Há 54 anos, estes estudantes trouxeram Cabo Verde para Lisboa

Uma mulher loira, olhos azuis, sorriso firme, levanta-se de imediato e, com o par escolhido para a primeira dança, inaugura a pista do oitavo andar do n.º 2 da Rua Duque de Palmela, junto ao Marquês de Pombal. A certeza dos passos e a coordenação dos movimentos diz-nos que é ritual. Aos poucos, outros pares se vão formando e já há mais gente a dançar do que a almoçar. É às 13h00 em ponto que os músicos sobem ao “palco” e a grande sala de madeira e janelas deste lugar enche-se dos ritmos de Cabo Verde. Morna, coladeira, funaná.

A cachupa ou outro dos pratos servidos todos os dias no salão de convívio da Associação Caboverdeana de Lisboa, que também é restaurante, podem esperar.

Há 54 anos que os princípios e objetivos da associação se mantêm – e até alguns dos visitantes. Foto: Carlos Menezes

É assim todas as quintas-feiras.

Há quem venha só almoçar, encontrar-se com amigos ou compatriotas, matar saudades da terra e há quem venha pela música e pela dança que às terças e quintas animam os almoços nesta casa que é como que uma décima primeira ilha do arquipélago de Cabo Verde.

Criada em 1970, por estudantes cabo-verdianos e guineenses, que travavam juntos a luta pela independência dos seus países, então colónias do império português, começou por chamar-se Casa de Cabo Verde. Ganhou o teto onde ainda hoje está, no oitavo andar da Rua Duque de Palmela, 2, ao Marquês de Pombal, e em 1991 passou a chamar-se Associação Caboverdeana.

Um ritual

Esmeralda, 60 anos, moçambicana, não falha uma quinta-feira. Vem sobretudo para dançar, desde há dez anos. E dança, dança, dança, “com tudo o que mexe”, diz ela num sorriso que se desfaz em lágrimas quando conta porquê. “A minha filha adorava dançar e vinha cá muito e estava sempre a desafiar-me para vir e eu, por causa do trabalho, porque não tinha tempo, nunca vim. Quando a Daniela morreu, há dez anos, uma amiga trouxe-me pela primeira vez e tornou-se um ritual. Sempre que venho cá, é uma homenagem à minha filha, que morreu a dançar. Desmaiou, entrou em coma e morreu. Tinha 24 anos”.

Esmeralda, 60 anos, não falha um almoço dançante de quinta-feira na Associação Caboverdeana de Lisboa. Dançar para ela é uma terapia e a ACV uma casa. Foto: Carlos Menezes

África está-lhe no sangue, apesar de ter vindo de lá ainda miúda, com 11, 12 anos. Aqui está em casa. E pode só dançar. “Sinto-me muito bem aqui. É uma terapia. Aqui almoça-se, está-se, conhece-se muita gente e dança-se, sem mais. Faz-me bem”, diz Esmeralda, que trabalha em remodelação e decoração de casas e edifícios e criou a Associação Dê Mais Coração – Movimento Daniela, para ajudar crianças com problemas cardíacos em Moçambique.

O par inaugural de Esmeralda não quer aparecer com nome nem foto. Não é que esteja aqui clandestino, mas gosta de manter a discrição. Começou a vir almoçar à Associação Caboverdeana com os colegas, quando trabalhava aqui perto, no Santander do Marquês de Pombal. E, apesar de nunca ter posto os pés em África, adora música e dança africanas.

“Sempre gostei de dançar, sempre transpirei muito e desde que me reformei, sou mais assíduo aqui. Venho sempre às quintas, pela música e pela dança”, diz o antigo bancário, que aos 70 anos, frequenta a universidade sénior, onde se iniciou nas danças de salão.

Na mesa à entrada, são poucos os que ficam sentados muito tempo. Ramiro, cabo-verdiano, natural de Santiago, é dos que ainda não dançou, mas só porque está lesionado. Sócio da ACV desde 1977, vive em Odivelas e vem cá sempre às quintas-feiras.

“É um sítio onde encontramos velhos amigos, divertimo-nos e saímos satisfeitos. Enquanto viver, não vou deixar de vir. Hoje estou aqui, com estes amigos, que já não via há muito tempo, e vou satisfeito. Isso é uma casa que eu estimo muito”, diz Ramiro. “Hoje não dancei porque estou a fazer fisioterapia, mas gosto de mornas, coladeiras, funaná e só de ver os outros a dançar, fico contente e, quando estiver melhor, vou dançar, não vou parar”.

Odete, angolana, e Ramiro, cabo-verdiano, são velhos amigos. A ACV é ponto de encontro para eles. E não dispensam um funaná (quando as pernas permitem). Foto: Carlos Menezes.

Quem não tem parado é Odete, amiga de Ramiro, que é angolana e vive em Angola, mas sempre que vem a Portugal, vem à ACV. “Gosto muito de vir cá, encontro aqui os velhos amigos, que conheci cá e continuamos juntos. Gosto mais de dançar música angolana, porque é o que me está na alma e no coração, a cabo-verdiana não me entra no osso da mesma maneira, mas também danço”.

Cabo Verde em Lisboa: um futuro com história

O salão de convívio, que está aberto todos os dias para almoço, servindo, às terças e quintas, almoços dançantes, é apenas uma parte da atividade desenvolvida pela Associação Caboverdeana de Lisboa. Há encontros culturais, debates, conversas, lançamento de livros e eventos temáticos.

Os desígnios iniciais mantiveram-se: divulgar a cultura, a música, a gastronomia e a literatura cabo-verdianas, dar apoio à enorme comunidade cabo-verdiana em Portugal, particularmente em Lisboa, promover a lusofonia e ser um ponto de encontro. Entre cabo-verdianos e entre culturas.

“Um cabo-verdiano não pode estar sem convívio, faz parte da nossa forma de ser e de estar. Esta casa nasceu para ser esse lugar de encontro e celebração e eu tenho muita honra de contribuir para dar continuidade aos muitos projetos da Associação Caboverdeana e de estar à frente desta casa, que é uma referência para os cabo-verdianos, e não só, em Portugal, em Cabo Verde e em todo o mundo”, diz Dulcineia Sousa, vice-presidente e presidente em exercício da ACV, porque a presidente, Filomena Vicente, por razões de saúde, tem estado ausente.

Nascida em Lisboa, Dulcineia é filha de pais cabo-verdianos da ilha de Santo Antão, chegados a Portugal no início dos anos 1970, ainda antes do 25 de Abril. Psicóloga do Trabalho e das Organizações, dá aulas no ensino profissional e é consultora no ramo imobiliário. E ainda encontra tempo para o trabalho associativo, em regime de voluntariado, na ACV. Trata-se de honrar um legado.

Dulcineia Sousa, vice-presidente da direção da ACV e presidente em exercício, num evento da associação.

 “Eu e o meu irmão já nascemos cá, mas fomos criados com a cultura cabo-verdiana sempre muito presente e quando me convidaram para integrar esta lista de mulheres, pensada para ter paridade de género e integrar diversas gerações e nacionalidades, não hesitei e abracei a causa com todo o entusiasmo”, conta.

É mais nova que a ACV e sempre soube que era uma grande casa, mas teve noção concreta da sua importância quando esteve em Cabo Verde de férias e, sabendo-se que lá estava a vice-presidente da Associação Caboverdeana, foi convidada para eventos públicos e recebida pelo próprio Presidente da República.

“Foi extraordinário”, diz Dulcineia.

Fernanda Silva, que já foi vice-presidente da ACV e hoje preside à Mesa da Assembleia Geral, tem lutado para que essa importância não se perca e, pelo contrário, se aprofunde. Para isso, defende que é fundamental reforçar o trabalho social, cívico e formativo que a associação tem levado a cabo ao longo da sua história e que nem sempre é o mais visível.

Fernanda Silva, atual presidente da Mesa da Assembleia Geral da ACV, está há anos ligada à associação. Mulher de causas, desde miúda que participa no movimento associativo.

Engenheira agrónoma de formação, Fernanda dedicou a vida profissional ao ensino – é professora de Matemática e coordenadora de um Centro Qualifica, no Barreiro, cidade que a acolheu quando chegou a Portugal, em 1975, com a mãe e os quatro irmãos, tinha nove anos. É lá que vive desde então e foi lá que, miúda ainda, começou a envolver-se no mundo associativo e no ativismo social.

“Além da divulgação cultural, a Associação Caboverdeana tem tido também um papel fundamental tanto em termos cívicos como sociais, no apoio à legalização dos imigrantes cabo-verdianos em Portugal, na luta contra o racismo, que está novamente a crescer neste país, no apoio social à comunidade, nomeadamente durante a pandemia, mas também na questão da língua, do nosso crioulo“, diz.

Lembra quando “ainda não se falava no crioulo como língua oficial de Cabo Verde e já nós tínhamos aqui cursos de crioulo”. “Houve projetos de alfabetização ligados aos bairros. Portanto, este é um outro lado muito importante da associação”, completa a dirigente, que considera que apostar na formação em diversas áreas é um dos caminhos a seguir no futuro da ACV.

Joaquim Vaz, outro dos membros dos órgãos sociais da Associação Caboverdeana, concorda. Formado em Filosofia, disciplina que leciona no ensino secundário, numa escola de Sintra, é ainda formador numa prisão do mesmo concelho na área da Cidadania e Profissionalidade e da Cultura, Língua e Comunicação. Chegado a Portugal em 1976, com 13, 14 anos, passou por Santa Comba Dão, Figueira da Foz e Aveiro, até que se fixou em Lisboa, para onde o pai foi transferido para trabalhar nas obras do Metro.

Joaquim Vaz é professor de filosofia, dirigente da ACV e entusiasta da lusofonia, da divulgação da cultura cabo-verdiana e do diálogo intercultural.

“Sou um cabo-verdiano que ama a sua terra, o seu país, o seu povo e a sua língua e como cabo-verdiano penso que a minha pátria é o mundo e nesse âmbito procuro abraçar causas como a da Associação Caboverdeana, nossa casa comum, que defende a causa da cultura e da educação, que são a minha paixão”, diz Joaquim, salientando, no entanto, o papel cívico e social da associação junto da comunidade.

“A criação da Loja do Cidadão, que funciona aqui, foi muito importante, assim como o apoio jurídico”, diz. “A associação sempre teve uma vocação mais cultural e nós entendemos que, de facto, a cultura é importante, porque um povo sem cultura não tem história, mas a dimensão social e cívica dá-nos a ligação às vivências, aos problemas, ao dia a dia do cabo-verdiano, que vive na periferia”.

“E só assim se pode trabalhar a integração”, acrescenta Fernanda Silva.

“Nós somos das comunidades mais antigas em Portugal e nesta casa tem-se feito muito trabalho para a inclusão. Já vamos na quarta e quinta gerações cá, mas ainda há muito trabalho a desenvolver”, considera a presidente da Mesa da Assembleia Geral, que pelo seu percurso profissional da área da educação e pelo seu envolvimento associativo, conhece bem os problemas da comunidade: habitação, baixa escolaridade, baixos salários, trabalho precário.

Dar voz a quem não a tem é uma das missões da Associação Caboverdeana, mas é uma luta constante, dificultada pela falta de apoios e de financiamento e pela crise do associativismo.

“Seria importante ter mais apoio quer do Estado cabo-verdiano, quer do Estado português, porque trabalhamos com a comunidade e temos um papel importante, reconhecido por todos. Não foi por acaso que tivemos cá o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, quando celebrámos os 50 anos da associação. É bom lembrar que há mais cabo-verdianos na diáspora, nomeadamente em Portugal, do que nas ilhas”, diz Fernanda Silva.

“Ah, sim, se voltássemos todos, afundaríamos o arquipélago”, diz Dulcineia, lembrando a propósito outro dos papéis importantes que a ACV tem tido, que é o de ligação e apoio aos compatriotas que vivem em Cabo Verde. “Damos apoio aos doentes evacuados de Cabo Verde e também, na medida do possível, aos estudantes cabo-verdianos cá, que enfrentam várias dificuldades com os vistos, o acolhimento, a habitação”, explica a vice-presidente da ACV.

Apresentação do livro “Versos do Atlântico Insular”, de Fredilson Semedo.

Trabalho e áreas em que a intervenção da associação faz e pode ainda mais fazer a diferença não faltam. E é por aí que se trilha o futuro, que pede maior participação e apoios institucionais, para honrar a morabeza, palavra que como a saudade não tem tradução, mas significa a alma do povo cabo-verdiano.

“Se for a Cabo Verde, na casa mais pobre, convidam-na para entrar. Podem não ter um sumo, mas têm um copo de água. Essa forma genuína de receber e dizer que a minha casa é a sua casa é a morabeza, é a nossa forma de estar e de ser enquanto povo, de abraçar, de unir, de fazer do pouco muito e do pequeno grande. E a Associação Caboverdeana é uma expressão disso”, resume Joaquim Vaz.


Catarina Pires

É jornalista e mãe do João e da Rita. Nasceu há 49 anos, no Chiado, no Hospital Ordem Terceira, e considera uma injustiça que os pais a tenham arrancado daquele que, tem a certeza, é o seu território, para a criarem em Paço de Arcos, terra que, a bem da verdade, adora, sobretudo por causa do rio a chegar ao mar mesmo à porta de casa. Aos 30, a injustiça foi temporariamente corrigida – viveu no Bairro Alto –, mas a vida – e os preços das casas – levaram-na de novo, desta vez para a outra margem. De Almada, sempre uma nesga de Lisboa, o vértice central (se é que tal coisa existe) do seu triângulo afetivo-geográfico.


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