“A figura de Amílcar Cabral continua a ser, a meu ver, quase que sistematicamente desvalorizada, para não dizer mesmo ignorada [na Guiné-Bissau], enquanto em Cabo Verde, pelo contrário, continua a ser um tema de discussão viva”, afirmou em entrevista à Lusa.
Em “Quem mandou matar Cabral?”, publicado em 1995, José Pedro Castanheira coloca quatro hipóteses: a polícia política portuguesa, PIDE, as forças armadas portuguesas, o envolvimento do próprio regime de Secou Touré, Presidente da Guiné-Conacri e onde o PAIGC tinha a sua principal base fora da Guiné-Bissau, e o resultado de uma luta interna fratricida entre setores da componente guineense contra a liderança cabo-verdiana do PAIGC.
“São estas, no essencial, as quatro hipóteses que eu coloquei e que muitas vezes se entrecruzam, porque havia, digamos, uma espécie de jogo de xadrez muito complexo, em que há muita gente interessada e há muitos setores, há muitas forças interessadas, enfim, na liquidação ou, pelo menos, no afastamento de Cabral”, acrescentou.
A tensão entre as componentes guineense e cabo-verdiana como principal espoletar do assassínio de Amílcar Cabral, em 20 de janeiro de 1973, tem ganhado vantagem face às outras hipóteses e José Pedro Castanheira disse que teve recentemente acesso a um relato que reforça aquela possibilidade.
“Encontrei um relato muito curioso, que não conhecia, feito por Agostinho Neto logo a seguir [ao assassínio], creio que em fevereiro ou março de 1973”, em que o então líder do MPLA revela, numa visita à antiga Jugoslávia, que integrou a comissão Internacional de Inquérito constituída logo a seguir à morte de Cabral.
Neste relato, Agostinho Neto ”dá informações muito interessantes sobre o clima existente então em Conacri, sobre as divisões dentro do PAIGC”, confirmando “em absoluto a tensão flagrante que existia entre a ala guineense e a ala cabo-verdiana, e a desconfiança que se gerou nesse contexto”, salientou o jornalista.
Amílcar Cabral nunca exerceu o poder num país independente, ou seja, nunca, como diz José Pedro Castanheira, “passou por esse teste”, e será que passaria essa prova com distinção?
“Isso é entrar na especulação pura. Evidentemente não nos podemos esquecer do que aconteceu com outros países, com outros movimentos de libertação e com outros dirigentes, a começar, obviamente, pelos dirigentes dos movimentos de libertação congéneres das colónias portuguesas”, respondeu, acrescentando que Cabral “não exerceu o poder em condições que poderiam revelar até que ponto é que ele iria dirigir o seu partido depois da guerrilha, uma vez vencida a guerra, uma vez vencida, ou reconhecida a independência”.
José Pedro Castanheira destacou Angola e Moçambique, salientando que “a gestão desses novos países depois da independência foi altamente controversa”.
“É o caso, por exemplo, de Angola. Foi uma coisa absolutamente desastrosa. Não nos podemos esquecer, por exemplo, do que aconteceu no 27 de maio. Mas também em relação a Moçambique, por exemplo, não nos podemos esquecer do que foram os famosos campos de reeducação montados pela Frelimo durante a Presidência de Samora Machel”, exemplificou.
O jornalista destacou a “distinção muito grande entre o que foi a evolução da sociedade e da política na Guiné, por um lado, e, por outro, em Cabo Verde”.
“Há uma diferença muito grande. Não nos podemos esquecer que a partir do golpe de Estado [de 14 de novembro de 1980, liderado por João Bernardo ‘Nino’ Vieira na Guiné-Bissau] tem sido, digamos, uma sucessão de desvarios”, vincou.
“Curiosamente, já fui várias vezes a Cabo Verde a convite das autoridades cabo-verdianas falar sobre estes assuntos. Em comparação, nunca fui à Guiné, nunca ninguém me convidou na Guiné para falar ou apresentar o meu livro. Amílcar Cabral continua a ser uma espécie de tabu político na Guiné-Bissau”, descreveu.
José Pedro Castanheira destacou em Amílcar Cabral a retórica, a formação humanística e as “suas qualidades indiscutíveis de líder político”.
“Não é apenas um simples líder guerrilheiro. É uma figura que teve uma enorme capacidade de perceber que a Guiné e Cabo Verde só poderiam vencer a sua luta de libertação se acaso conseguissem envolver o maior número possível de apoios de vária ordem: políticos, culturais internacionais, diplomáticos, militares e vindo de regimes dos quadrantes mais variados”, acrescentou.
O jornalista sublinhou o “golpe de asa absolutamente notável” que constituiu a audiência concedida em 01 de julho de 1970 pelo papa Paulo VI a Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos.
“Essa sua iniciativa foi absolutamente genial, porque foi o primeiro movimento de libertação, o guerrilheiro, a ser alguma vez recebido pelo papa, e isso é realmente espantoso. Ele não foi recebido sozinho. Foi recebido em conjunto com Agostinho Neto e com o Marcelino dos Santos, portanto, MPLA e FRELIMO. Ele era do movimento da colónia mais pequena e, no entanto, é ele quem lidera essa operação, é ele o porta-voz, não apenas junto do papa, mas depois para a própria opinião pública Internacional”, adiantou.
Amílcar Cabral assume-se aí como o líder dos movimentos de libertação das colónias portuguesas, numa audiência que condiciona a gestão política internacional da guerra colonial por parte de Portugal, conclui.
Lusa
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