São Tomé e Príncipe vai assumir, este domingo, a presidência rotativa da CPLP por dois anos. O lema do encontro é a “Juventude e a Sustentabilidade na CPLP”, mas as reivindicações da juventude, nomeadamente no que toca aos direitos civis, caem muitas vezes “em ouvidos moucos” no seio da organização lusófona, considera o investigador Vasco Martins.
O analista considera que a presença da Guiné Equatorial na CPLP reflecte o que chama de “vazio moral” da organização e alerta que há problemas graves nesse país que também se registam noutros Estados-membros lusófonos, mas que a CPLP não tem capacidade de intervenção. Uma capacidade também limitada a nível económico, admite Vasco Martins, para quem os 27 anos da CPLP apenas deram resultados “tímidos, muito envergonhados e bastante magros”.
Sobre a presidência rotativa de Angola que agora termina, o investigador diz que Luanda “não avançou mais nem menos que outras presidências” e aponta que São Tomé e Príncipe deve insistir na mobilidade.
RFI: Quais são as ambições da presidência rotativa de São Tomé e Príncipe, pela primeira vez à frente da CPLP?
Vasco Martins, Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra: Não conhecendo ainda a agenda que vai sendo delineada pela presidência de São Tomé na CPLP eu diria que São Tomé enquanto país insular e de pequena dimensão terá sempre algum interesse em fazer-se representar num fórum como a CPLP que acaba por falar de igual por igual com países economicamente mais desenvolvidos mas, sobretudo, muito mais ricos como o caso do Brasil inclusivamente. Portanto, São Tomé e Príncipe terá um interesse profundo em desenvolver alguns dos mecanismos que foram desenvolvidos em presidências anteriores, sobretudo, o acordo de mobilidade. Já houve algumas alterações, houve uma pequena evolução em relação ao Cabo Verde e São Tomé e Portugal no sentido de se facilitar a emissão de vistos. A emissão de vistos é um verdadeiro pesadelo para muitos destes países da CPLP e São Tomé e Príncipe terá obviamente interesse em que a mobilidade seja um dos aspectos mais relevantes, dada inclusivamente a diáspora numerosa que São Tomé tem em países como Portugal.
Na cimeira em que Angola assumiu a presidência rotativa da CPLP, em Julho de 2021, foi aprovado pelos nove Estados-membros esse acordo da mobilidade. Ainda que tenha sido ratificado em 15 meses por todos, até agora só Portugal, Cabo Verde e Moçambique estão a aplicar. De uma forma geral, que avaliação é que faz deste acordo de mobilidade?
Eu acho que o acordo de mobilidade poderia ser mais extensivo porque o que o acordo de mobilidade faz é retirar algumas exigências – e que eram muitas – para a emissão de vistos, sobretudo, de países africanos para Portugal ou para a União Europeia, mas sobretudo para Portugal. Ou seja, retira uma série de elementos que eram requisito, inclusivamente cartas-convite, inclusivamente ter uma capacidade monetária ou financeira para voltar ao país de origem – eu lembro-me que quando tirei o meu primeiro visto para Angola, precisava de apresentar um extracto de conta bancária com pelo menos dez mil euros para poder entrar no país. Portanto, alguns destes elementos caíram.
Agora, o acordo de mobilidade, que é um acordo que me parece bem, acho que podíamos ir um pouco mais à frente no sentido de até pensar numa total supressão de vistos que seria muito mais relevante, tendo em conta aquilo que é a narrativa política que se vai criando à volta destes países, entre aspas, irmãos da CPLP. Mas isto tem sempre aquela questão mais burocrática. Tem que ver com o funcionamento dos próprios parlamentos nacionais, a capacidade de organização política desses parlamentos nacionais, no sentido em que até que ponto é que é fácil ou não aprovar este tipo de critérios, este tipo de acordos e depois pô-los em prática. Pôr em prática tem também que ver com a capacidade de serviços estrangeiros e fronteiras, da capacidade diplomática destes países de porem isto em andamento. Portugal consegue fazê-lo, Moçambique também o fez e Cabo Verde.
A presidência angolana apostou na transição digital para simplificar…
O que me parece a mim é que houve um foco grande na presidência de Angola em relação aquilo que era a transição digital. Em Portugal e no Brasil já muitos avanços em relação à transição digital, sobretudo naquilo que é o acesso burocrático do cidadão da CPLP que, em larga medida, tem que submeter documentos digitalmente em Portugal ou no Brasil mas tem que os apresentar fisicamente ou em formato físico no seu país de origem e muitas das vezes estes dois elementos não estão a combinar um com o outro.
Uma das coisas que Angola fez foi esta ideia de acelerar a transição digital para que as burocracias dos dois países, em larga maioria dos países da CPLP, conseguissem de alguma forma ser mais céleres na emissão de vistos, ser mais céleres na recolha de dados e na transmissão destes dados depois aos serviços competentes.
Outro grande pilar da presidência rotativa angolana da CPLP foi chamado o quarto pilar e era a economia. Que balanço é que faz de uma forma geral da presidência angolana que agora termina?
Eu acho que a presidência angolana tem que ser inserida comparada com presidências anteriores da CPLP. Nesse sentido, a presidência angolana não fez nem mais nem menos do que aquilo que foram as anteriores presidências da CPLP. Temos que olhar para a relevância da própria CPLP, temos que olhar para a capacidade que a CPLP tem em interferir e inferir na vida dos cidadãos e melhorá-la de alguma forma, sobretudo dentro daquilo que é a narrativa política que a esmagadora maioria dos partidos e dos actores políticos em todos os países da CPLP defendem que é a ideia da mobilidade, que é a ideia da supressão e que é a ideia de uma irmandade política, isto é o elemento que subjaz totalmente à CPLP e é esse elemento que politicamente depois vai-se desenvolvendo materialmente, imaterialmente e até burocraticamente.
Nesse sentido, a ideia de criar mobilidade, de criar um espaço mais comunitário não é uma ideia da presidência de Angola, aliás é uma ideia fundacional da CPLP. A presidência de Angola não avançou nem mais nem menos que outras presidências esse aspecto. Portanto, nesse sentido parece-me que houve, não diria entraves, mas houve limitações muito claras. Houve uma controvérsia em 2021 porque alguns canais de comunicação avançaram a notícia de que estava aparente uma supressão de vistos na CPLP, e a controvérsia que é alimentada precisamente pelo grande interesse que as pessoas têm sobre essa possível supressão. Esse objectivo final não é cumprido, não parece que vai ser cumprido com as próximas presidências da CPLP, nem com as anteriores.
Falou da narrativa política da mobilidade, da supressão de vistos, da irmandade até dos países-membros. Muitos apontam a falta de notoriedade e até de relevância da CPLP. Concretamente, até que ponto é que a CPLP tem melhorado a vida dos cidadãos nos países membros? Que sentido tem a CPLP 27 anos depois da sua criação?
Permita-me, primeiro, contextualizar a criação da CPLP naquilo que é a política externa portuguesa depois do 25 de Abril e ela caracteriza-se pela ideia de que Portugal tem que se fazer representar na maioria dos fóruns que sejam democráticos e que primem pelo Estado de direito. Nesse sentido, independentemente da forma qualitativa como Portugal se faz representar – às vezes tem missões militares que têm um punhado de pessoas lá – é a ideia de que Portugal consegue estar presente na esmagadora maioria dos fóruns internacionais, sobretudo daqueles países democráticos e em larga medida ocidentais, tirando aqueles que vêm da sua própria história, neste caso estamos a falar dos países de língua oficial portuguesa no continente africano e na América Latina. Nesse sentido, a CPLP é criada à luz de comunidades anglófonas e francófonas no sentido de criar também ali um espaço que seria uma terceira via de política externa portuguesa e querer criar esta comunidade, esta irmandade.
É uma iniciativa portuguesa que acompanham vários outros países. Vários outros países que têm sempre alguma dificuldade em se inserir na CPLP por várias razões. O Brasil é uma potência regional, quiçá mundial. Até que ponto o Brasil ganha tantos pontos ou não em estar na CPLP, mas depois o Lula vem a Portugal e do nada parece que a CPLP afinal é relevante. Portanto, a CPLP é mais uma organização regional em que os Estados conseguem muitas das vezes fazer eco dos seus próprios interesses nacionais e, a partir daí, ir criando esta ideia de comunidade.
Em larga medida, durante muitíssimos anos, sobretudo em Angola com a guerra civil de quase trinta anos, mas também Moçambique com uma guerra civil grande, estes países tiveram sempre alguma dificuldade em perceber exactamente como é que se inserem na CPLP, como é que se fazem representar na CPLP e depois que ganhos é que trazem com esse investimento público internacional e também de meios quer diplomáticos quer democráticos quer obviamente financeiros.
Portanto, a CPLP um ‘offshoot’ daquilo que foi uma história imperial de Portugal num contexto refundado, altamente refundado, democrático, democratizante, mas que continua a ter esta dificuldade de posicionamento, hoje porventura melhor.
Em termos económicos, que mais-valias é que a CPLP trouxe aos Estados-membros?
A economia é sempre o primeiro passo enquanto não é possível ter as lógicas das liberdades sociais e civis e da mobilidade civil nos espaços. Foi assim com a União Europeia, será assim com a CPLP se alguma vez chegarmos a esta ideia de supressão dos vistos. E em termos económicos aquilo que mais importa é a ideia de que a língua parece ser um elemento mais ou menos interessante naquilo que é o desenvolvimento económico dos países. Certamente o foi quando várias empresas portuguesas durante a crise
de 2008, 2011, 2012, 2013, os anos que quiser, quando muitos trabalhadores portugueses e trabalhadoras portuguesas foram para Angola, notou-se claramente que a língua era um elemento importante.
Por outro lado, se tivermos, por exemplo, um acordo de mobilidade de professores entre Brasil e Portugal, um professor português ou uma professora portuguesa que vai dar aulas para o Brasil, os estudantes brasileiros não entendem. Portanto, o conceito político da lusofonia que subjaz também a narrativa política da criação da CPLP tem já aí uma grande limitação. Portanto, é muito mais fácil olhar para as relações entre Portugal e o e os países africanos de língua oficial portuguesa que fazem parte da CPLP e, a partir daí, perceber até que ponto é que a CPLP consegue ser uma caixa-de-ressonância mais ou menos interessante para aquilo que é o desenvolvimento económico que toda a gente procura.
E nesse sentido, olhando para Angola mas olhando esmagadoramente para todos os países da CPLP sobretudo no continente africano, que mais-valias é que a CPLP trouxe em termos económicos já que a mobilidade ainda não é uma questão? Em termos económicos, que mais-valias é que a CPLP trouxe para todos estes países? Parece-me que os resultados são tímidos e muito envergonhados e bastante magros, no sentido em que as economias destes países foram, em larga medida, sendo desenvolvidas pelos seus próprios projectos, portanto, por projectos nacionais, mas acima de tudo pela cooperação e as relações económicas que foram estabelecendo com um país como a China e não necessariamente no âmbito da CPLP.
O desenvolvimento de Moçambique, o desenvolvimento de Angola e, em muito menor grau o desenvolvimento de São Tomé e também Cabo Verde – que aí sim vê-se que a CPLP poderá ser mais relevante – o país que foi o grande parceiro economicamente sobretudo como Angola foi a China. Nem sequer foi o Brasil. Portanto, a CPLP muitas das vezes não se consegue fazer sequer um fórum económico que nos permite olhar e analisar e chegar à conclusão de que a língua tem sido de facto ou é de facto um factor importante no desenvolvimento económico e na cooperação e na colaboração económica e que nesse sentido valerá a pena continuar a investir nesta ideia. A maioria dos angolanos não fala chinês, nem os moçambicanos. A maioria dos chineses não fala português e mesmo assim foi possível ter relações de colaboração mais ou menos positivas. Foi possível fazê-lo.
Portanto, nós temos que olhar para uma organização que tem quase trinta anos e dizer ‘OK muito bem’. Em 30 anos já foi produzido papel suficiente, já houve projectos suficientes, já houve rotatividade suficiente. Podemos então perceber e analisar os resultados e nesse sentido parece-me que os resultados são demasiado magros para aquilo que é um desejo político que me parece só genuíno e honesto, mas que muitas vezes fica nesta espuma da narrativa política, na conferência de imprensa, no discurso, nos encontros a cada dois anos para mudar, mas que depois na vida das pessoas, na actividade económica, na vida das empresas, na colaboração económica, na cooperação, nas trocas, nos balanços comerciais, etc, parece-me ter um impacto muito inconsequente.
O lema desta cimeira da CPLP que marca o arranque da presidência de São Tomé e Príncipe é “A Juventude e a Sustentabilidade na CPLP”. Ora, a juventude é afectada por altas taxas de desemprego nos países da CPLP em geral. Depois, há queixas de asfixia e silenciamento da juventude na Guiné Equatorial, em Angola, na Guiné-Bissau. Vai mudar alguma coisa?
Politicamente pode fazê-lo, mas a política não tem necessariamente uma consequência se não houver uma materialização da política que nós estamos a utilizar. Eu posso chegar aqui e dizer que a presença de São Tomé e Príncipe vai no sentido de melhorar as trocas e o conhecimento entre as juventudes dos países da CPLP, fomentar as perspectivas de emprego numa lógica solidária e de mobilidade. Mas eu depois tenho que ir ao meu parlamento, tenho que ir aos meus serviços, tenho que ir às minhas instituições nacionais e pôr estas coisas a andar.
É por isso que eu falo nesta ideia da narrativa política que depois não é materializada porque não é difícil para um líder ir para uma conferência de imprensa da CPLP e contarmos este tipo de estratégias e desenvolvimentos, mas depois tem que se ver com aquilo que são as lógicas da sua sociedade, da sua economia, das relações entre o Estado e a sociedade nacionais. Quer dizer, o que não se resolve internamente ou que é difícil de resolver domesticamente, dificilmente se consegue resolver num fórum internacional ou numa instituição internacional.
A cimeira acontece em São Tomé e Príncipe que vai assumir a presidência rotativa da CPLP. A advogada de um jovem que está em prisão preventiva há nove meses por causa do assalto ao quartel de 25 de Novembro escreveu uma carta aberta aos presidentes da CPLP a denunciar que “um filho da CPLP está a morrer” e que foram proibidas manifestações durante a semana da cimeira. Que leitura faz simbolicamente disto?
A minha leitura simbólica é a mesma que faço em relação à economia e esse é um caso paradigmático do que estamos a falar. Há uma capacidade da CPLP em criar uma narrativa política minimamente coesa entre os vários países que depois me parece muito pouco porosa àquilo que são as reivindicações mais práticas, reais daquilo que são eventos nacionais, neste caso, a prisão de um jovem ou a prisão de vários outros em
vários outros países-membros da CPLP, podemos escolher quase ao calhas. Em boa verdade, depois, os países da CPLP não deixam cair o véu da diplomacia, o véu da representação e este tipo de protestos muitas vezes cai em ouvidos moucos.
Repare que para uma presidência da CPLP ou para um país-membro da CPLP, poderíamos falar no caso de Portugal, por exemplo, condenar um tipo de prisões arbitrárias de jovens que fazem contestação política, quer nas ruas, quer nos meios digitais, quer dizer, esse representante de um país não estaria a condenar única e exclusivamente a Guiné Equatorial ou outro país qualquer. Estaria a condenar metade dos países da CPLP. E, portanto, isso ia criar um tipo de problemas políticos que ninguém quer. Não tem força, não tem garra na mandíbula para, de facto, tratar dos problemas e melhorar as situações. Nesse sentido, a CPLP acaba por ser sempre muito oca e impermeável a estes elementos. Mas esses elementos vai encontrá-los seja nos direitos sociais, seja nos direitos civis, seja na actividade económica, seja numa panóplia de situações.
O que a CPLP tem feito – melhor ou pior, mas tem tentado fazer – é esta ideia de troca de experiências no sentido de criar programas de formação, quer militares, quer judiciais, etc, não conheço os relatórios, não sei qual qualitativamente foi o resultado desse tipo de cooperações, mas acaba aí, em larga medida, a cooperação.
Quando estamos a falar de reivindicação política, seja por ordem democrática, seja de abertura económica, seja de reivindicação de direitos civis, seja de prisões arbitrárias, a lista é longa, a CPLP não tem, nem nunca teve e dificilmente terá, capacidade para intervir nesses aspectos.
A Guiné Equatorial é Estado-membro desde 2014, acabou por abolir a pena de morte no Código Penal, ainda que não o tenha feito na Constituição da República. A língua portuguesa ainda não foi implementada e continua a haver denúncias de prisões, tortura de dissidentes, repressão, activistas LGBT presos, etc. Para quem olha de fora, faz sentido esta adesão?
Eu posso lhe dizer o que digo nas minhas aulas e o que eu digo nas minhas aulas é que a adesão da Guiné Equatorial à CPLP é um momento que não se percebe muito bem porque é que acontece. Haverá ali alguns interesses do Brasil, haverá alguns interesses de Angola para que isso aconteça, mas não se percebe exactamente pragmaticamente quais são os resultados. Mesmo se estivermos a olhar numa ‘realpolitik’, uma lógica mais realista das relações nacionais, não se percebe muito bem porque é que isto está a acontecer.
Ao mesmo tempo, o que a entrada da Guiné Equatorial traz à CPLP, de um ponto de vista de uma análise política sobre as capacidades ou capacitação e da intervenção da organização, é de que parece haver um vazio moral e que deixa cair este manto de possibilidade da CPLP. A Guiné Equatorial não me parece um país que tenha critérios minimamente interessantes para entrar na CPLP, mas se comparar a Guiné Equatorial a outros países que já são membros, também poderíamos ter uma conversa sobre isso, sobretudo Angola por exemplo.
Mas, quer dizer, a Guiné Equatorial parece-me que tira um pouco do brilho narrativo da CPLP que era precisamente este da Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa. A Guiné Equatorial claramente não o é. A Guiné Equatorial claramente é um dos países mais corruptos do continente africano, um dos países porventura mais violento em que o Estado reprime mais as pessoas e, portanto, nesse sentido a CPLP acaba por perder qualitativamente algum do seu brio político com essa entrada, mas a lista que dá pode continuá-la. O problema aí é que à medida que você vai alongando essa lista de problemas graves, relativamente até de direitos humanos, eu acho que há um ponto em que vai começar a pôr alguns países da CPLP nessa lista. Vários. Nesse sentido, é essa contradição que tem, a meu ver, limitado substancialmente a capacidade de intervenção da CPLP.
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