Cozinha de Lisboa quer mudar “o sistema injusto” da gastronomia


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Ligue o som e veja uma compilação de momentos da sessão de março do ‘Curso Livre de Cozinha’, da editora Edições a Gosto. Vídeo: Inês Leote

O “molho castanho” já Dulce Silva o faz de cor. O filho mais novo reconhece-o apenas pelo olfato e a história da Guiné-Bissau conta-se com ele no paladar. A tradição dá-lhe outro nome: Caldo Mancarra, o que significa nem mais nem menos que caldo de amendoim (mancarra, na Guiné). Mas esta mulher guineense de 55 anos, imigrada em Lisboa desde os 20, nunca tinha encontrado cozinha para ele. Até agora.

No dia em que nos encontrámos, Dulce estava feita guardiã de uma panela de grandes dimensões, sempre interrompida por pedidos de “mais molho, por favor” e pela ansiedade dos provantes em desvendar o segredo deste caldo. Não tem nenhum, diz, perentória. O fascínio deve-se a “quase ninguém conhecer aqui” esse molho de uma África que parece viver tão longe das mesas portuguesas.

Dulce Silva, 55, esteve presente como a cozinheiro por trás do Caldo de Mancarra. Foto: Inês Leote

Para encurtar estas distâncias e juntar o mundo todo à mesma mesa, Paulo Amado, gastrónomo, decidiu abrir as portas à diversidade e à partilha: uma vez por mês, junta numa cozinha pessoas de várias áreas profissionais e geografias para discutir a interculturalidade e a falta de representatividade que temos à mesa, sem que nos apercebamos disso. Pelo meio, aprende-se que nas prateleiras dos supermercados há canela que não é bem canela ou que o caju se come com casca noutros países.

“Sou um humanista na gastronomia, este ano faço 25 anos disto, e descobri há alguns anos que quero usar a gastronomia como ferramenta de mudança social.” A este encontro de saberes e curiosidades, Paulo Amado chamou ‘Curso Livre de Cozinha’, uma ideia da editora Edições a Gosto, da qual é fundador. Tudo acontece na cozinha-restaurante desta editora, o Manja, situado numa antiga fábrica em Marvila.

Mas, aqui, Paulo escolhe ser personagem secundária, até figurante apenas. “Estou altamente empenhado em mudar um sistema de reconhecimento torto e injusto que é o da gastronomia, reflexo da sociedade em que vivemos – fraca de oportunidades dadas às mulheres, às pessoas de idade, aos de outras origens, especialmente as de países com cores de pele diferente.”

Paulo Amado é o coordenador do ‘Curso Livre de Cozinha’. Foto: Inês Leote

Um sistema do qual também ele já fez parte, até ter escolhido pegar no que melhor sabia fazer – falar de gastronomia – para fazer disso um motor de transformação social.

“Sou um humanista na gastronomia, este ano faço 25 anos disto, e descobri há alguns anos que quero usar a gastronomia como ferramenta de mudança social.”

PAULO AMADO, gastrónomo e fundador da Edições a Gosto

A primeira sessão do ‘Curso Livre de Cozinha’ foi em fevereiro. “Serve isto para dar a conhecer o trabalho de chefs africanos e afrodescendentes” e juntá-los ao talento de outros. Quem faz a apresentação é Kika Santos, cantora portuguesa nascida em Angola, de microfone na mão, desta vez não para cantar.

Está do outro lado do balcão, a partir de onde vai ser servido parte do saber. Parte, porque este curso nasce também sob a premissa de que todos têm algo importante para partilhar. À frente, Kika tem uma plateia de avental, de pé (e não sentada à mesa), atenta ao que ela diz. Tão atenta que não lhe perdoa as expressões. É interrompida: “Euro-africanos, não afrodescendentes”, alerta Hernâni Miguel, dono do restaurante Tabernáculo, em Lisboa, e um dos impulsionadores deste curso.

Os participantes da segunda sessão do ‘Curso Livre de Cozinha’, no Manja, Marvila. Foto: Inês Leote

Tudo tem tempo para ser questionado nesta cozinha, todos os termos, até a linguagem que se escolhe levar à mesa. É Luís Antunes, “o gajo dos vinhos”, quem o diz. “Como, bebo, escrevo e falo sobre isto”, por isso, “tenho um conselho”. A sala em suspense. “E se, nos restaurantes, começássemos a refeição por perguntar aos clientes “aceita um aperitivo?”, atira.

Diz ele que um bom escanção (o profissional responsável por cuidar da carta de bebidas de restaurantes, bares e lojas) “ganha logo um ordenado com esta pergunta, sem tirar o valor ao vinho ou outra coisa da refeição, que não se vê a ser feita nos nossos restaurantes”.

Logo se inicia um debate: que verbo pede a gramática na hora de sermos mais prestáveis? E para que não sejamos mal-entendidos? “Aceita? Acho que, assim, as pessoas têm tendência para achar que lhes estamos a dar algo de graça”, ouve-se na plateia. A ideia está lá, “os verbos ficam por vossa conta”, remata Luís.

Luís Antunes diz ser “o gajo” dos vinhos e vinha com uma proposta para os presentes. Foto: Inês Leote

“‘Há tantas Áfricas’ no nosso paladar, lembram os presentes. Mas, por norma, esquecemos de pensar de onde vem sequer o que comemos hoje.

Aqui, todos vestem o avental – chefs, cozinheiros, entusiastas da cozinha ou apenas pessoas de paladar curioso. Chegam, cumprimentam-se e pousam o casaco no cabide, que trocam pelo avental preto. Arregaçam as mangas, para provar, para servir ou para ensinar. Tiraram a segunda-feira à noite para conhecer mais sobre a comida do mundo.

Sobre isto, o autor de diversos livros de gastronomia Virgílio Gomes tem muito a dizer. “Há tantas Áfricas” no nosso paladar, lembra. Está no sabor que mais ocupa chávenas em Portugal, o do café, “o mais importante que esse continente nos deu”. E na aprendizagem da arte de comer caju com casca.

Mas Virgílio não se contém em trazer o resto do mundo à conversa. Para que todos possamos saber como “evitar a canela falsa” nos supermercados – “se é da China, não é canela verdadeira”. E que não é sempre “chá” aquilo que dizemos que bebemos. “Temos por hábito chamar ‘chá’, mas um chá é uma bebida com a planta chá (Camellia sinensis). Um chá de cidreira não é um chá, é uma infusão de cidreira.”

Diz que “hoje, até relativamente à alimentação, o que mais nos falta é não pensar no tempo presente”. Faz referência aos horários familiares, ao roteiro casa-trabalho que não abre brecha para pensar sequer na origem dos alimentos que nos rodeiam.

Uma ideia rematada pelo estudante africano Cláudio Zoa, que aqui estava para falar do país de onde vem: Angola. “Há pratos que nós nem sequer sabemos dizer de onde vêm.” Tanto do que é nosso vem de lá, diz. E junta-se a jornalista americana Margo Gabriel, autora de artigos sobre gastronomia na Cuisine Noir Magazine, para falar da grande “lacuna entre a comida e o espaço de viagem” e de como nos esquecemos da identidade da comida.

Em casa de Carla Sousa, havia tempo para debater estas viagens que o alimento fazia até à mesa. Ela, uma portuguesa com descendência cabo-verdiana, diz-se “fã número um” da cozinha que Portugal marcou na tradição. Foi por ela que decidiu trabalhar. Com 44 anos, há 22 que exerce em gastronomia, agora como chef do Valverde Hotel, na Avenida da Liberdade.

Carla Sousa veio de uma “casa humilde” onde o pai sempre fez questão de falar sobre a viagem dos alimentos e da razão de eles estarem na mesa. Hoje, é chef num hotel em Lisboa. Foto: Inês Leote

Estava visto que assim iria ser, desde que, com três anos, puxava um banco até à cozinha, para o subir e dali ver o que o pai estava a preparar. Ele, o grande chef de uma casa “humilde”. “E o meu pai sempre teve uma tradição fantástica: quando a comida vinha para a mesa, ele tinha de falar o porquê de ter cozinhado aquele prato, aquele peixe, aquela carne, e porque é que aquilo fica assim.” Das três irmãs, duas são chefs de cozinha e outra é pasteleira.

Hoje, a viagem da gastronomia parou em Angola e na Guiné-Bissau. No mês anterior, São Tomé e Príncipe. O Manja tem sido palco da cultura africana, mas a representatividade que o gastrónomo Paulo Amado sonhou ver nascer aqui não é só étnica nem internacional. Também se traz um pouco do resto do país até este canto de Lisboa.

Duas grandes travessas são pousadas no balcão. Lá dentro, a carne arouquense que Inês Pedro e Miguel Amado trazem do restaurante deles, Tasquinha Do Amado, em Cinfães. Em doses generosas, enchem prato a prato, para que todos saibam do que falam quando o assunto é o orgulho na carne da região.

Ainda houve estômago para um segundo prato: “o molho castanho” guineense de Dulce Silva. Um caldo de amendoim, texturado com frango, que pinta o arroz branco que o acompanha. O que sai da panela merece vários elogios, sem que quem come adivinhe que Dulce só tenha começado a cozinhar quando chegada a Portugal, com 20 anos. E que esta receita de infância a experimentou pela primeira vez sem nunca lha terem ensinado.

“Uma vez por mês, ele juntava amigos e iam lá à minha discoteca comer o caldo. Sempre o mesmo.”

DULCE SILVA conta sobre o primeiro estranho a quem serviu este caldo em Portugal

Dulce trocou a Guiné por Portugal quando veio acompanhar uma irmã, doente com epilepsia que precisava de cuidados médicos que só encontrou aqui. “Vim acompanhá-la e vim ter com o namorado, mais tarde o meu marido, que eu já conheci lá.”

Lá, na Guiné, onde nunca cozinhou. Deixava esse fardo para as primas, que o faziam bem. “Nunca pedi a receita e depois tentei. Acertei, por instinto”.

Não a encontramos em nenhum restaurante, senão naquele que monta todas as refeições na casa dela, para alimentar a família. Mas não é a primeira vez que Dulce cozinha para estranhos. Quando ela e o irmão ainda geriam uma discoteca em Lisboa, Hernâni Miguel, dono de um restaurante na cidade, bateu-lhe à porta, com a curiosidade sobre este prato chamado Caldo de Mancarra. “Lá me perguntou se eu sabia fazer. Então, uma vez por mês, ele juntava amigos e iam lá à minha discoteca comer o caldo. Sempre o mesmo.” Para entrada, canja de ostra, e sobremesa mousse de cabaceira [abóbora cabaça em Portugal].

Certo é que o acaso lhe abriu o apetite: formou-se em organização de eventos e hoje aluga uma sala no Cacém onde, quem pedir, pode experimentar os cozinhados da “mamã da Guiné”.

O fotojornalista e realizador Arlindo Camacho veio mostrar como não se come sem falar de cultura e humanidade.

Visualização do trailer do documentário “NTRUDU”, do realizador e fotojornalista Arlindo Camacho. Foto: Inês Leote

Um país de “boa comida”, mas que Arlindo Camacho, fotojornalista e realizador, veio lembrar ser também país de grandes tradições. Numa tela, excertos de “NTRUDU“, o documentário e uma exposição fotográfica que retrata “o único Carnaval étnico do mundo”.

Numa cozinha, onde o tema parece ser a comida, marcou presença para provar como não se come sem falar de cultura e humanidade.


Catarina Reis

Nascida no Porto há 26 anos, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde aprendeu quase tudo o que sabe hoje sobre este trabalho de trincheira e o país que a levou à batalha. Lá, escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020.

Inês Leote

Nasceu em Lisboa, mas regressou ao Algarve aos seis dias de idade e só se deu à cidade que a apaixona 18 anos depois para estudar. Agora tem 21, gosta de fotografar pessoas e emoções e as ruas são o seu conforto, principalmente as da Lisboa que sempre quis sua. Não vê a fotografia sem a palavra e não se vê sem as duas. Agora, está a fazer um estágio de fotografia na Mensagem de Lisboa.

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