“Chegou a hora de corrigir a injustiça histórica”: Putin defende presença da África no CS da ONU e G20
Encontro Rússia-África contou com a presença da grande maioria dos países do continente que não cederam às pressões de Washington contra seu comparecimento em São Petersburgo (Daily Sabah)
Cúpula Rússia-África com 49 de 54 paises aplaina caminho para mundo multipolar e soberania
Assim como as sanções do inferno fracassam em deixar a economia russa em escombros, as pressões dos EUA não conseguiram impedir que a realização da II Cúpula Rússia-África na semana passada aplainasse o caminho para um mundo multipolar e mais pleno de soberania e desenvolvimento, com 49 dos 54 paises africanos ali representados e debatendo com o presidente russo Vladimir Putin as alternativas.
“Chegou a hora de corrigir a injustiça histórica”, afirmou Putin, defendendo a presença da África “no Conselho de Segurança da ONU” e da União Africana “no G-20”.
“A Rússia e a África estão ligadas por fortes laços de amizade e relações estreitas, suas fundações foram lançadas em meados do século passado. Durante décadas, apoiamos sua difícil oposição ao jugo colonial”, acrescentou o presidente russo, referindo-se ao papel jogado pela União Soviética na descolonização.
“A Rússia lembra os filhos notáveis da África: Gamal Nasser, Patrice Lumumba, Samor Machel”, saudou Putin. E citou Nelson Mandela: “Não me julgue pelo meu sucesso. Julgue por quanto eu caí e me levantei”. Eles defenderam fortemente “um caminho independente de desenvolvimento”, destacou o presidente russo.
A Rússia e toda a África – sublinhou – são “a favor de uma arquitetura mais equitativa da ordem mundial”. Mesmo com toda a chantagem desde Washington, a África se recusou a se somar às sanções contra a Rússia e inclusive se propôs a trabalhar pela paz na Ucrânia.
A África é o continente com o maior número de países, com uma população de quase um bilhão e meio de pessoas, um enorme depósito de minerais e um colossal potencial econômico e intelectual.
“Diante de nossos olhos, o continente africano está se tornando um novo centro de poder. Seu papel político e econômico cresce exponencialmente”, afirmou Putin. “E todos terão que contar com essa realidade objetiva”, destacou.
Putin enfatizou que, embora “algumas manifestações do colonialismo, infelizmente, não tenham sido eliminadas até hoje e ainda sejam praticadas pelas antigas potências imperiais, particularmente nas esferas econômica, informativa e humanitária”, a era da hegemonia de um ou vários estados “está desaparecendo, apesar da resistência daqueles que buscam manter o monopólio dos assuntos mundiais”.
O presidente russo também se pronunciou contra “práticas ilegais como sanções unilaterais e medidas punitivas, que prejudicam os países que seguem um caminho independente”, que considerou “inaceitáveis e que criam problemas econômicos em escala global que impedem o desenvolvimento.”
Sobre a profundidade dos laços que unem africanos e russos, Roland Lumumba, o filho do assassinado líder da independência da Republica Democrática do Congo na década de 1960, presente à cúpula em São Petersburgo, disse que “não esquecemos que a Rússia contribuiu para a liberdade da África”.
“A Rússia e a África estão unidas por um desejo inato de defender a verdadeira soberania, o direito ao seu próprio caminho original de desenvolvimento nas esferas política, econômica, social, cultural e outras”, disse Putin, enfatizando que o desejo de tal independência não significa autoisolamento, mas leva ao aumento dos laços com outros Estados soberanos.
HIPOCRISIA SOBRE OS “GRÃOS UCRANIANOS”
Uma das principais preocupações dos países africanos, o fornecimento de grãos e fertilizantes, foi abordado com sinceridade na cúpula. Putin classificou como “pura hipocrisia” a acusação feita por Washington responsabilizando a Rússia pela “fome”, por se retirar do acordo de grãos do Mar Negro.
Apesar das sanções, a Rússia está aumentando os suprimentos para a África tanto comerciais quanto humanitários, acrescentou o líder russo. Ele enfatizou que a participação da Rússia nas exportações globais de trigo é de 20%, em comparação com menos de 5% da Ucrânia.
A África recebeu 11,5 milhões de toneladas de grãos russos no ano passado e já foi abastecida com quase 10 milhões de toneladas em 2023, revelou Putin, destacando “a importância de um abastecimento ininterrupto de alimentos para o desenvolvimento socioeconômico e para a manutenção da estabilidade política dos Estados africanos”.
Já as exportações de grãos da Ucrânia foram desviadas para os países ricos – a ponto de países europeus vizinhos proibirem a entrada de mais levas, considerando concorrência desleal – enquanto que o trigo enviado para Etiópia, Sudão, Somália e outros foi de menos de 3% do total exportado.
Putin revelou que as contrapartidas previstas nos acordos do Mar Negro para os grãos e fertilizantes russos não foram cumpridas. “Nem uma única delas”: nenhuma reconexão do Banco Agrícola Russo ao SWIFT, nenhuma liberação de cargas fixas de fertilizantes, nenhum regulamento para o seguro de navios graneleiros russos.
“Enfrentamos até obstáculos ao tentar entregar fertilizantes minerais gratuitamente aos países mais pobres que precisam deles. Conseguimos enviar apenas dois embarques – apenas 20 mil toneladas para o Malawi e 34 mil toneladas para o Quênia, das 262 mil toneladas desses fertilizantes bloqueadas em portos europeus”.
PARCERIA ESTRATÉGICA
Putin salientou que a Rússia está determinado a continuar construindo “uma parceria estratégica com os amigos africanos no sentido pleno da palavra”. O que se expressou no resultado tangível dos dois dias de cúpula: “um pacote sólido” de documentos conjuntos.
A declaração conjunta dos chefes de Estado e de governo presentes estabelece as direções estratégicas para o desenvolvimento da cooperação de longo prazo entre a Rússia e os países africanos. Reafirma o compromisso com a criação de uma ordem mundial multipolar justa e democrática baseada nos princípios geralmente aceitos do direito internacional e na Carta da ONU. Uma clara rejeição foi dada ao neocolonialismo e às sanções.
No futuro, as cúpulas russo-africanas serão realizadas a cada três anos. Nesse meio tempo, um mecanismo de parceria de diálogo entrará em vigor e consultas regulares ocorrerão. Há também planos para estabelecer um novo mecanismo permanente de coordenação de segurança russo-africana, que lidará com contraterrorismo e extremismo, segurança alimentar, tecnologias da informação e mudança climática.
Em termos práticos, foi adotado um plano de ação conjunto que durará até 2026. Seu objetivo é aumentar qualitativa e quantitativamente o comércio mútuo e melhorar sua estrutura.
“Também estamos falando sobre a conversão consistente para moedas nacionais, incluindo o rublo, na liquidação financeira das transações comerciais”, disse Putin.
O uso de moeda estrangeira nas negociações e empréstimos é outro ponto importante na manutenção da dependência. Como se pode ver na inflação atual. Os preços dos grãos subiram no mercado mundial, o que encareceu muito as importações, que devem ser pagas em dólares. Essa inflação é amplificada no interior (8% da inflação global se torna 40 ou 50%), depreciando a moeda doméstica, o que, por sua vez, torna as importações ainda mais caras. Empréstimos de instituições como o FMI ou de bancos privados, também denominados em dólares, são correspondentemente mais difíceis de pagar, o que desencadeia uma crise nas finanças públicas.
Então, quando o comércio e o crédito estão em moeda local, isso estabiliza as coisas. O efeito é semelhante ao de um escambo que a União Soviética, por exemplo, realizou com a Índia ao longo de décadas, no valor de bilhões, que deu uma enorme contribuição para que a Índia pudesse construir uma indústria após a independência.
Putin revelou ainda que a Rússia perdoou US$ 23 bilhões de dívidas de países africanos.
MUITO A FAZER
Putin anunciou durante a preparação de 30 projetos de energia na África, com uma capacidade total de geração de cerca de 3,7 gigawatts em 16 países diferentes. A Rússia também esta disponibilizando sua expertise para a construção de centrais nucleares. Na África, só existe uma central nuclear na África do Sul e outra esta em construção no Egito, por acordo com a estatal russa Rosatom.
O Presidente do Congo, Denis Sassou Nguesso, citou Lenin: “O socialismo é o poder soviético mais a eletrificação de todo o país”. Segundo ele, “600 milhões de africanos (de 1,4 bilhão) vivem sem eletricidade. E aqui precisamos de ajuda, incluindo russa”.
Há muito a fazer para alcançar uma cooperação comercial mais equilibrada da Rússia com a África. Em 2022, as exportações russas totalizaram US$ 14,8 bilhões, enquanto as importações da África foram de apenas US$ 3,1 bilhões. Há também um desequilíbrio regional – seis países do norte da África (de 54 países do continente) representaram mais de 65% do comércio em 2022. “Portanto, é necessário intensificar nossa cooperação comercial com a África subsaariana”, reconheceu Putin.
De acordo com essas expectativas abertas pela cúpula, espera-se o aumento das exportações de produtos industriais russos para a África, incluindo máquinas, automóveis, equipamentos, produtos químicos e fertilizantes. Novas embaixadas russas serão abertas em Burkina Faso e na Guiné Equatorial.
Também houve concordância na necessidade de intensificação dos intercâmbios nas áreas de cultura, ciência, educação, esportes, turismo, juventude e outras áreas humanitárias. Os líderes africanos gostariam que os jovens estudassem na Rússia e depois voltassem a trabalhar em casa. “Centenas de estudantes do meu país receberam diplomas na URSS e ocuparam cargos dignos em sua pátria. Alguns estão agora na minha delegação, outros se tornaram empresários, membros proeminentes da sociedade. Esperamos que a cooperação continue”, disse o presidente das Comores, Azali Assoumani.
A Putin, os líderes africanos enfatizaram seu empenho pelo fim do conflito na Ucrânia, com uma delegação da União Africana tendo se reunido anteriormente com o presidente russo, quando este lhes mostrou o acordo que quase foi fechado em março do ano passado, mas foi rompido por Kiev após ordem vinda de Washington.
O presidente de Uganda, Yoweri Museveni, também disse esperar o fim das hostilidades. Não há necessidade de repetir os erros dos impérios ocidentais, enfatizou. E lembrou que a África começou a luta contra o imperialismo graças ao movimento pan-africano nos Estados Unidos, aos comunistas na URSS e na China. O presidente egípcio Abdul Fattah al-Sisi disse desejar o desenvolvimento pacífico, justo e sustentável da comunidade internacional.
A União Soviética foi frequentemente mencionada na cúpula, registrou a mídia russa. O líder da Eritreia, Isaias Afwerki, pediu a formação de uma estratégia clara para o desenvolvimento do continente até a próxima cúpula. O documento deve especificar os projetos e recursos necessários para sua implementação. “Este é um trabalho difícil, mas se queremos alcançar resultados concretos, precisamos fazê-lo agora”, concordou Putin. Ele também sugeriu relembrar quantas empresas a União Soviética construiu na África e retomar essa prática.
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