Este é um de dois livros que Júlia Barata, ilustradora portuguesa residente na Argentina desde 2013, tem em curso e para os quais já concorreu a apoios em Portugal sem sucesso, contou em entrevista à agência Lusa.
O ponto de partida para a conversa com a autora foi uma mesa de debate que Júlia Barata partilhou com o também ilustrador e autor de banda desenhada Filipe Abranches, na Feira do Livro de Buenos Aires, que está a decorrer na capital argentina, com a cidade de Lisboa como convidada de honra.
Nessa sessão, os dois autores, que se dedicam especialmente à banda desenhada, queixaram-se da da falta de apoios e da dificuldade de publicar em Portugal, se não for através de grandes grupos editoriais.
Segundo Júlia Barata é mais fácil publicar na Argentina, onde o mercado editorial dedicado a este género é muito maior e onde havia mais apoios, até à tomada de posse do atual presidente, Javier Milei.
“Gostava mesmo de ter algum apoio. Agora estou num momento particularmente grave, porque em termos de apoio morreu tudo. O Fundo Nacional das Artes, que me apoiou duas vezes, foi uma das entidades que [Milei] desmantelou, 15 dias após ter tomado posse”, contou.
Há três anos que Júlia Barata está a concorrer a fundos em Portugal, com dois projetos, e nunca conseguiu.
Um deles é a adaptação a novela gráfica, que está a fazer em conjunto com a escritora Isabela Figueiredo, do romance “Caderno de Memórias Coloniais”, centrado em Moçambique nos anos 1960 e que “requer muitíssima documentação e muitíssimo trabalho”.
A autora do livro está a adaptar o texto e Júlia Barata está a ilustrar, mas não têm nenhum apoio.
“Concorremos à DGLAB [Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas], mas o projeto foi chumbado. Continuo a trabalhar nele às cegas, nas madrugadas, com um filho e outros 20 trabalhos. A Isabela continua também a trabalhar e não tem subsídio para isso”, revelou.
O outro projeto da autora baseia-se numa série de entrevistas a pessoas com passados de conflitos históricos e políticos, como é o caso de um chileno refugiado da ditadura de Pinochet, uma espanhola que tem um tio avô morto na guerra civil, uma de Taiwan, uma de Moçambique, uma argentina ou um israelita.
São “fundos muito diferentes, que requerem muita documentação. Isso em geral em cinema implica toda uma equipa, neste caso, está tudo sobre mim, e também pinto e faço edição. É delirante”, afirmou, especificando que esta novela está em produção há três anos, em ritmo intermitente, porque “requer muita concentração, blocos de horas, uma continuidade, como uma tese de doutoramento, mas em apoios”.
Com esta novela, Júlia Barata concorreu duas vezes à Direção-Geral das Artes, a segunda das quais no ano passado, com uma produtora, no âmbito de uma linha específica para os 50 anos do 25 de Abril, sobre memória e democracia.
“Estava perfeitamente inserido aí. Tive uma infância em Moçambique e cresci depois da descolonização. O que liga as entrevistas é uma espécie de alter ego meu que vai falar desse processo de pós-descolonização e guerra civil”, cruzando todos as outras histórias de diferentes países em diferentes momentos do século XX, mas todas com passados de migração, conflitos, ditaduras e guerras”.
Júlia Barata não compreende como é que, nesse contexto e com uma novela toda sobre memória e História, não conseguiu o apoio, nem quando concorreu com uma produtora, que tinha atividades associadas, como ações de rua para registar memórias de pessoas sobre o 25 de Abril.
“Aqui [na Argentina] tive muito mais apoios, com outros governos. Ganhei uma bolsa, um curso no centro cultural da memória e direitos humanos, deram-me dinheiro. Em Portugal não consigo nada”, lamentou.
As duas novelas são totalmente em aguarela, um quadro por página, descreveu, considerando que esse é outro conceito “interessante” da novela gráfica: “quando fazes um quadro, vendes um quadro. Nós aqui trabalhamos com 300 quadros, se a novela tiver 300 paginas, e não ganho nada, e não vou ganhar e não os vou vender. É um tiro no pé, é desesperante”.
Apesar disso, Júlia Barata, arquiteta de formação, mas que atualmente dá aulas de desenho e faz ilustrações como meio de subsistência, diz que não vai desistir, porque a banda desenhada é a sua grande paixão e o seu sonho era poder viver só disso.
“Vou continuar, mas é uma ação de trator. Há 10 anos que estou a continuar, mas há um momento que é ‘por favor, deem-me dois tostões, eu tenho de pagar um aluguer, tenho um filho, eu quero fazer isto e eu acredito imenso nisto'”.
Júlia Barata publicou “Gravidez”, que já foi também editado em Portugal pela Tigre de Papel, e lançou há cerca de ano e meio outra novela gráfica, intitulada “Família”, que tem edição prevista em Portugal ainda este ano.
Filipe Abranches tem um passado muito mais ligado à ilustração, com trabalhos publicados desde 1979, em Portugal e noutros países, e com criação de curtas-metragens, tendo ganhado um prémio na categoria de melhor realizador com o filme “Pássaros”, de seis minutos, no festival IndieLisboa.
Ainda assim, tem as mesmas queixas, nomeadamente num “projeto forte” que está a desenvolver, uma “história passada entre a Polónia e Portugal, sobre o gueto de Varsóvia”, para o qual ainda não encontrou financiamento.
“Tentei um apoio, mas não dá para todos. Vou procurar outras formas de publicar o livro. É muito difícil o trabalho de ‘comics’ sem outro apoio”, disse à Lusa.
Filipe Abranches, cujas atuais fontes de rendimento são curtas de animação e um trabalho que está a fazer para um álbum mais ‘mainstream’ para uma coleção da Levoir sobre figuras portuguesas, lamenta a dificuldade da banda desenhada como profissão.
“É difícil porque se não tens uma bolsa para fazer um projeto para uma novela gráfica, tens de fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Pode-se sempre bater à porta das grandes editoras, mas mesmo os avanços que dão, não dá para viver disso”.
Sobre o projeto proposto para bolsa e que não conseguiu captar financiamento, diz que vai procurar outra maneira, editores, parceiros, financiamentos e está “muito virado para o ‘crowdfunding'” ou uma coisa que gostaria muito “que era converter este projeto num formato de publicação em jornal, em série, mas os jornais não estão a aceitar propostas desse âmbito porque dizem que não têm recursos financeiros”.
A história trata de uma personagem que faz “turismo de trincheira”, faz visitas pela Europa a sítios onde se passaram grandes batalhas, e passa-se entre Portugal e a Polónia”.
O autor conta que andava a fazer recolhas sobre a questão judaica e sobre o gueto de Varsóvia, quando se deparou com “um cenário e uma geografia forte e dura”.
“As minhas viagens ao sul da Polónia também me levaram a sítios inacreditáveis no meio da floresta, onde existem ‘bunkers’, resquícios da guerra, zonas de fronteira que nunca foram muito claras, e ocorreu-me juntar todos os apontamentos que tinha para fazer uma história sobre memórias, questões mal resolvidas da Historia, e quis fazer uma coisa histórica, trabalho jornalístico, em banda desenhada, documentário”.
Outra queixa do ilustrador prende-se com o mercado editorial, uma questão sobre a qual, “mais tarde ou mais cedo terá de haver discussão”.
Filipe Abranches refere-se às “editoras de banda desenhada que começaram a agregar muitas pequenas editoras e a ficar muito alocadas a festivais, o que poderá estar, de alguma forma, a prejudicar a diversidade.”
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