A ‘libertao’ africana e o paradoxo da esquerda brasileira – Direito Simples Assim

O presidente “interino” de Burkina Faso, Ibrahim Traor (foto: Getty Images)

 

Recentemente tm aparecido muitas notcias sobre manifestaes de “lderes” de alguns pases africanos, especialmente da regio do Sahel, como Mali, Burkina Faso, Sudo e, mais recentemente, o Nger. Tais manifestaes so, essencialmente, sobre a necessidade de libertao da frica em geral da dependncia de pases europeus e EUA, conhecida como neocolonialismo, com um apelo forte s riquezas do continente e sua capacidade de se posicionar de forma autnoma no plano global.

 

Parntesis 1: Sahel significa “borda” ou “margem”. E essa “borda” a borda do deserto. Ao contrrio do que algumas pessoas pensam, s o norte da frica que desrtico. Abaixo da borda (o Sahel) o continente tem clima tropical muito semelhante ao nosso, o que pode ser comprovado por uma olhada sorrateira no mapa.

 

Voltando: a pauta sobre o neocolonialismo do continente africano muito relevante e precisa ser conhecida e divulgada. Eu no quero tratar disso aqui, mas de algo adjacente. Entretanto, no d para simplesmente pular uma explicao breve, j que eu ando descobrindo que este tema um ilustre desconhecido de muita gente.

 

Pois bem, no mesmo contexto em que Portugal ocupou/invadiu o Brasil e a Espanha ocupou/invadiu o restante do continente latino-americano, a Europa em geral estava fazendo a mesma coisa na frica. A Inglaterra (de forma exponencial), Portugal (especialmente na costa oeste), Frana (em larga medida), Holanda (tambm de forma intensa, mas por meios mais grotescos) e Alemanha (em menor escala) ocuparam o territrio africano, dividindo-o de acordo com os seus interesses.

 

Essa ocupao estava umbilicalmente ligada consolidao dos Estados Capitalistas europeus, capitaneados pela Inglaterra, que alm de ter iniciado esse processo primeiro (com a Revoluo Gloriosa) ainda detinha praticamente o monoplio do mar. No se pode esquecer que a hegemonia britnica se d aps vencer a Holanda na guerra iniciada como retaliao instituio das Lex Mercatoria, que nada mais eram do que legislaes inglesas que estabeleciam o monoplio das empresas e navios ingleses no transporte martimo mundial.

 

A ideia era ampliar os territrios de desgue da produo que, pela primeira vez na histria, se avolumava e, ao mesmo tempo, era preciso de cada vez mais matria prima para dar conta das demandas industriais que se especializavam. Neste cenrio, colnias se mostram o negcio “ideal”, pois so obrigadas a comprar, pelo preo imposto, os produtos industrializados da metrpole (e proibidas de comprar de outras) e a vender sua matria-prima exclusivamente para a metrpole, pelo preo que a metrpole quiser pagar.

 

Acho que j deu para entender porque a Europa enriqueceu tanto n… Pois . No por outro motivo, voc j deve ter percebido que os pases africanos tm muitas fronteiras retas, assim em linha mesmo, o que no existe na Europa. O motivo simples: essas fronteiras foram estabelecidas em um caf de Paris, vai por mim.

 

Parntesis 2:

 

a) Falam ingls oficial: a frica do Sul, Botsuana, Lesoto, Nambia, Essuatni, Camares, Gmbia, Gana, Libria, Nigria, Serra Leoa, Malawi, Maurcia, Ruanda, Sudo do Sul, Tanznia, Uganda, Zmbia e Zimbbue. Ou seja, 19 pases.

 

b) Falam portugus oficial: Angola, Guin Equatorial, So Tom e Prncipe, Cabo Verde, Guin-Bissau (que no a mesma coisa que Guin) e Moambique. Ou seja, 6 pases.

 

c) Falam francs oficial: Camares, Chade, Gabo, Guin Equatorial, Repblica Centro Africana, Repblica do Congo, Repblica Democrtica do Congo (sim, um pas diferente), Benin, Burkina Faso, Costa do Marfim, Guin (que no a mesma coisa que Guin-Bissau), Mali, Nger (que no a mesma coisa que Nigria), Senegal, Togo, Burundi, Comores (que no a mesma coisa que Camares), Djibuti, Madagscar e Ruanda. Ou seja, 20 pases.

 

S para esclarecer, a frica tem 54 pases. Desses 54 pases, 45 tm hoje, como lngua oficial, a lngua de algum (ou mais de um) dos 3 (TRS!) colonizadores europeus. s para voc entender a dimenso desse negcio.

 

Voltando: Obviamente que esse equilbrio de foras sofreria continuadas resistncias, dado que muito difcil manter uma regio inteira subjugada o tempo todo (e voc deve imaginar quanto respeito pelos direitos humanos pairava nessas incurses colonizadoras). Tambm em razo disso, a dcada de 1960 representativa de uma ebulio de independncias de diversos pases africanos. E desde ento, at os anos 2000, uma a uma as colnias foram se tornando independentes.

 

Mas voc acha mesmo que as colnias “caram a ficha” de que no era legal ficar predando o quintal alheio assim e tiraram o time de campo? Seria ingenuidade pensar assim e eu espero muito que ningum chegue a tanto.

 

Esses pases se tornaram independentes das metrpoles no plano jurdico, mas mantiveram total dependncia no plano econmico. A Europa (especialmente a Inglaterra e a Frana) possui inmeros tratados de exclusividade comercial e mantm esses pases dependentes dos seus sistemas. S para ter uma ideia, a Frana produz a moeda de dezenas de pases africanos.

 

Junte-se neste palco os EUA que, ao assumirem sua hegemonia aps a II Guerra Mundial, usou muito do solo africano para consolidar o seu poder no palco da Guerra Fria. Neste cenrio, como aconteceu muito pelas bandas de c, criou-se a dependncia de produo de matrias-primas para exportar para as metrpoles e o confinamento atividade de importao de produtos industrializados das metrpoles.

 

isso que se chama neocolonialismo. Essa volta inteira foi para chegar at aqui. Os pases so juridicamente livres, mas seu passado consolidou uma dependncia econmica, pois passaram a sua histria impedidos de se industrializar e desenvolver parque tecnolgico. Em razo disso, a sua economia fica completamente merc de movimentos e demandas externas, com um desequilbrio absurdo da balana que vende barato e compra caro.

 

Parntesis 3: se o agro no Brasil pop e “carrega” o pas nas costas (como eu sei que voc j ouviu), porque ns fomos impedidos de nos industrializar e desenvolver, porque interessa para os pases “desenvolvidos” a produo de comida para os alimentar e matria prima (tipo minrio) para a sua indstria. Exemplo maior disso a Sua, que terceira maior produtora de caf do planeta sem ter um nico p de caf plantado. Adivinha de quem ela compra barato e para quem ela vende caro em mini cpsulas?

 

Voltando: Feita essa volta no planeta em poucas linhas, d para perceber que esse discurso louvvel e que todos os pases que se enquadram nesta situao realmente precisam pensar a sua posio de submisso no mundo e buscar meios de melhorar as prprias condies. Isso vale para ns e vale tambm para todos os pases da frica.

 

Ento voc deve estar se perguntando: qual a lgica do ttulo deste texto que at agora no fez sentido algum? 

 

Bom, depois de muito enrolar, eu vou tentar amarrar este negcio. Voltando l no primeiro pargrafo do texto: sobre as manifestaes de lderes de pases africanos com falas contundentes sobre a necessidade de independncia da frica e superao do neocolonialismo. Se no era antes, agora est claro qual o lugar de fala destas pessoas.

 

Vrios setores da esquerda brasileira repercutiram essas falas com contundncia e palminhas, bradando pela necessidade de quebra da hegemonia das metrpoles e pela insurgncia contra a opresso ocidental. O discurso tpico e nada novo.

 

S tem um detalhe: esses lderes so militares que praticaram golpes de Estado, depondo os civis democraticamente eleitos pelo voto popular. assim no Nger (golpe em 2023), assim em Burkina Faso (golpe em 2022), assim tambm no Mali (golpe em 2021) e foi assim no Sudo (golpe em 2021). O principal deles o Ibrahim Traor, oficial militar que “lidera” interinamente Burkina Faso desde o golpe de Estado de 30 de setembro de 2022, que derrubou o presidente Paul-Henri Sandaogo Damiba.

 

Voc tambm j deu tela azul ou estou sozinho nessa? Ento quer dizer que um grupo militar que tomou o poder fora, destituindo sem qualquer legitimidade um representante eleito, merece aplausos s porque diz o que eu quero ouvir? Mas no exatamente isso que, aqui no nosso quintal, grita-se ser um absurdo a ser evitado sob qualquer circunstncia, como elemento fundamental para a garantia da democracia? 

 

No sei para voc, mas para mim tem um paradoxo bizarro nesse movimento! Era para todo o setor da esquerda estar aos berros sustentando que o discurso de independncia dos pases africanos s teria legitimidade se fosse travado pelo seu povo e pelos seus representantes eleitos e no por militares golpistas. E nem se pode falar em desconhecimento desse “fato”, pois esses lderes aparecem em suas manifestaes fardados, para no ter a menor dvida de que so militares no poder.

 

Ou seja, esse aplauso da esquerda brasileira , para dizer o mnimo, muito incoerente. E diz muito contra quem o faz, pois d a impresso de que o golpe militar em si no o problema, mas o discurso e o “lado” que o militar est. 

 

Olhando de um lado para o outro, nesta terra em que parece que quase todo mundo vive em uma eterna torcida de futebol apaixonada (e, portanto, cega), a coerncia no um elemento muito importante para pensar, aplaudir e criticar. Afinal, as conversas sempre encerram com um contundente “mas e o PT?” ou “mas e as joias?”, como se isso resolvesse o nosso problema.


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