A Frontex tem mil olhos no Mar Egeu, e alguns são portugueses. Mas estão todos fechados para crimes contra refugiados

Mais de 72 mil pessoas foram ilegalmente reenviadas para a Turquia pelas autoridades gregas.  Dezenas morreram afogadas. Tudo acontece sob jurisdição da Frontex, que nada faz para travar os crimes. Uma das embarcações portuguesas presentes foi suspeita de conluio num pushback.

Quando entrou a bordo de um bote de borracha, na Turquia, juntamente com 29 adultos e cinco crianças, o guineense Hassan M., de 19 anos, sabia todos os perigos que ia enfrentar: “Sabia que o barco podia afundar, que eu podia morrer, que podia ser apanhado pela polícia e ir para a prisão”, diz, ao Setenta e Quatro. Ainda assim, diz ter entregado o futuro a Deus, porque no seu país nem com fé consegue vislumbrar futuro. Não contava, porém, com a extrema agressividade da guarda costeira grega. 

Segundo o requerente de asilo, uma embarcação com quatro polícias de cara tapada e trajados de negro interceptou-os em águas gregas, no meio da madrugada. “Nós pedimos ajuda, levantámos as crianças. Mas mandaram-nos para trás. Usavam um pau para nos obrigar a sentar. Com uma corda, arrancaram-nos o motor. Começaram a acelerar em redor do nosso barco para, com a força da ondulação, nos empurrarem para águas turcas”, conta. Chamaram então as autoridades turcas para os resgatarem. 

Hassan (nome fictício, por motivos de segurança) foi parar a uma cela de uma prisão de Bodrum, na Turquia, com dezenas de outros subsarianos apanhados na travessia para as ilhas gregas do Mar Egeu. “Estávamos muito apertados e comíamos apenas de 12 em 12 horas. As pessoas faziam xixi e cocó onde calhava, o cheiro era insuportável”, conta ao Setenta e Quatro este guineense nascido em Conacri, mas residente na Guiné Equatorial desde os sete anos. Movido pelo sonho de se tornar futebolista e jogar no campeonato espanhol, o africano chegou à Turquia no início deste ano com pouco mais do que as suas chuteiras e equipamento de treino.

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Tinha acabado de ser vítima de um “pushback”, o termo, em inglês, que se institucionalizou para a prática ilegal de reenviar requerentes de asilo para fora das águas territoriais de determinado país. O objetivo é impedir-lhes o legítimo direito, consagrado na lei internacional, de pedir estatuto de refugiado num país da União Europeia. Mas Hassan não desistiu. 

À segunda tentativa, a embarcação em que seguia foi interceptada pelas autoridades turcas, ainda em águas governadas por Ancara. À terceira, finalmente, conseguiu desembarcar na ilha grega de Lesbos. “Foi em agosto. Tinha estado a trabalhar e consegui pagar 300 euros a um traficante para tentar de novo. Dessa vez, partimos de Izmir. Quando chegámos perto da ilha, fomos avistados por um barco de turistas, que ligou a pedir ajuda. Acho que foi por isso que nos resgataram. Veio um barco grande e levaram-nos para o centro de acolhimento”, conta Hassan, atualmente a aguardar a resposta ao requerimento de asilo num abrigo em Atenas. 

O guineense foi um felizardo – muitos dos refugiados e imigrantes são “empurrados” pelas autoridades gregas muito mais vezes. “Havia gente no barco que já ia na quinta ou sexta tentativa. Conheci uma mulher na Turquia que já tinha sofrido nove pushbacks. Finalmente, encontrei-a no campo [de refugiados] em Lesbos”, conta Hassan. 

Estas ações violadoras da lei internacional não são exclusivas da Grécia, todos os países na fronteira externa da UE têm pushbacks documentados por investigações independentes. O que torna o caso grego alarmante – principalmente no Mar Egeu, em que a curtíssima distância entre a costa turca e as ilhas gregas nem dá espaço à existência de águas internacionais – é o aumento gritante de reenvios ilegais de estrangeiros, principalmente a partir de 2020. Este aumento aconteceu pouco depois de o governo conservador do primeiro-ministro Kyriakos Mitsotakis assumir o poder e enrijecer a política de acolhimento de Atenas, aproveitando o vazio de escrutínio causado pela pandemia de Covid-19, que afastou jornalistas e ativistas do terreno. 

Segundo a Aegean Boat Report (ABR), organização não-governamental norueguesa que monitoriza em permanência o tráfego de imigrantes e das embarcações das autoridades no Mar Egeu, a guarda costeira grega devolveu, desde o início de 2020, a águas turcas 72 mil pessoas que viajavam em 2669 barcos. Os empurrados para alto mar foram inclusive mais do que aqueles que chegaram (53.953). 

Em 2023, o número de casos disparou para índices nunca vistos: mais de 20 mil pessoas foram afastadas das ilhas gregas para águas turcas. Os dados são confirmados pelos relatórios da guarda costeira turca, chamada a resgatar os viajantes de cada vez que as autoridades gregas os “empurram”.

“Os pushbacks têm acontecido a um ritmo diário e não só em alto mar. Muitos dos que chegavam a terra eram perseguidos por homens armados e com passa-montanhas, sequestrados e depois metidos em barcos salva-vidas para mar alto rumo à Turquia. Cerca de mil desses barcos, carregando 20 mil pessoas, foram encontrados no Egeu nos últimos três anos”, diz Tommy Olsen, o responsável da ABR no terreno, que lida diariamente com o fenómeno. “A ideia das autoridades gregas era capturar o máximo de refugiados que podia e mandá-los de volta. A estratégia funcionou. Sabendo que iam ser capturados, menos gente escolheu a rota do Egeu para chegar à Europa. Optaram por rotas mais longas e perigosas, como cargueiros ou navios de pesca saídos do Líbano ou do norte de África para chegar a Itália, transportando centenas de pessoas. Foi assim que aconteceu o fatídico naufrágio do Adriana”.

 

Eu conhecia todos os perigos. Sabia que o barco podia afundar, que eu podia morrer, que podia ser apanhado pela polícia e ir para a prisão. Mas entreguei o meu futuro a Deus porque no meu país não é possível pensar em futuro. Tinha de chegar à Europa. A primeira vez que tentei foi numa quinta-feira, no passado mês de maio. Levaram-nos para uma floresta e aí ficámos, escondidos, durante uma semana. Chovia e a roupa secava-nos no corpo. Havia uma pessoa sempre a vigiar se havia polícia e iam à cidade buscar-nos pão sem nada dentro, que era a única coisa que comíamos. Uma noite, apareceu o barco, perto das 2h da manhã. Éramos 29 pessoas, sem contar com os bebés de colo, que eram uns cinco. Uma hora mais tarde, estávamos em águas gregas. Depois apareceu o barco da guarda costeira grega. Eram quatro polícias, todos homens, de cara tapada como ninjas. Tinham um uniforme negro. Só víamos os olhos e as mãos. Mandaram-nos com uma luz muito forte, tão forte que me pareceu que, de repente, tinha ficado de dia. Nós pedimos ajuda, levantámos as crianças, eles viram-nas. Mas mandaram-nos imediatamente para trás. Usavam um pau para nos obrigar a sentar. Depois, com uma corda, arrancaram-nos o motor. Começaram a acelerar em redor do nosso barco para, com a força da ondulação, nos mandarem para águas turcas. Algumas pessoas entraram em pânico. Depois foram-se embora e deixaram-nos à deriva. Telefonámos à guarda costeira turca, que nos foi buscar e nos levou para a prisão. 

Hassan M., 19 anos, refugiado originário da Guiné-Conacri

No último 14 de junho, o navio de pesca Adriana, com mais de 700 pessoas a bordo, naufragou ao largo de Pylos, na Grécia. Apenas 104 pessoas sobreviveram. Testemunharam que o navio foi rebocado por um barco da guarda costeira grega, causando o naufrágio fatal. 

As autoridades gregas negam as acusações: dizem que os passageiros rejeitaram ser salvos e que pediram passagem para chegarem a Itália. A investigação ainda está em curso, mas o acontecimento pôs ainda mais pressão sobre as autoridades helénicas, acusadas de ter um comportamento ilegal e desumano para com os refugiados nas suas fronteiras, colocando vidas em risco. 

“Depois do naufrágio do Adriana e de terem surgido provas irrefutáveis do sequestro de requerentes de asilo nas ilhas gregas, os pushbacks abrandaram durante os meses de agosto e setembro”, diz Olsen. “Nsse período, a guarda costeira helénica publicou todos os dias vídeos de salvamentos no Egeu. As chegadas de imigrantes atingiram os níveis de 2019. Mas, como se esperava, foi passageiro. Os pushbacks voltaram ao ritmo habitual.” 

Não faltam provas inequívocas das expulsões, desde fotos e vídeos a testemunhos das vítimas. Ainda assim, a Guarda Costeira grega nega as acusações: “Os nossos agentes operam de acordo com as convenções internacionais e com respeito absoluto pela vida e pelos direitos humanos”. Mas a ABR contesta essa narrativa:“só nas últimas duas semanas, publicámos cinco vídeos que provam claramente os pushbacks. Mas eles tentam dizer que o que toda a gente consegue claramente ver, não está a acontecer. É preciso ser cego, mudo, surdo e estúpido para sequer considerar que isto não é real”.

Com o risco dos acontecimentos em Gaza se transformarem numa guerra à escala regional, o governo grego já comunicou que se espera um aumento de tentativa de entrada de refugiados no país, o que, potencialmente, pode implicar mais reenvios à margem da lei. Alheio à convulsão global, Hassan espera pela resposta ao pedido de asilo. Desperta diariamente às 5 horas da manhã para treinar. “Na prisão e nos barcos, protegi sempre a mochila com o meu equipamento. É o que me agarra ao sonho de tornar-me futebolista.”

Uma “nortada” de suspeitas

A Polícia Marítima (PM) portuguesa orgulha-se de ter resgatado do Egeu 7065 pessoas desde 2014, momento em que iniciou a sua participação na operação Poseidon, sob a égide da Frontex, a agência europeia responsável pela guarda de fronteiras, em articulação com as autoridades gregas. Contudo, esse número foi atingido em 2020. 

Desde então, estranhamente, as operações de resgate estagnaram. De 25 de janeiro de 2020 a 25 de março de 2023, mais de três anos, as embarcações da PM não salvaram qualquer pessoa, apesar de o volume de viagens ter permanecido elevado. Esse vácuo nas operações de salvamento e resgate registou-se no mesmo período em que a Grécia endureceu as suas políticas de acolhimento e os pushbacks aumentaram. Coincidência? 

A PM, em resposta por escrito ao Setenta e Quatro, acredita que sim: “a PM manteve o dispositivo ao longo de todo este período, com um permanente apoio às autoridades gregas. Não dispomos de elementos de informação para nos pronunciarmos sobre os fluxos migratórios na área de operação da PM”. 

Este ano,  depois do resgate de três imigrantes à deriva num jet-ski, em março, a PM esteve quase seis meses sem anunciar salvamentos. Até que, a 15 de agosto, a tripulação da embarcação “Nortada” da PM voltou à ação: ajudou a resgatar dois turistas em risco, agarrados a um flamingo cor de rosa insuflável, a norte da ilha de Lesbos. 

“É difícil encaixar que a mesma equipa que consegue detetar o naufrágio de dois turistas num insuflável, não tenha visto nenhum de mais de 2 mil pushbacks efetuados pelas autoridades gregas”, diz Luís Galrão, autor do projeto de monitorização SARwatchMED, que acompanha as operações no Egeu desde 2015. Galrão acrescenta que 60% dos “empurrões” contabilizados registaram-se ao largo das ilhas de Lesbos e de Samos, precisamente as áreas que a embarcação portuguesa costuma patrulhar. “Estão dotados de câmaras de visão térmica, sistemas de vigilância e deteção através de radar e câmeras diurnas e noturnas de alta resolução e alcance, ou seja, meios com capacidade para detetar e registar pushbacks”

Não obstante os sofisticados meios de monitorização, a PM diz nunca ter visto à deriva as balsas salva-vidas que as autoridades gregas usam para atirar os requerentes de asilo para águas turcas, avistamentos assinalados às centenas por jornalistas, ativistas, pescadores e até turistas no Mar Egeu. “A PM não testemunhou qualquer reenvio ilegal de embarcações para as águas turcas (…) As áreas de patrulha são atribuídas à PM pelas autoridades gregas, que detêm o controlo tático dos meios. No último ano, nas áreas atribuídas à PM, não foram detetadas centenas de botes e balsas salva-vidas, como foi mencionado”, responde a autoridade portuguesa.

 

No dia 22 de abril, por volta das 19h00, um barco de borracha com 17 refugiados afegãos atravessou a fronteira invisível entre as águas turcas e gregas. Alertado, um barco-patrulha português cofinanciado pela Frontex, a agência europeia de fronteiras, dirigiu-se para a zona, perto da ilha de Lesbos. Pouco depois, um navio da Guarda Costeira helénica apareceu no local a toda velocidade. Segundo documentos oficiais, aos quais o EL PAÍS teve acesso, os refugiados acabaram nas mãos da guarda costeira turca, mas uma denúncia de uma ONG acusava o navio português de ter rebentado o motor do barco, rebocando-o para fora das águas gregas . A investigação deste incidente foi encerrada com a conclusão de que o ataque não ocorreu, mas revelou irregularidades: tanto a Frontex como a Grécia ocultaram a descoberta daquele navio. (…) As investigações, em todo o caso, revelaram que os protocolos de colaboração foram violados e que a Grécia se recusa, apesar das provas disponíveis, a assumir que a Frontex participou naquela operação, para evitar dar-lhe qualquer explicação ou informação.

 

Excerto do artigo “La investigación de un incidente com una barca de refugiados tensa la relación entre Frontex y Grecia”, publicado no diário espanhol El Pais, a 9 de julho de 2023. 

 

A PM contabilizou este ano 53 pessoas resgatadas, a maioria das quais no intervalo de agosto e setembro, período em que as autoridades gregas, presumivelmente pressionadas pelo escrutínio ao naufrágio do Adriana, permitiram mais entradas e aliviaram as expulsões de requerentes de asilo. 

A atuação discreta do “Nortada” foi projetada para a imprensa internacional por causa de um incidente ocorrido a 22 de abril, dia em que a tripulação portuguesa detetou um barco de borracha com 17 cidadãos afegãos à deriva em águas territoriais gregas, ao largo de Lesbos. Um vídeo captado pelos migrantes e divulgado pela ABR mostra, claramente, a embarcação portuguesa, com a identificação UAM 651, a escoltar de muito perto o bote dos afegãos. “Depois de o barco ter sido intercetado, foi entregue à guarda costeira grega, que se encarregou de o expulsar para águas territoriais turcas. A Frontex foi ordenada a abandonar o local sem qualquer explicação”, explica ao Setenta e Quatro Tommy Olsen, da ABR. 

Resgatados pela guarda turca, as vítimas do pushback acusaram a tripulação portuguesa de lhes rebentar o motor com golpes de um pau e de os terem abandonado no mar ainda sob jurisdição turca. A denúncia levou a agência europeia a abrir um Relatório de Incidente Grave (SIR), cuja investigação ilibou o Nortada. “O procedimento da equipa da PM foi escrutinado em sede de processo de averiguações interno e no âmbito dos mecanismos existentes na agência FRONTEX, não tendo sido encontradas quaisquer violações aos direitos humanos.” A Frontex confirmou ao Setenta e Quatro a versão da PM. 

No entanto, nem o capitão do Nortada nem a guarda costeira grega preencheram os necessários relatórios, como se o barco dos afegãos nunca tivesse navegado no Egeu. Em resposta ao inquérito interposto pela Frontex, o capitão português deu a sua versão dos acontecimentos. 

Segundo o oficial , os afegãos terão rumado ao mar turco por iniciativa própria, assim que avistaram o barco da Frontex, e foram as autoridades gregas que lhes pediram para abandonar o local e para não preencherem nenhum relatório, alegando terem sido eles, e não os portugueses, a avistarem primeiro o bote, fazendo com que a unidade da operação Poseidon não tivesse qualquer papel ativo no incidente. 

Tommy Olsen, testemunha de centenas de outros casos semelhantes, vê os acontecimentos de outra perspetiva: “Devemos assumir que não foi o primeiro ‘rodeo’ da embarcação portuguesa, e que eles sabiam muito bem o que ia acontecer a seguir. Isso pode explicar porque o incidente não foi comunicado pelo capitão do UAM 651, como é exigido após qualquer incidente. Nenhum relatório foi preenchido, e devemos assumir que foi para cobrir o que aconteceu e que não foi a primeira vez que aconteceu assim”. 

A Grécia é o país da UE que mais motivou aberturas de SIR (que envolvem suspeitas de violações de direitos humanos) pela Frontex: em 2022, foram 23, ainda assim um número distante da quantidade de casos suspeitos denunciados pelos ativistas no terreno. 

“Os meios da Frontex não determinam os pushbacks, mas os dados mostram que estão envolvidos nas operações de interseção, que resultam da devolução dos requerentes de asilo a águas turcas, com evidentes irregularidades na cadeia de registo”, diz Luís Galrão. “Parece que houve um acordo de cavalheiros entre a Frontex e a guarda grega, em que a agência europeia faz de conta não ver o que realmente se passa”. Galrão acredita que este comportamento só pode ser mantido mediante ordem superior, atribuindo assim responsabilidades ao governo português: “O governo diz estar aberto a receber refugiados vindos da Grécia, mas as autoridades portuguesas estão a levar a cabo ações que impedem que os refugiados de pedir asilo na UE. Isto é completamente contraditório”, diz. 

O Setenta e Quatro também teve acesso a publicações nas redes sociais de agentes da PM que trabalharam no Mar Egeu no âmbito da Operação Poseidon, cujo conteúdo não se coadunam com a vontade de resgatar e salvar estrangeiros, dando-lhes a possibilidade de pedir refúgio na Europa. Um deles, Nélson B., participante em missões pelo menos em 2020 e 2023, partilha publicações de André Ventura, líder do Chega, na sua página de Facebook. 

A 9 de Julho publicou uma página do Diário da República sublinhando uma linha que se propõe a criar condições para a integração e acolhimento em Portugal de cidadãos LGBT+ ugandeses e de outros países de origem, candidatos e beneficiários de proteção internacional. O texto que acompanha a publicação diz: “este é o País que os nossos governantes querem no futuro, para os nossos filhos”. Os seus dois últimos posts mostram vídeos de um Martim Moniz, em Lisboa, cheio de imigrantes, acompanhados pelas mensagens: “Viva o socialismo” e “Como é linda a minha Lisboa”. 

Na publicação de André Ventura, o agente mostra um vídeo supostamente gravado em Torres Vedras, em que um agente da PSP é agredido numa escaramuça. Escreve: “até quando? Qual a motivação destes polícias? Será que é este o país que vamos querer deixar aos nossos filhos? Não é tarde, basta querermos no momento certo. C H E G A”. O Setenta e Quatro pediu uma reação a Sérgio B., mas não obteve resposta. 

Podia ter sido um raro erro de casting, mas há mais. Bruno C. surge em fotografias publicadas no Facebook a dirigir uma das embarcações da PM em Molyvos, na ilha de Lesbos, em setembro de 2018. Reagiu assim a uma notícia sobre a construção de uma nova mesquita em Lisboa: “Que vão fazer mesquitas no país deles, eu não quero nada disso no meu País”. Quando confrontado sobre como conjugar aquela posição com o trabalho de salvar refugiados muçulmanos e trazê-los para terra, de forma a pedirem asilo, respondeu irritado: “E depois, o que queres com isso, cala-te e não incomoda as pessoas com merdas dessas, se queres refugiados ou imigrantes levá-los para tua casa, dá-lhes de comer e um ordenado”. Apesar de ser perfeitamente identificável nas fotografias, o agente nega alguma vez ter trabalhado no Mar Egeu. 

Obviamente, estas opiniões no seio dos agentes da PM não são generalizadas. O ativista grego Giannis Skenderoglou, especializado em resgate marítimo, teve a oportunidade de privar durante três anos (antes de 2020) com as tripulações do Nortada (e do Molivos, que também patrulhou no Egeu) e, apesar de ter verificado alguns problemas, ficou agradado com o comportamento dos agentes. 

“Testemunhei alguns incidentes esporádicos em que as suas técnicas de comunicação não eram as mais apropriadas, no meu entender, mas tenho de dizer que eles estavam preocupados em salvar as pessoas”, conta. “Vi alguns deles, a bordo das embarcações, a brincar com as crianças e a encher balões para elas depois do resgate. Tenho uma imagem positiva da maioria desses agentes”. 

De acordo com o especialista grego, o problema dos portugueses são os mesmos das restantes forças da Frontex: a falta de independência. “Há sempre um elemento da guarda costeira grega a bordo, que faz a ligação e emite ordens do quartel-geral das autoridades nacionais. Eles [os agentes da Frontex] sabem o que está a acontecer, vêem-no com os seus próprios olhos, mas mantêm a omertà [código de silêncio]. Skenderoglou considera que os actos das autoridades obedecem à vontade política de Bruxelas. “Não nos esqueçamos que muitos políticos europeus beneficiam com isto. Não é por acaso que muitos deputados dizem que ‘a Grécia é o escudo da Europa”. 

Sem solução à vista

Os reenvios ilegais de refugiados não são apenas uma violação ao direito alienável de solicitar asilo e de receber assistência em caso de naufrágio, como também são um perigoso atentado à vida humana. Segundo Stefanos Levidis, investigador da organização Forensic Architecture, pelo menos 20 pessoas já se afogaram em consequência dos pushbacks gregos no Egeu (número que não engloba casos sob investigação, como o do Adriana).

“Temos 26 casos documentados em que as pessoas foram atiradas à água pela guarda costeira grega sem qualquer colete ou boia, e duas delas estavam algemadas”, diz o grego, de 34 anos. 

A brutalidade usada contra os requerentes de asilo nas ilhas gregas do Egeu, conhecido pelas praias paradisíacas e paisagens de cortar a respiração, têm transformado a região num arquipélago tenebroso. “É um campo de testes para ofuscar a violência de Estado. Zonas marítimas inteiras, ilhotas militarizadas e rochas desabitadas permanecem fora dos limites do acesso e supervisão civil, e são navegadas exclusivamente pelos militares e pela Guarda Costeira. As equipes de resgate, ativistas e jornalistas que operam na região e relatam violações dos direitos humanos têm sido criminalizados e intimidados pelas autoridades. Os migrantes que são intercetados ali têm os seus telefones roubados e destruídos, antes de eles próprios desaparecerem”, diz Levidis, que denota influência da extrema-direita nas forças de segurança. “O [partido neo-nazi] Golden Dawn foi desmantelado, mas não nos podemos esquecer que 15% dos agentes das forças policiais votavam nesse partido, e ainda exercem a sua profissão. Há um legado dessas crenças neonazis nas forças de segurança, Só assim se explica que atirem refugiados para o mar”. 

O fotógrafo e ativista Fayad Mullah foi preponderante para mostrar ao mundo os abusos cometidos pelas autoridades gregas. Em maio, as fotografias que publicou no jornal norte-americano New York Times, provaram aquilo que residentes das ilhas, ativistas e jornalistas andavam há anos a denunciar: o sequestro de grupos de imigrantes, à chegada às ilhas, por homens encapuzados e sem identificação, e a sua devolução ao mar em precárias balsas salva-vidas. 

Embora pareça humor negro, as autoridades gregas têm usado para os seus reenvios ilegais botes de salvamento comparticipados pela própria UE, de marca Lalizas, com o custo de 1590 euros por unidade. Mais de um milhar deles já foram parar ao lado turco ou encontrados à deriva em alto mar. “Nesse dia, havia muitos imigrantes escondidos no mato. As autoridades apresentaram-se como sendo dos Médicos sem Fronteiras. Os pertences ficaram logo no lugar do rapto. Depois, meteram-nos numa carrinha branca, descaraterizada, e levaram-nos para um anexo de uma vivenda privada. Aí ocorrem agressões e intimidações”, diz Mullah, ao Setenta e Quatro, dizendo acreditar que os agentes com balaclavas negras e sem identificação pertencem a uma unidade de elite da guarda costeira. Os requerentes de asilo foram depois colocados em botes salva-vidas e “empurrados” para a Turquia.

 

Um por um, os polícias revistaram os seus corpos. O grupo em trânsito foi instruído a deixar as malas e os casacos de lado. Se alguém estivesse a usar três casacos, essa pessoa tinha que deixar duas deles. Tudo o que os polícias encontraram, levaram, como dinheiro, telefones, etc. Ficaram apenas com as roupas, lembra o entrevistado. Eles tiveram que tirar os sapatos, mas recuperaram-nos. O entrevistado foi examinado por três homens diferentes. Eles falaram em inglês com ele. Um dos homens congoleses recusou-se a dar o seu iPhone. Então eles bateram-lhe. Até revistaram os bebês. Um dos bebés foi colocado no chão, pisaram-no para que não se mexesse e tiraram-lhe toda a roupa, até mesmo as fraldas. 

Excerto do relato de um pushback a um grupo de 35 pessoas, na ilha de Samos, Grécia, a 1 de dezembro de 2021, publicado em “The Black Book of Pushbacks”

 

O fotógrafo diz sentir-se feliz por ter contribuído para o abrandamento de pushbacks organizados em terra, mas acredita que no mar profundo o fenómeno não vai parar. Aponta o dedo à Frontex que, de acordo com a investigação da Forensic Architecture, teve conhecimento de pelo menos 417 reenvios de refugiados, preferindo encobrir os fatos. “São muito bons em estar nas localizações que não interessam. Nunca os vi num sítio de desembarque, num local de salvamento, mas vejo-os com frequência a beber cafés e cervejas nos cafés finos de Mytilene. Recebem salários de 5 mil por mês, numa operação que custa milhões aos cofres europeus, mas nunca veem nada”, atira o fotógrafo. Mullah lembra que, sozinho, e apenas com uma câmara fotográfica, conseguiu documentar um processo inteiro de pushback.  “Há qualquer coisa que não bate certo”, conclui. 

Para Marisa Matias, eurodeputada eleita pelo Bloco de Esquerda, conhecedora da realidade grega e que tem feito das políticas de asilo uma das suas maiores áreas de interesse, o que está em causa é mesmo a natureza da Frontex.“Por culpa das tomadas de decisão europeias, a Frontex converteu-se numa força de patrulhamento sem funções na proteção da vida, da dignidade e dos direitos de quem atravessa a fronteira. Passou a ser uma polícia que tem contribuído para a generalização da prática de pushbacks, com cobertura das instituições europeias e dos seus governos”, afirma. 

Com o afluxo de refugiados a registar níveis recorde e o maior número de entradas verificado desde 2019, as pequenas ilhas gregas do Egeu estão sob enorme pressão, com a ABR a alertar para a sobrelotação dos centros de acolhimento de Lesbos, Kos, Samos e Leros. Os novos Centros Multiusos de Identificação e Receção, inaugurados em 2021 (para substituir campos precários como o de Moria, destruído por um incêndio) com um custo de 250 milhões de euros, têm sido objeto de críticas por se assemelharem mais a prisões do que a unidades de asilo: têm arame farpado, sistemas de videovigilância e acesso muito limitado a ONG’s e à imprensa. 

“Só mesmo vendo…são prisões, com poucas casas de banho, desabrigados, e com difícil acesso aos recursos judiciais tão importantes para estas pessoas”, diz Marisa Matias. A permanência de milhares de estrangeiros nas pequenas ilhas causa insatisfação à população local, empresários turísticos e visitantes. “Isso é compreensível. O que não é compreensível, ao fim de todo este tempo, é que não se tenham encontrado soluções solidárias na UE para fazer face ao problema”, afirma a eurodeputada. “Incompreensíveis são os milhões que se paga à Turquia, que só servem para que eles exerçam chantagem. Agora pretende-se fazer o mesmo com a Tunísia, replicando a fórmula de colocar o ónus em ditadores da orla do Mediterrâneo, à espera de uma solução milagrosa. Marisa Matias diz que nunca são discutidas as questões essenciais: soluções quem passem por uma menor ingerência na política dos países em conflito, uma menor exploração dos seus recursos, a tentativa de partir para acordos bilaterais com as comunidades em sofrimento, de forma a proporcionar-lhes uma viagem legal e segura, “sem a premissa de que são criminosos e que devem provar o contrário”. 

Nem todas as tripulações da Frontex aceitam o que está a acontecer no Mar Egeu. Em março de 2020, Jens Moller, comandante de uma unidade dinamarquesa participante na operação Poseidon da Frontex, recusou-se a aceitar as ordens da guarda costeira grega para rebocar um barco com 33 refugiados para o mar turco. O capitão contou o episódio em entrevista ao canal dinamarquês DR. O episódio pôs a nu dois aspectos relevantes: primeiro, que a guarda costeira grega não se inibe de pedir a embarcações da UE para “empurrar” ilegalmente os refugiados e, segundo, que ainda há capitães que não se remetem ao silêncio.

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