Brasil precisa de uma Comissão da Verdade sobre

A missão das Nações Unidas liderada pelo Brasil no Haiti, Missão de Estabilização do Haiti (Minustah), completa 20 anos de sua criação neste mês de abril, momento em que uma nova missão da ONU, desta vez liderada pelo Quênia, pode ser enviada ao país, sob a justificativa de combater a atuação de gangues armadas.

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Para o antropólogo Rodrigo Charafeddine Bulamah, professor adjunto do Departamento de Antropologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), é necessário que o Brasil instaure uma Comissão da Verdade para investigar a atuação do Exército brasileiro naquele período. Além de esclarecer os crimes cometidos pelas tropas da ONU sob o comando brasileiro, com o objetivo de oferecer uma reparação à sociedade haitiana, Bulamah aponta que a ligação dos militares que atuaram no Haiti com a ascensão do bolsonarismo no Brasil também deve ser objeto de análise.

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“Você teve a operação em Cité Soleil dirigida pelo general Heleno com mortes que ainda precisam ser elucidadas. A gente precisa, dentro do Brasil, elaborar uma Comissão da Verdade, inclusive porque isso tem consequências internas. A ascensão do Bolsonaro está ligada a esse grupo no Haiti. O próprio governador Tarciso também serviu lá. Então, eu acho que tem coisas que precisam ser elucidadas”, aponta Bulamah. 

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Na madrugada de 6 de julho de 2005, tropas da Minustah, comandadas pelo Exército Brasileiro, fizeram uma operação de “pacificação” na maior favela da capital haitiana, Porto Príncipe, conhecida como Cité Soleil. Segundo testemunhas, cerca de 300 homens fortemente armados invadiram o bairro e assassinaram 63 pessoas, deixando outras 30 feridas. Na época, o comandante das tropas era o general brasileiro Augusto Heleno.

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Além de Heleno, ex-ministro-chefe do GSI, hoje investigado por sua participação no ataque contra as sedes dos Três Poderes em Brasília, em 8 de janeiro de 2023, mais sete militares do Exército Brasileiro que atuaram na Minustah integraram o primeiro escalão do governo de Jair Bolsonaro. 

O ex-ministro da Infraestrutura e atual governador de São Paulo, Tarcísio Gomes de Freitas, atuou de 2005 a 2006 na Minustah; o ex-ministro da Secretaria de Governo, Carlos Alberto dos Santos Cruz (atuação de 2007 a 2009); o ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência e ex-presidente dos Correios, Floriano Peixoto Vieira Neto (atuação de 2009 a 2010); o ex-comandante do Exército Brasileiro, Edson Leal Pujol (atuação de 2013 a 2014); o ex-ministro-chefe da Casa Civil, Luís Eduardo Ramos, (atuação de 2011 a 2012); o ex-ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva foi chefe de operações do contingente brasileiro no Haiti (2004 a 2005) e o ex-porta-voz do governo Bolsonaro, Otávio Rêgo Barros, atuou como comandante do 1º Batalhão de Infantaria de Força de Paz.

Durante 13 anos, de 2004 a 2017, cerca de 37 mil oficiais das Forças Armadas do Brasil foram deslocados para o Haiti. Entre os temas que precisam ser investigados em relação à missão liderada pelo Brasil no Haiti, Bulamah aponta a chegada da cólera ao país, levada por soldados do Nepal, a violência sexual contra mulheres e crianças haitianas, e a chegada de armamentos pesados ao país, hoje nas mãos das gangues.

“No momento de ocupação da missão da ONU, é quando o Haiti começa a entrar também no circuito de distribuição de armas e rota de drogas. É uma questão, como a Minustah também facilitou, na verdade, que essas gangues se armassem, porque antes as pessoas estavam com armamentos menos elaborados, não tinham grandes armamentos pesados, que têm hoje. Como é que essas gangues continuam tendo armamentos pesados, que você não tem acesso, nem exércitos, só com grupos de operação especial?”, questiona.

O antropólogo aponta que, apesar da atuação violenta de gangues que controlam territórios na capital Porto Príncipe, a crise no Haiti é mais complexa e envolve também a demanda legítima da população que vai às ruas protestar por participação popular nas decisões do país e acabam, muitas vezes, tendo sua atuação atrelada à ação de grupos criminosos. 

“Existem gangues, a gente não está negando a realidade desse fato, mas se você acompanhar a história recente do Haiti, tem um processo anterior à própria morte do Jovenel Moïse, de pessoas nas ruas pedindo participação popular nas decisões do país. Tem que lembrar que tem associações civis haitianas, de advogados, de direitos humanos, etc, que estão muito atentas ao que está acontecendo no país e as pessoas em geral também. A política é um assunto muito cotidiano no Haiti.”

Confira a entrevista na íntegra

Brasil de Fato: O Haiti está enfrentando uma crise humanitária, complexa e multidimensional, como definem algumas lideranças haitianas. Mas essa crise está também muito caracterizada por uma crise de segurança, com partes consideráveis do território ocupadas por gangues. Quem são essas gangues que atuam no Haiti, como elas se formaram e qual o estopim para o crescimento da atuação desses grupos no período recente?

Rodrigo Bulamah: Tem algumas coisas que a gente precisa pensar quando falamos sobre gangues. De que modo esse termo é apropriado para descrever a realidade haitiana, sobretudo pela mídia tradicional, os conglomerados midiáticos e também por alguns governantes. A ideia de gangue é sempre muito complicada, porque parece que é meio um guarda-chuva, como a palavra terrorista, você rotula aquele grupo desse modo, e isso tem implicações. Há sempre uma descrição que implica uma prescrição de alguma forma. É claro que a gente olha a violência, olha para um cara como o Jimmy Barbecue, a gente vê que é isso.

Existem gangues, a gente não está negando a realidade desse fato, mas eu acho que, na história recente do Haiti, tem um processo já anterior à própria morte do Jovenel Moïse, que era o presidente, em que você tinha pessoas na rua pedindo participação popular nas decisões do país. O Jovenel, na época, não tinha chamado eleições para o Parlamento, estava tendo uma guinada autoritária, e as pessoas no Haiti sacam isso quando está acontecendo. Tem que lembrar que tem associações civis haitianas, de advogados, direitos humanos, etc, que estão muito atentas ao que está acontecendo no país e as pessoas em geral também. A política é um assunto muito cotidiano no Haiti.

Se a gente comparar um pouco com o Brasil, a gente fala muito pouco de política, a gente fala por outros meios talvez. No Haiti não, no Haiti as pessoas são muito conscientes do que está acontecendo, desse âmbito político que é o Estado. Então, você tinha pessoas que já estavam indo nas ruas com demandas para que o Jovenel chamasse eleições. E logo depois da sua morte, quando assume o Ariel Henry, as pessoas sacam na hora que tem alguma coisa errada. Ele não pode estar lá, isso é inconstitucional, que ele ficasse tanto tempo, era algo que as pessoas não queriam, a população em geral e também organizações da sociedade civil.

Quando a gente pensa que são essas massas que estão indo às ruas e que, logo depois da ascensão do Ariel Henry, já se começa uma narrativa com um discurso que vai apontar essas demandas dessas pessoas que estavam nas ruas como gangues, isso acendeu um pouco o alerta. O que é isso que está acontecendo e que as pessoas não estão conseguindo dar um nome? É importante a gente fazer essa diferenciação, para não dizer que tudo é gangue. O momento, sobretudo quando o Ariel Henry passa a perder legitimidade política e você tem uma espécie de surgimento dessas gangues como forças de atuação. Em certo sentido, eles ganham mais poder de barganha. Você começa a controlar recursos e circulação. O Haiti é um país no qual a circulação ainda é uma coisa muito importante. Não é a  produção, que é o espaço que tem greves, por exemplo, nas fábricas. Quando as pessoas querem expressar um descontentamento, vão para as ruas e bloqueiam a circulação.

E as gangues fizeram isso, começaram a controlar circuitos de distribuição de gasolina, de alimentos, etc. Então isso aconteceu, mas em paralelo a isso, antes dessa ascensão das gangues com controle do território, sobretudo em Porto Príncipe, o que você tem é uma série de pessoas insatisfeitas com o que está acontecendo. O país tem uma demanda legítima de que as forças internacionais que estão lá, tudo aquilo que no Haiti eles chamam de Core Group, que é um grupo de potencias internacionais que dialoga com o Estado haitiano, que tomassem providências que seguissem a Constituição. Acho que não tem mistério aqui né, as pessoas estão pedindo que a política acontecesse enquanto política, no espaço democrático, seguisse princípios democráticos, e não em uma antessala, na qual algumas potências internacionais, algumas figuras da qual, inclusive o Brasil participa, decidissem o rumo da nação, mantendo um presidente fantoche lá, como o Ariel Henry.

Agora mais especificamente sobre a história das gangues, a gente tem de pensar muito na figura do Jean Bertrand Aristide [ex-presidente progressista que renunciou após um golpe em 2004], essa figura que ascendeu ali numa resistência, com um diálogo muito grande com a diáspora haitiana, em resistência ao que foi por muitos anos da ditadura do François Duvalier e do seu filho o Baby Doc, o Jean Claude Duvalier. Você tem logo depois, com a ascensão do  Aristide, um conjunto de organizações populares que vão se associar a ele, que vão começar a fazer parte da política nacional e que depois, com um golpe, eles vão formar aquilo que a gente chamava de shimmer, que eram as quimeras, coletivos populares muito associadas a esses grupos de base que apoiaram o Aristide, muitos deles ligados inclusive à Igreja. O Aristide é uma grande figura intelectual também da Teologia da Libertação, e escreveu muito sobre isso. E essas pessoas estavam muito em torno dele, que depois vão se tornar os shimmer.

E, hoje em dia, a gente pode considerá-los como gangues, vão se armando também muito no momento ali de ocupação da missão da ONU, que é quando o Haiti começa a entrar também no circuito de distribuição de armas e rota de drogas, que é uma questão, como é que a Minustah também facilitou, na verdade, que essas gangues se armassem, porque antes as pessoas estavam com armamentos menos elaborados, não havia grandes armamentos pesados como hoje. Como é que essas gangues continuam tendo armamentos pesados, aos quais você não tem acesso, nem exércitos, só com grupos de operação especial? Como é que as pessoas conseguem isso? Como é que chega à mão dessas pessoas? Quem lucra com essas gangues?

Você falou sobre o assassinato do Jovenel Moïse em julho de 2021. Naquele momento estava sendo discutido o Acordo de Montana, que envolveu uma série de organizações populares da sociedade haitiana, partidos políticos e grupos da diáspora.

Esse acordo propõe uma solução nacional para a crise e, após o assassinato de Moïse, ele estipulou também como deveria ser composto o governo de transição. Com a renúncia de Ariel Henry no último mês, o Haiti passa novamente por um governo de transição, que foi atrelado pela Caricom à garantia do envio de tropas da ONU, lideradas pelo Quênia.

Mas o governo de transição tem um representante do Acordo de Montana, que se coloca contra o envio de uma nova missão ao país, assim como outras organizações populares. Como a gente olha para esse cenário, o que esse governo de transição aponta? 

Tem forças que estão aparentemente sendo ouvidas, tem grupos haitianos locais, que era a demanda de ouvir o que os  coletivos haitianos estão pedindo. A questão é saber se isso vai se manter. A gente sabe historicamente e também conversando com colegas do Haiti, que eles não querem uma nova ocupação. Não nesses moldes, que tem sido meio estruturante da intervenção desde, pelo menos, a ocupação dos Estados Unidos no começo do século 20.

Essas pessoas estão cansadas, não querem gente estrangeira apitando na política interna e menos ainda tropas estrangeiras, que elas sabem que não têm nenhum compromisso, fazendo segurança. E a gente sabe o resultado disso, é catastrófico. Você teve a operação em Cité Soleil, dirigida pelo general Heleno, com mortes que ainda precisam ser elucidadas. A gente ainda precisa, dentro do Brasil, elaborar e pensar numa Comissão da Verdade sobre essa questão do Haiti, inclusive porque isso tem consequências internas. A ascensão do Bolsonaro está ligada a esse grupo no Haiti.

O próprio governador Tarciso também serviu lá. Então, eu acho que tem coisas que precisam ser elucidadas. Os haitianos precisam saber a verdade e a gente precisa saber a verdade. A cólera, por exemplo, que não tinha no Haiti, foi levada do Nepal pra lá, e a ONU até agora, pelo estatuto de imunidade diplomática, não se responsabiliza pelo que aconteceu. Pediu desculpas, mas de maneira muito tangencial. E sem falar na gravidez de mulheres, na violência contra mulheres, contra jovens.

Tem um termo que era muito comum, que eu ouvia muito no meu campo, quando estava morando lá, os soldados da Minustah eram conhecidos como ladrões de cabrito pelos haitianos. Cabrito é um animal supervalorizado lá e ladrão, para os haitianos, é o pior xingamento que alguma pessoa pode receber. Acusar alguém de ser ladrão é meio como ofender a honra da mãe aqui no Brasil, é algo muito, muito ofensivo. E era o que acontecia, a Minustah ia e roubava cabritos de camponeses que viviam ali, que tinham ali sua roça, sua criação de animais. Então isso tudo revela algo que os haitianos estão cansados. Porque precisa dessa força externa?

A Minustah estava lá para treinar a polícia, não treinou a polícia? Por que isso que aconteceu? Acho que isso precisa ser elucidado para evitar esse erro recorrente, de novo a gente volta naquela questão: quem ganha com isso? Quem ganha com uma ocupação?

A gente sabe os ganhos entre muitas aspas que o Brasil teve, de centralização do Exército, uma experiência coletiva que já não havia desde 1984 e é isso, os interesses são muito mais exteriores do que internos ao Haiti. A gente tem que complexificar um pouco, quando a gente fala de Haiti, mas há pessoas lá dentro que querem isso, porque há ganhos políticos para algumas figuras também. Mas, de novo, eu acho que é algo muito complicado. Isso mostra o quanto os haitianos são silenciados e não são ouvidos, não se conversa sobre o que os haitianos pensam do Core Group e o que o Core Group está fazendo lá. Então isso merecia uma investigação mais detalhada.  

Você falou sobre a derrubada do Aristide e a chegada da Minustah ao Haiti, eventos que completam 20 anos em 2024, momento em que se cogita enviar novas tropas para resolver os mesmos problemas. Porque a repetição dessa fórmula?

Eu acho que o ponto é esse: por que isso vai acontecer de novo? A própria lógica da missão internacional tem essa dimensão de uma certa antipolítica. Porque são forças que vêm, têm uma lógica de atuação muito similar ao pós-guerra, que é quando você fragmenta territórios em Berlim, na Alemanha, e vai ocupando ele por tropas, por grupos distintos.

A própria lógica da ocupação da Minustah foi essa, você tem grupos, por exemplo, de chilenos no norte, jordanianos, nepaleses, na capital você tinha os brasileiros. Os pontos que eu queria enfatizar são a política de atuação dentro do território específico, que desconsidera o próprio território nacional, então você favorece grupos ou populações locais, uma cidadezinha, um vilarejo rural etc, em desfavorecimento de um fortalecimento do próprio Estado, a única forma de atuação universal dentro de um território, aquele único provedor de serviço que consegue universalmente atender à população, o que as ONGs e a própria lógica da intervenção fazem é enfraquecer o Estado.

Eu sou muito desconfiado, por exemplo, de análises de sociólogos ou antropólogos, cientistas políticos que vão dizer que o Exército brasileiro aprendeu no Haiti o que tentou fazer no Brasil, desmontando a estrutura do estado brasileiro. Eu acho que eles já sabiam, foram para o Haiti e fizeram isso. 

Se você for pensar a própria atuação do governo ditatorial, você tem um episódio, por exemplo, que marca a história haitiana, que é o Massacre dos Porcos, quando forças dos Estados Unidos, México, Canadá, que vão para a República do Haiti para criar uma espécie de barreira sanitária, que evitasse que a peste suína chegasse nas criações dos Estados Unidos. Eles vão lá e matam todos os porcos da ilha. Isso aconteceu, a doença chegou no Brasil também, mais ou menos na mesma época do final da década de 70. E o que você teve em outros contextos Cuba, Brasil etc.

Que você teve o recolhimento dos animais afetados e você matava aquela população e não todos os porcos, isso teve um impacto tremendo no Haiti, e isso só aconteceu porque o Estado haitiano atuou também em conjunto com essas potências internacionais. Então o Estado haitiano existe. Existe como memória, enquanto nostalgia.

As pessoas falam poxa, senti falta no Estado atuando, serviço etc, a gente não quer ONG prestando serviço, que é o serviço do Estado, ou deveria ser provido pelo Estado. Então de novo, os haitianos não são ouvidos com relação a isso. Essa lógica acaba perpetuando a própria incapacidade do Estado haitiano de se realizar enquanto tal. Acho que esse é o ponto, por que o estado haitiano é tão temido assim? A gente sabe desde pelo menos 1804, com a Revolução Haitiana, você tem uma tentativa de silenciar e de apagar a história haitiana e de evitar que ali fosse alguma coisa, como uma república que se realizou, você teve momentos de grande afluência do Haiti.

Mas que constantemente é solapada, é retirada do seu curso. Se você pensar na dívida, por exemplo, de 1825, que foi paga à França, se evitou com que no século 19, tinham grandes investimentos de infraestrutura em todo o Atlântico. Cidades são criadas crescendo, rodovias, infraestrutura educacional. Esse momento tão importante para a consolidação dos estados nas Américas foi simplesmente alijado porque teve que pagar uma dívida zilionária para a França por causa das posses, da independência, dependendo das posses de terra e aquelas plantations e da posse humana que eram escravizados.

Então, isso coloca o Haiti numa espiral de crises que a gente precisa também olhar com cuidado. Porque é isso. Um cara como Aristide, por exemplo, quando começa a falar, começa a levantar a bandeira da restituição da dívida e das reparações e inclusive sofre o golpe muito por causa dessa demanda. Essa é uma questão que precisa ser falada, precisa ser conversada, precisa ser explorada de uma maneira um pouco mais atenciosa.  

 

Hoje algumas autoridades estadunidenses apontam o Guy Phillipe como uma liderança que deve ser considerada para o diálogo sobre um novo governo no Haiti. Depois de liderar o golpe que derrubou Aristide em 2004, Phillipe passou seis anos preso em Miami, acusado de tráfico de drogas. Libertado, voltou para o Haiti em novembro passado, logo após a resolução do Conselho de Segurança da ONU que determina uma nova missão internacional. O que isso diz sobre o papel dos Estados Unidos no Haiti?

Você cria um problema e depois você apresenta a solução. A política haitiana, ela tem sido muito determinada pelos Estados Unidos há um bom tempo. Eleições que são acompanhadas, supostamente, a uma certa distância. Na verdade, não se respeita o resultado, ou se cria um apoio a uma figura em detrimento de outra, com o medo de que o Haiti vá mais à esquerda. Tem uma figura muito interessante, que inclusive era do vilarejo onde eu morei, quando eu fiz trabalho de campo, que é o Jean Charles Moise.

Uma figura com um histórico de esquerda ligado à Via Campesina, foi senador pelo Norte e concorreu à presidência. Ele não foi eleito, mas é uma figura que está aí e que nunca é chamado para conversar, apesar de ter uma representação popular muito grande. E de repente, surge uma figura nefasta na história haitiana, que é o Guy Philippe, e começa a ser chamado para dialogar. Acho que são escolhas também muito erradas, que partem de lógicas como essa de uma intervenção, que vai buscar criar uma solução para o problema que eles mesmos criaram e que popularmente é visto com muita desconfiança. Ele não é uma pessoa com grande apoio popular, pelo menos no Norte.

Acho que é uma força política, assim como as gangues têm uma demanda por serem ouvidas, e eu acho que a gente precisa chamar as pessoas para conversar. O que a gente vai fazer, como a gente vai fazer, como a gente controla isso, qual é a  demanda popular? Vê quais são as demandas populares, o que está acontecendo etc. Mas cria uma situação até um ponto que fica insustentável. Aí cria-se essa, essa espécie de ethos, essa concordância meio que geral, de que não tem outra solução a não ser uma intervenção.

Se a gente for pensar numa certa economia regional, economia política regional e de humanitarismo, pode ter uma função específica numa lógica de experimentação da diferença pelos Estados Unidos, que é um lugar de intervenção, um lugar onde você tem uma população negra e que as pessoas preferem ir até lá, levar uma ONG ou fazer um projeto de qualquer tipo, do que resolver problemas internos. É curioso isso. Acho que tem lógicas de atuação que chamam a atenção. Mesma coisa em relação ao Brasil, foi lá fazer aquilo que se faz em favelas aqui, usar táticas de pacificação. Não à toa esse termo, que tem origem também na própria história colonial do Brasil.

Pacificar os índios, pacificar as favelas, pacificar os haitianos. Então segue-se uma lógica de produção de inimigos que eu acho que é curiosa, quando a gente olha principalmente para a história do Brasil. A história dos Estados Unidos eu acho que é outra coisa. É também uma questão de lugar dos negros, se você pensar na própria ocupação dos Estados Unidos, uma aplicação de leis de segregação. Ver negros que falam francês, intelectualizados, que tinham governo, era algo estranho para as populações dos Estados Unidos e é isso, que não olhava nem para os negros dos Estados Unidos.

O governo de Jean Bertrand Aristide foi a última experiência de um governo progressista no Haiti. Você vê a possibilidade de um novo crescimento da esquerda no país?

Acho que sim. O próprio Jean Charles Moïse, uma figura interessante progressista, que tem relações com a esquerda histórica latino americana. Eu acho que o Brasil poderia ter um papel nisso também, levar o debate sobre quais são as forças políticas progressistas. Claro, sem intervenção. Eu acho que é isso, os haitianos também podem escolher o modelo que quiserem, no limite. Mas o que tem sido aplicado como artificial lá é exatamente uma agenda hiper neoliberal, um neoliberalismo tardio.

Meu ponto é esse, quando eu estava lá, eu olhava e falava: bom, aqui, isso aqui é neoliberalismo, se o neoliberalismo alguma vez, talvez tenha se realizado de uma maneira ideal, como cartilha, é no Haiti. É um livre mercado  que depende muito mais de forças das massas dos mercadores, dos camponeses etc, do que de corporações de empresas. Então eu acho que, em certo sentido, o que você tem desde a derrocada do Aristide é isso, a aplicação de uma agenda neoliberal.

Até antes, se a gente pensar no desastre que foi o próprio Massacre dos Porcos e depois a introdução do arroz, que teve uma superprodução durante o governo Clinton, vendeu a preço de banana para o Haiti, e isso estoura com a economia local, que não há como concorrer o arroz nacional com o arroz Miami, como eles chamam. Então você tem essas práticas desleais sendo sendo aplicadas no Haiti desde muito tempo atrás. Eu vejo isso como uma certa responsabilidade de governos de esquerda latino-americanos. Tem um momento ali, por mais que a gente não possa esquecer que essa onda de extrema direita não passou.

É isso, nos EUA talvez a gente tenha Trump de novo. Aqui no Brasil a gente sabe como tem agido com as nossas forças conservadoras e extrema direita, Exército etc. Eu não olho com muitos bons olhos o que está acontecendo lá. Exatamente por isso, porque o Haiti não está fora do que está acontecendo no mundo todo. É algo que o próprio Haiti, com uma intervenção internacional, com um caráter extremamente neoliberal, vai buscar vantagens pras potências estrangeiras no Haiti.

Essas vantagens a gente sabe, não é o fortalecimento da economia nacional, não é industrialização, não é respeito às classes trabalhadoras, mercadoras etc. É simplesmente que aquilo se torna um apêndice dessas potências internacionais, não à toa o modelo de desenvolvimento é o modelo da fronteira mexicana, as maquiladoras, essas montadoras, de pequenas mercadorias, pequenas  commodities como sapato, camisetas, etc. Isso que é o projeto. Se você pegar o Caracol, que é um complexo industrial, está sendo feito no Norte do Haiti é isso, uma indústria de montagem de costura, coisas de pequeno valor agregado. Mas ao mesmo tempo, você tem uma tradição muito grande de revolta popular, de interesse no poder e uma tradição política  democrática, que faz com que as pessoas tenham esperança no que pode acontecer, o que precisa acontecer é que as pessoas sejam ouvidas em que elas possam exercer seu direito de voto. 

Qual deve ser o papel do Brasil nesse novo cenário?

Em geral a gente tá muito insatisfeito com a postura do Lula, com as nossas Forças Armadas e as forças políticas que colocaram em risco a própria democracia brasileira. Sendo muito categórico, eu acho que a ideia de uma Comissão da Verdade é algo que eu tenho advogado, tenho falado sobre isso, inclusive tem um interesse muito grande em ir atrás de documentação.

Acho que alguns documentos precisam ser abertos. Precisa falar com os haitianos que estavam lá, precisa ter  um mecanismo de registro do que aconteceu. Pra que a gente consiga olhar para isso de um modo, encarar essa história recente do Brasil no Haiti e pensar em possíveis reparações também. Eu acho que esse é o ponto.

Eu acho que tem sido muito tímida a postura do Brasil em relação ao Haiti,  atuação do Brasil no Core Group precisa ser ainda explicitada. O que está sendo feito com esse grupo e olhar para trás, conversar com generais do Exército. Acho que o que tem saído na verdade são livros extremamente laudatórios, que falam a visão dos chief commanders sobre o Haiti. Até agora a gente só tem essa história triunfalista que a gente sabe que é completamente forjada e que é completamente utilizada para a criação de uma legitimidade do Exército que a gente sabe o que é. A gente conhece a história do Exército brasileiro. Então, eu acho que a gente precisa ver e ter uma dimensão dos fatos. Primeiro de tudo, olhar para eles e conversar com os haitianos para pensar o que foi e o que a gente faz com isso.

O Brasil tem uma responsabilidade, queria assumir essa missão para ganhar destaque internacional. Acho que teve seus ganhos, é inegável, e talvez não aqueles que se previam na época, o assento no Conselho de Segurança, etc. Mas teve ganhos legítimos, a gente pode discutir o que são esses ganhos, o que foi isso. Mas eu acho que a gente precisa olhar também o que deu errado, quebrar um pouco esse discurso de que a missão foi  bem sucedida, não foi isso.

Teve estupros, teve violência contra mulheres. Você teve violência contra crianças, você teve cólera, você teve uma série de mortes e uma série de questões e de episódios que precisam ser estudados, que os haitianos falam disso, tem pessoas escrevendo sobre isso. Edwidge Danticat por exemplo, tem um livro dela Adeus, Haiti fala um pouco sobre esse momento, Cité Soleil sendo invadida. Então eu acho que isso precisa ser elucidado, a gente  deve isso ao Haiti.

Se a gente quer essa posição de destaque internacional, a gente precisa olhar também pro que deu errado. Não dá pra gente pensar que dá pra jogar tudo debaixo do pano. A gente precisa disso enquanto nação também, é ser parte no processo de constituição desse destaque internacional e aí a gente pensar também em reparação.

Então, acho que são essas duas coisas, um pouco uma presença de uma postura internacional, mais de apoio ao Haiti e à demanda popular por representatividade, por democracia. Isso aí que o Brasil pode fazer, pra isso a gente precisa saber o que o Core Group está fazendo e porque o Brasil está lá dentro. E outra, isso que eu tenho falado, que é uma espécie de comissão da Verdade, pra que a gente consiga saber o que tá acontecendo e falar sobre esse fato, em reparação.

 

Edição: Rodrigo Durão Coelho


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