] e tentei fazer igual. Mas se fosse uma coisa complicada…”

“Os partos eram o nosso grande quebra-cabeças”, recorda Ana Jorge. “Sempre que chegava uma mulher em trabalho de parto, a primeira coisa era tentar perceber se dava para chegar a Setúbal. Se não dava, lá tínhamos de ser nós a fazê-lo.”

O homem debicado pelas galinhas

António Leuschner tinha a mesma idade de Ana Jorge quando cumpriu o SMP em Vila Real, Trás-os-Montes, também em 1976. Fala numa “espécie de antecâmara do SNS” porque, apesar de o direito à saúde ter sido inscrito na Constituição redigida e aprovada nesse ano, dois anos depois do 25 de Abril, o diploma que constituiria o SNS só seria aprovado mais tarde, em 1979. “Nós fomos em março e a Constituição foi aprovada em abril, portanto tivemos uma experiência na altura inédita – fomos os primeiros funcionários do SNS antes do tempo”, recorda o psiquiatra. 

“Antes de haver o SNS já havia médicos e serviços médicos na periferia que eram, de alguma forma, a guarda avançada do SNS.” E foi com alguns desses profissionais, os mais antigos, com consultórios privados, que os jovens enfrentaram um dos primeiros e poucos entraves à experiência sem precedentes, que democratizou o acesso a cuidados de saúde e que em três décadas ajudou a catapultar Portugal da cauda da Europa para o 12.º melhor sistema de saúde do mundo.

Com outros 13 médicos, o grupo de Leuschner foi o segundo a chegar a Vila Real para cumprir o SMP, pelo que já havia uma certa estrutura instalada no terreno pelo grupo mais pequeno que foram substituir. “Mas o grupo anterior tinha tido atividade fundamentalmente no hospital e não chegou a estar um ano, porque foi em julho e veio embora no fim de fevereiro. Nós trabalhávamos em Vila Real, Santa Marta de Penaguião, Vila Pouca de Aguiar, Ribeira de Pena, Murça, Alijó e Sabrosa”, enumera de memória. 

Todos faziam horas no hospital de Vila Real e depois, “em cada dia, íamos em grupos de dois fazer consultas, domicílios e outros serviços a um destes sítios – e os acessos não eram como hoje, não havia estradas, não havia sequer jipes ou desses veículos para percorrer alguns daqueles caminhos. Havia situações, por exemplo em Ribeira de Pena, em que só conseguíamos chegar a casa das pessoas de burro.”

Ao início, as relações com alguns dos médicos locais, “mais velhos” e que olhavam para os jovens recém-chegados “com alguma desconfiança”, foram difíceis, recorda Leuschner. Leonor Duarte de Almeida também se lembra de “uma certa retração inicial” dos médicos locais, “que estavam instalados há imensos anos e que de repente viram aparecer ali uma data de miúdos, todos divertidos e simpáticos e alegres e motivados para trabalhar”. 

“Achavam que éramos, enfim, agentes do 25 de Abril e, portanto, que íamos pôr em causa… Repare que os médicos eram tradicionalmente pessoas bem instaladas na sociedade, proprietários também, alguns tentavam criar dúvidas na população, que depois nos contava…”, acrescenta José Manuel Boavida, atual presidente da Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal, que cumpriu o SMP em Reguengos de Monsaraz e depois no sotavento algarvio, entre 1978 e 1979.

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