Guiana, Suriname e Guiana Francesa, vizinhos sul-americanos relativamente desconhecidos para os brasileiros, fazem parte de uma região natural, localizada na porção centro-norte da América do Sul, denominada de região das Guianas.
Essa região natural abriga também porções dos territórios brasileiro e venezuelano, pois se estende do delta do rio Orenoco ao delta do rio Amazonas, abrangendo cerca de 2 milhões de km².
A grande marca geográfica dessa região é uma morfologia caracterizada pela presença de um maciço de rochas antigas, o planalto das Guianas, um clima sempre quente e úmido e uma vegetação de floresta, entrecortada pelos cursos de vários rios. A Guiana, especificamente, possui cerca de 85% do seu território ocupado pela floresta tropical. Quase 90% da população se concentra na planície litorânea, que corresponde a apenas 5% do território.
Colonizada efetivamente pelo Reino Unido, a Guiana se tornou um Estado independente em 1966 e, mesmo antes disso, já precisou enfrentar o desafio venezuelano em relação ao seu território. Ainda no período colonial, foi necessário recorrer a uma arbitragem internacional para definir a questão. A Venezuela reivindicava as terras a oeste do rio Essequibo, alegando que a região havia sido ocupada pelos espanhóis durante a colonização e, portanto, faria parte do território venezuelano.
O Reino Unido, por outro lado, entendia que a área havia sido tomada dos espanhóis pelos holandeses, que por sua vez perderam o controle da colônia para os ingleses, em 1814. Por se tratar de um território caracterizado por florestas impenetráveis, essa ocupação, de espanhóis ou de holandeses, teria se dado apenas “no papel”. O laudo arbitral, concluído em 1899, definiu as fronteiras em favor dos ingleses e o resultado foi amplamente aceito pelas partes, tendo sido refletido, inclusive, nos mapas venezuelanos do período que se seguiu.
Contudo, o falecimento, em 1949, de um dos advogados envolvidos na arbitragem e a posterior descoberta de um memorando escrito por ele, questionando a imparcialidade do julgamento e sugerindo um conluio entre o Reino Unido e o presidente da comissão de arbitragem, reascendeu a demanda venezuelana. No início da década de 1960, as notícias sobre uma provável descolonização da Guiana levaram a Venezuela a se pronunciar oficialmente, na ONU, rejeitando o resultado da arbitragem internacional que havia definido as fronteiras.
Pouco meses antes da independência, em 1966, foi firmado, então, o Acordo de Genebra, envolvendo o governo guianense, o Reino Unido e a Venezuela. O acordo, que se configura como uma espécie de memorando de entendimento, previa a formação de uma comissão mista que deveria buscar uma solução satisfatória e definitiva para a controvérsia. Caso o esforço dessa comissão falhasse, o que de fato ocorreu, a disputa seria levada a um órgão internacional competente ou ao Secretário-Geral da ONU.
Alguns episódios polêmicos marcaram os anos seguintes, como a ocupação da Ilha Ankoko, dividida entre os dois países pelo laudo arbitral de 1899, mas ocupada de fato pela Venezuela; ou como o apoio venezuelano a separatistas, descendentes de europeus, do distrito de Rupununi, sudoeste da Guiana, que insurgiram contra o governo guianense, buscando independência da região, ainda na década de 1960.
A despeito disso, a década de 1970 viu uma melhoria nas relações entre os Estados e, a partir de 1982, as conversações sobre o assunto passaram a se dar sob os bons ofícios do Secretário-Geral da ONU.
Em que pese um desentendimento ocorrido em 2007, quando uma unidade militar venezuelana destruiu com explosivos duas dragas que garimpavam no rio Cuyuni, na região de fronteira com a Guiana, o status quo foi sendo mantido, muito embora nenhum avanço real em termos de resolução tenha sido alcançado.
Uma disputa movida a petróleo
Em 2012, diante do início de pesquisas na costa guianense em busca de petróleo, a oposição venezuelana começou a acusar o governo de não se posicionar em relação à área reclamada, de modo que o conflito voltou a ganhar repercussão. A questão foi reaquecida também pela demanda guianense, no âmbito da ONU, em prol da extensão da plataforma continental do país, visando ampliar a área de exploração de petróleo.
Em 2017, em face da ausência de solução para o impasse, o Secretário-Geral da ONU, Antonio Guterrez, decidiu recorrer à Corte Internacional de Justiça (CIJ) como meio a ser utilizado para se buscar uma resolução, tendo em vista o que estava previsto no Acordo de Genebra, de 1966. Esse movimento foi contestado pela Venezuela e, em 2018, a Guiana iniciou um procedimento junto à CIJ, buscando reconhecer a validade do Laudo Arbitral. Em 2020, a Corte deliberou acerca de sua jurisdição sobre o caso, mesmo que a Venezuela tenha decidido não participar do processo.
A resposta venezuelana à decisão foi uma mudança de argumentos, alegando ser o pedido guianense inadmissível, já que o Reino Unido, originalmente parte da arbitragem internacional e do Acordo de Genebra, não seria uma das partes no processo jurídico atual. Em abril de 2023, a Corte deliberou em detrimento da Venezuela e a realização do referendo, no dia 3 de dezembro, em que eleitores venezuelanos aprovaram a transformação do território de Essequibo em um estado da Venezuela, elevou a disputa territorial a outro patamar.
Vale dizer que, nesse ínterim, a exploração do petróleo na Guiana fez o país obter um crescimento do PIB de mais de 60% no último ano, fazendo o PIB per capta triplicar. A despeito disso, ainda se trata de um país pequeno, de economia frágil, muito precário em aspectos sociais, econômicos, infraestruturais, dentre outros.
Para a Guiana, um país de geografia tão condicionante e de um histórico marcado por autoritarismo, empobrecimento e isolamento, pelo menos até o início da década de 1990, a perda territorial da região do Essequibo seria gravíssima. Cerca de 125 mil dos aproximadamente 800 mil habitantes do país residem nessa região riquíssima em recursos naturais, em sua maior parte ainda inexplorados.
Para a Venezuela, os ganhos seriam muitos, a começar pela cortina de fumaça revestida de esperança de melhorias econômicas no período eleitoral que se aproxima, passando pelos ganhos econômicos da possível exploração dos recursos abundantes da região e chegando até a uma possível saída aberta para o Oceano Atlântico (já que o litoral venezuelano está voltado para o mar do Caribe, relativamente fechado pela presença de várias ilhas).
Sem falar no ganho político. Esse, contudo, é menos provável, já que uma anexação de fato do território disputado poderia levar a impasses militares envolvendo também o Brasil, cujo território precisaria ser utilizado para uma incursão venezuelana significativa, e os Estados Unidos, parceiro militar de longa data da Guiana.
À Guiana, cuja soberania territorial se vê ameaçada, resta o apelo à diplomacia.
*Geraldine Rosas Duarte é professora do Departamento de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).
Este texto foi originalmente publicado no site The Conversation Brasil.
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