“O que é que devemos pagar? O ouro do Brasil? A escravatura? E quanto vale um escravo?”: como se faz a “monetização” da reparação colonial?

Presidente da República quer ver Portugal a “liderar” a reparação colonial, mas a sugestão não foi bem recebida nem pelos partidos nem pela opinião pública. Sem consenso nacional, há ainda uma outra questão: como se paga pelos erros do passado?

O Presidente da República abriu “uma caixa de Pandora” ao defender que Portugal deve “pagar os custos” da era colonial, assume à CNN Portugal o embaixador Francisco Seixas da Costa, que considera que as declarações de Marcelo Rebelo de Sousa “levantam um problema complicado”, sobretudo para o Governo português, que, diz, enfrenta agora uma polémica que pode ser “divisiva” internamente e que até “pode ter consequências noutros países europeus, que podem ficar incomodados com a circunstância de Portugal” querer “liderar” este processo.

Também para Paulo Portas, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, esta iniciativa do Presidente da República, de trazer para o debate um tema que “não tem procura” nas ex-colónias, “não nos coloca particularmente bem do ponto de vista das nossas relações com os antigos impérios europeus”, que, na sua maioria, não foram além do pedido de desculpas formal.

Aliás, sublinha, entre os vários antigos impérios europeus – da França ao Reino Unido -, apenas a Alemanha “fez parcialmente aquilo que o Presidente da República sugeriu”, com a criação de um problema de indemnização de descendentes de duas tribos na atual Namíbia, na sequência dos massacres em 1904 e 1908, no valor de 1.100 milhões de euros.

“Ou seja, a posição que o Presidente da República tomou não é a posição dominante nos antigos impérios europeus, hoje Estados europeus democráticos”, conclui Paulo Portas na rubrica Global do Jornal Nacional da TVI (do mesmo grupo da CNN Portugal).

Para Francisco Seixas da Costa, que foi embaixador no Brasil entre 2005 e 2009, “o que é curioso” neste caso é que “a esmagadora maioria” das ex-colónias “nunca suscitaram a questão”. “Parece um pouco estranho ser o antigo colonizador a suscitá-la”, observa, acrescentando que “uma coisa seria responder a um anseio expresso, nomeadamente em termos institucionais próprios, pelas antigas colónias”. “Outra coisa é ser o próprio colonizador a fazer um ato de contrição pública”, completa.

Contrariando este argumento, o historiador Manuel Loff afirma que esta questão está a ser levantada pelos “descendentes daqueles que foram colonizados”, mas que durante a era colonial também muito se falou e julgou sobre o tema. “Ou por acaso julga-se que não se julgaram os massacres e a violência colonial antes e durante a guerra colonial? Como é que todas as pessoas que recusam esta discussão e a entendem como artificial explicam as dezenas de milhares de deserções do exército português?”, questiona.

“Como é que se faz a monetização” dos erros do passado?

No sábado, já depois da divulgação das declarações do Presidente durante um jantar com jornalistas estrangeiros, Marcelo Rebelo de Sousa concretizou que Portugal deve “liderar o processo” de reparação das ex-colónias, sugerindo o perdão de dívidas, a concessão de linhas de crédito e de financiamento que, disse, têm sido estabelecidas.

No mesmo dia, o Governo assegurou que “não esteve e não está em causa nenhum processo ou programa de ações específicas com o propósito” de reparação pelo passado colonial português e defendeu que se pautará “pela mesma linha” de executivos anteriores.

Ora, essa linha, concretizava o executivo o comunicado, assenta em “gestos e programas de cooperação de reconhecimento da verdade histórica com isenção e imparcialidade”. Além disso, o Governo lembra alguns projetos financiados nas antigas colónias, como o Museu da Luta da Libertação Nacional, em Angola, a musealização do campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, e a recuperação da rampa dos escravos na Ilha de Moçambique.

O embaixador Francisco Seixas da Costa denota alguma “incomodidade” expressa neste comunicado por parte do Governo em relação a esta questão – que, de resto, se estendeu pelos partidos da direita, como o CDS, que se recusa a “revisitar heranças coloniais”, e a Iniciativa Liberal, que acusou Marcelo Rebelo de Sousa de ter prioridades “descabidas”. O Chega, por sua vez, anunciou que vai apresentar um voto de condenação do Presidente da República pelas suas declarações, classificando-as como “uma traição a Portugal, ao povo português e à própria história de Portugal”.

Para Francisco Seixas da Costa, “um país da nossa dimensão, para pilotar esta questão [da reparação colonial], tem de ter um elevado consenso nacional à volta disso”, o que parece não ser o caso. À esquerda, os partidos não revelaram se concordam ou não com a posição de Marcelo, mas defendem que este é um debate que deve ser feito, com a coordenadora do Bloco, Mariana Mortágua, a argumentar que Portugal não deve ter “medo de repensar a sua história, de discutir a sua história, de questionar os traumas do passado”.

“A condição para Portugal poder estar num debate destes é haver um grande consenso nacional no reconhecimento desta culpabilidade histórica. Sem esse consenso, esta questão será extremamente divisiva e negativa para a coesão nacional”, adverte.

Ora, não havendo consenso nacional sobre esta matéria, há ainda uma outra questão incontornável para o embaixador: “Como é que se faz a monetização disto [do colonialismo]? Como é que atribuímos um valor monetário aos exageros e rapinas [do colonialismo]?”, questiona Francisco Seixas da Costa.

“O que é que devemos pagar? É o ouro do Brasil? É a escravatura da Guiné? É a escravatura de Angola? E quanto vale um escravo? Quanto valem 10 mil escravos? Isto é uma coisa extremamente complexa”, diz, concluindo que “não conseguimos fazer essa monetização”.

É que “Portugal tem dívidas muito sérias no plano internacional que tem de pagar e que não pode esquecer”, argumenta. “Nós temos uma dívida que está acima dos 100% do PIB. Se fôssemos um país rico, podiamo-nos dar ao luxo de ceder algumas generosidades excecionais. Não somos”, vinca, acrescentando que, ainda assim, e mesmo “sendo um país pobre”, Portugal tem feito “alguns perdões de dívida” às ex-colónias. Mas “não podemos funcionar como se fossemos uma potência a brotar dinheiro”, sublinha o embaixador.

Para o historiador Manuel Loff, a indemnização do Estado português às ex-colónias pode começar com a iniciativa que descreve como a “mais simples de todas”: “devolver os bens culturais, artísticos e patrimoniais que foram roubados nas colónias.” O que, aliás, já foi feito por outras antigas potências colonizadoras, como a Alemanha, lembra, referindo-se às ex-colónias africanas da atual Namíbia, Tanzânia, Ruanda, Burundi, Togo e Camarões.

“Há um grande precedente à escala internacional para a devolução de obras de arte pilhadas em contexto de guerra”, argumenta o historiador, lembrando o período pós-Holocausto, quando a comunidade internacional concordou que se devia “proceder à devolução de obras que foram roubadas pelos nazis a famílias judaicas ou a museus nacionais de países ocupados, tendo vindo a ser reivindicadas, quando detetadas nas mãos de um qualquer colecionador privado, ou num museu público-privado”. Em muitos casos, lembra, as famílias “tiveram de levar os museus ou os colecionadores a tribunal” para recuperar o que era seu de direito.

No entender do historiador, tendo em conta as “riquezas sem conta” que a economia portuguesa arrecadou à conta do colonialismo, bem como as restantes antigas potências colonizadoras, “todos os países que praticaram colonialismo devem estar disponíveis, naquilo que deveriam ser as relações internacionais, para formas de indemnização”.

“Não há dinheiro que pague a reparação e os males terríveis da escravatura”

Depois de participar nas comemorações em Portugal dos 50 anos do 25 de Abril, e já no aeroporto em São Tomé, o presidente são-tomense assinalou que a questão da violência da colonização não está resolvida e considerou relevante que Portugal tenha abordado o assunto, a propósito do Dia da Liberdade. 

“A descolonização pode estar resolvida, mas os atos de maus-tratos, de violência e outros que aconteceram não estão resolvidos, portanto eu vejo isso [as declarações de Marcelo] com normalidade até porque ao nível de outras potências colonizadoras esse processo já está um bocado avançado, já está em discussão”, disse à Lusa Carlos Vila Nova, lembrando que “Portugal colonizou cinco países em África” e que essa colonização é parte da história destes países.

Do lado de Angola, Fernando Pacheco, ex-membro do Conselho da República no primeiro mandato governamental do presidente angolano, João Lourenço, sublinhou que “não há dinheiro que pague a reparação e os males terríveis da escravatura” e defendeu que as antigas potências colonizadoras devem ajudar os países a enfrentarem as atuais dificuldades, desde logo apoiando a educação e a investigação.

No seu entender, o mais importante neste processo “não é pensar em dinheiro”, mas em ações sólidas, como a atribuição de bolsas de estudos a estudantes angolanos, apoio ao sistema de ensino no geral ou apoio à investigação, sobretudo agrária.

“São alguns dos exemplos que penso que não são estapafúrdios, são coisas perfeitamente viáveis e que contribuiriam bastante para a melhoria da situação dos nossos países”, realçou.

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