“Cesária Évora” de Ana Sofia Fonseca estreia no cinema francês

Estreia na próxima quarta-feira, 29 de Novembro, nas salas de cinema francesas, o filme “Cesária Évora” realizado por Ana Sofia Fonseca. Uma viagem à intimidade da cantora cabo-verdiana que conta com imagens inéditas, com imagens inéditas e testemunhos dos que conheceram a “diva dos pés descalços” no dia-a-dia. 

Em entrevista à RFI, Ana Sofia Fonseca sublinha a importância de “conhecer a mulher para melhor perceber a voz”. Cesária aparece aqui enquanto “mulher completa”, sem esconder questões como alcoolismo ou depressão, que nas palavras da realizadora “não definem a Cesária. São apenas mais duas características dela.” Sobre a estreia do filme em França, Ana Sofia Fonseca fala numa “mistura de sentimentos” na medida em que a França “era a segunda casa” de Cesária Évora.

Estrear este filme nas salas francesas. É caso para dizer que é uma grande responsabilidade. Qual é o sentimento?

Uma mistura de sentimentos, por um lado, é óbvio que é uma grande responsabilidade e é muito especial partilhar aqui o filme. É muito especial partilhar o filme em França, com o público francês, porque para a Cesária isto era muito mais do que só um país, isto era a sua segunda casa. 

Aliás, a Cesária costumava dizer que se não fossem os franceses, ela nunca teria tido o sucesso que teve. 

A Cesária tinha uma casa de ‘porta aberta’, sempre aberta para toda a gente. Adorava receber os amigos e mesmo os desconhecidos, mas sempre que chegavam franceses à sua porta, ela ficava ainda mais contente porque tinha esta noção de que França tinha sido o começo de tudo.

Esta é uma viagem à intimidade de Cesária Évora. Cesária que preenche todos os estereótipos de quem não poderia singrar neste caminho: mulher, negra, pobre, colonizada, feia para os estereótipos da música. Ainda para mais, nos anos 90. 

Foi este, desde sempre, o objectivo final do filme?

Este filme fala da mulher e da artista, porque eu acredito que é realmente importante conhecer a mulher para melhor perceber a voz. E foi a voz que levou a Cesária ao mundo inteiro. 

A mim interessa-me bastante a complexidade humana da Cesária. Nós falamos de uma mulher com todas as fragilidades e as fortalezas que caracterizam a complexidade humana, a natureza humana. A Cesária tem todos esses preconceitos colados à pele, mas, ainda assim, conseguiu singrar. 

Isto pode ser uma história inspiradora, no sentido em que nos mostra que a vida de qualquer um pode mudar a qualquer instante, mas sobretudo inspiradora, porque nos faz pensar no mundo em que vivemos e no papel que cada um de nós pode ter neste mundo, na necessidade de empatia. Acho que nestes tempos conturbados que vivemos, isso é muito importante. Empatia para com o outro, a curiosidade para com o outro. E a Cesária teve a sorte de chegar a França numa altura em que havia realmente um interesse pela World Music.

Não esconde questões como a depressão ou o álcool. Em entrevista a Janete Évora (neta da Cesária Évora) e a José da Silva (agente), ambos disseram que foi duro ver esta parte da intimidade dela exposta. Porquê mostrar?

Nós mostramos uma mulher completa. Uma mulher que tem em si toda a complexidade humana. Não seria, talvez, correcto esconder essas partes. São abordadas com muita subtileza e de uma forma muito cuidada. Isso era uma preocupação. Há intimidade no filme, mas não há voyeurismo. Isso para mim é um ponto de honra.

Esses aspectos são mencionados no sentido em que são mais uma das características da Cesária e que nos podem fazer entender melhor a sua voz. Mas como disse, de uma forma subtil e tendo a preocupação de mostrar que esses aspectos não a definem, são apenas mais duas características e isso faz também de Cesária uma diva de carne e osso, e uma diva de carne e osso, é muito mais interessante, apelativa, cria empatia com os outros, connosco.

Quem é que não tem pontos mais fortes? Pontos mais fracos? As suas dificuldades, as suas grandezas?

Mas neste mundo de redes sociais, onde só se apresenta o lado solar da vida, acaba por ser aqui uma bofetada na realidade.

A Cesária não é uma personagem de redes sociais, ela é uma mulher que conquistou o mundo inteiro, sendo ela própria.

Vê-se neste documentário que há aqui um grande trabalho de pesquisa. Quanto tempo é que levou para montar este puzzle?

Foram cinco longos e intensos anos. Eu devo dizer que é um trabalho de equipa, porque o cinema é sempre um trabalho de equipa e nós investigamos imenso. Falamos com centenas de pessoas em vários pontos do mundo, sempre à procura de imagens de arquivo. E porquê? Porque quero muito que as pessoas saiam da sala de cinema com o sentimento de que estiveram durante 1h34m com a Cesária, que foram a casa da Cesária, que embarcaram com ela nas digressões e, para isso, é preciso que as pessoas vejam a Cesária, que estejam com ela.

Nós procuramos imagens, sons, recortes de jornais, fotografias um pouco por todo o lado. Há imagens inéditas. Há imagens mais conhecidas, outras menos conhecidas. Há imagens de José da Silva [agente de Cesária Évora], há imagens de músicos, amigos, família, jornalistas e antigos militares portugueses. Temos imagens de diferentes fontes.

Eu editei o filme com a Cláudia Rita Oliveira, que é a montadora, e nós discutimos imenso e foi um processo realmente duro, mas ao mesmo tempo muito feliz, porque é um privilégio enorme poder contar a história de alguém como a Cesária Évora e eu só lhe posso agradecer.

Não a conheceu pessoalmente?

Não.

Mas acaba por sentir que, de alguma forma, a conheceu? Mostra-nos 1h34m de imagens da Cesária, mas viu muitas mais ao longo destes cinco anos.

Eu vi dezenas, centenas… foram meses a ver imagens da Cesária…

Hoje em dia, depois de ter passado tanto tempo com a Cesária e a ver imagens que foram feitas sem o objectivo de serem mostradas e que, por isso, nos trazem a verdadeira Cesária, dá-me a sensação de que ela é uma pessoa de família, eu sei que isto é um pouco estranho e não sei explicar, mas é a verdade.

No seu documentário não há planos de entrevista. Aparecem as pessoas, aparecem as fotografias, as imagens que mostram essas pessoas. Mas o testemunho é feito pela voz. Isto foi uma escolha propositada.

Foi uma escolha, foi uma opção muito mais narrativa do que estética por algumas razões, por um lado, porque o objectivo é que as pessoas, que o público esteja com a Cesária. 

Se eu tivesse planos de entrevista, as pessoas teriam de sair do universo da Cesária para depois voltar a entrar. 

Por outro lado, todas as pessoas que aparecem no filme aparecem no sentido em que nos acrescentam algo sobre a vida da Cesária ou sobre o contexto. São, na sua maioria, pessoas muito próximas da Cesária Évora. Foram muito importantes num determinado espaço de tempo, no passado. Não me faria muito sentido estar a ver essas pessoas hoje. Prefiro que as possamos descobrir nos arquivos. 

A Cesária é uma história de voz, foi a voz que a levou ao mundo inteiro e este é também um filme que pretendemos que seja um filme de voz, um filme que nos traz a Cesária pela sua própria voz, na primeira pessoa, e pela voz daqueles que a conheceram melhor. 

Portanto, acabamos por ter aqui esta unidade que é a voz.

Há também a opção de não dobrarem as músicas que são cantadas em crioulo. Porquê? O facto dela cantar em crioulo acaba por transmitir um sentimento e não a mensagem. O maior sucesso da Cesária, o ‘Sodade’ fala sobre escravatura, fala sobre trabalho forçado, sobre os cabo-verdianos que iam para as roças de São Tomé e Príncipe. A mensagem dela não fica pelo caminho pela não-dobragem das letras?

Em relação à música ‘Sodade’, o objectivo foi mesmo que as pessoas que vão ver o filme, que provavelmente muitas delas conhecem bem a música, que a oiçam como se fosse a primeira vez, que o filme tenta trazer uma nova leitura sobre a música.

 Por outro lado, porque é que nós não legendámos as canções porque eu tentei que o filme fosse feito um bocadinho à imagem da Cesária. O arquivo não é extremamente bem tratado. Há aqui uma simplicidade, pelo menos aparente, no filme que eu acho que corresponde com a alma da Cesária.

A Cesária cantou a vida inteira em crioulo, uma língua que quase ninguém entende. Mas, mesmo assim, ela conseguiu emocionar o mundo inteiro. Ora, isto é só um ponto de vista, mas eu não me sentiria confortável a legendar, quando ela sempre cantou em crioulo e as músicas não foram legendadas. Vamos deixar a magia, a arte, a música também vive muito desta magia do fazer sentir, das emoções, e eu não poderia ir contra o que foi a carreira da Cesária, num filme que pretende ter um bocadinho da sua alma.

Apesar de ser um filme sobre a Cesária, não se esquece do contexto, da questão do colonialismo, da questão feminismo. É preciso contextualizar sempre para compreender?

Eu acho que é impossível contar a história de alguém se não conhecermos o contexto dessa pessoa, de onde é que ela vem, o contexto social, o contexto político, o contexto económico. 

Há temas que me fascinam e que têm todo o meu respeito e atenção, como é o caso do racismo, como é o caso do colonialismo. Já trabalhei bastante essas questões. Acho que isso também marca a personalidade da Cesária.

Seria impossível mostrar a dimensão, os paradoxos desta mulher, sem mostrar o seu contexto. 

E nós falamos de uma mulher que, com uma generosidade sem fim, com uma consciência social enorme, não conhecia expressões como empoderamento feminino, mas vivia essas lutas no seu dia-a-dia. Ela não fazia discursos, ela agia e eu acho isso muito interessante.

Na verdade, ela vivia essas questões e, isso, acho que se vê no filme, não é dito. Não penso que os temas tenham que ser postos totalmente à frente das pessoas, até porque a Cesária não usava rótulos nem discursos, mas estão lá porque estavam na sua vida e na sua forma de ser.

Que projectos que tem em mãos neste momento?

Contar histórias. Eu gosto muito de contar histórias. Gosto muito de cinema e estou a trabalhar em dois outros projectos documentais. Um que será filmado entre Portugal e Moçambique e outro que será filmado totalmente em Cabo Verde.

Pode desvendar um bocadinho desse Portugal-Moçambique?

A história de um homem que aos 61 anos e à beira de uma cirurgia ao coração, decide embarcar para Moçambique, para o norte de Moçambique, uma região hoje à mercê de ataques terroristas relacionados com o extremismo islâmico, à procura do irmão, porque na verdade, essa é a única forma que ele tem de tentar descobrir a sua própria identidade.

Como é que tem uma paixão tão grande pela questão do colonialismo?

Se nós não conhecermos bem o passado, dificilmente conseguiremos construir um futuro melhor. 

As questões do colonialismo são passado, mas continuam muito presentes na nossa sociedade, no nosso dia-a-dia. Por outro lado, tem também a ver com a minha própria experiência pessoal que me leva a querer saber mais, e acho que é importante continuarmos a falar destes assuntos numa perspectiva de construção, ou seja, numa perspectiva de futuro, de tentar que realmente o conhecimento do passado sirva para alavancar os tempos futuros. E nestes tempos conturbados que nós vivemos, acho que é muito importante não nos esquecermos de questões como o racismo, como a necessidade de empatia para com o outro.

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