Marie Amachoukeli, realizadora de “A Ama de Cabo Verde”: “as crianças por vezes gostam mais das amas do que dos pais”
“Ama de Cabo Verde” divide-se entre Paris e a ilha de Santiago, para contar uma história de amor e de amizade entre Cléo, uma menina francesa, e Ama Glória, uma mulher cabo-verdiana.
O filme é concentrado nos sentimentos e nas emoções de uma criança quando se separa da ama. A realizadora francesa Marie Amachoukeli foi também à procura da resposta para a pergunta quem são as mulheres imigrantes que deixam tudo para ganhar a vida no estrangeiro, a criar os filhos dos outros:
“Perto da minha casa há um parque, vejo lá amas, de todo o mundo, do Chile, Peru, Tailândia, de todo o lado. Todas partilham a mesma história, tiveram de deixar os seus países e os seus filhos para tomar conta de crianças francesas em Paris. Estas mulheres, pagas para fazer o trabalho, ficam muito ligadas às crianças, mas não o podem dizer porque acho que há um conflito com os próprios filhos que elas não criaram e não tiveram as mesmas oportunidades do que as crianças que estão a criar agora”, explica a cineasta.
“(…) cresci em Paris e fui educada por uma portuguesa.“
“Do lado das crianças há outro tabu, por vezes gostam mais das amas do que dos pais, mas não lhes é permitido dizê-lo porque as amas são as empregadas. Pensei, aqui está algo sobre o qual gostava de escrever. Há uma pergunta a fazer, há um filme a fazer, há algo de tabu nesta história”, conclui.
Para falar de um amor tabu, amor secreto que as crianças sentem pelas amas, Marie Amachoukeli inspirou-se no próprio passado. O filme é dedicado a Laurinda Correia, a ama portuguesa que tomou conta da realizadora na infância e que teve de regressar a Portugal para cuidar da família. A cineasta francesa recorda a ligação para sempre que se estabeleceu entre as duas:
“Quando era criança, cresci em Paris e fui educada por uma portuguesa do Porto chamada Laurinda Correia. Na época, ela fazia parte da imigração portuguesa, algo muito comum há 40 anos. A Laurinda foi a mulher que mais amei na minha vida, penso eu. Criou-me, via-a todos os dias, amava-a mais do que tudo. Ainda me chama ‘minha filha’. Também nos mantivemos muito unidas.”
A separação foi dolorosa. Marie Amachoukeli recorda o dia em que Laurinda lhe disse que ia regressar ao Porto para estar perto da sua família:
“Nesse dia, senti a maior tristeza do mundo. Não compreendia, achava que era terrivelmente injusto. Do meu ponto de vista de criança, era mesmo o fim do mundo para mim.”
Durante a escolha da protagonista, conheceu Ilça Moreno. Tinha uma história de vida idêntica à do enredo do filme, o que levou a realizador a reescrever o argumento e a mudar a origem da personagem para Cabo Verde.
“Fiz um casting para amas e conheci a Ilça Moreno, que é de Cabo Verde. Ela fala crioulo com pronúncia de Portugal. E como fiquei encantada com a Ilça, com a capacidade como atriz amadora, porque ela não era atriz profissional, disse para mim mesma, vamos fazer o filme com ela e vou reescrever todo o filme para Cabo Verde, para Santiago e para a cidade do Tarrafal, de onde ela vem.”
Para além de Paris, a rodagem de “Ama de Cabo Verde” decorreu no Tarrafal, na ilha de Santiago. A realizadora associa a paisagem vulcânica à vontade que tinha de fazer um filme sensorial:
“Estive em Cabo Verde, aprendi crioulo. Na ilha de Santiago, a minha parte preferida é quando se olha para a Ilha do Fogo. Assim que se vê a ilha e se vê o vulcão, quando ele aparece de repente por detrás da névoa, há qualquer coisa que nos faz sentir um respeito total. E filmamos com a população local. Fizemos o casting lá para criar todo o universo na ilha. No filme, só há atores não profissionais. Foi o mesmo com a pequena Cleo, que na vida real se chama Louise. Vi-a pela primeira vez e não tive dúvidas que o papel seria dela.”
“(…) o presidente da República [de Cabo Verde] disse que podíamos fazer a projeção no Palácio Presidencial.”
O filme “A Ama de Cabo Verde” é contado pelos olhos de Cleo, uma menina de seis anos. A separação da ama e o reencontro na ilha levam-na a descobrir novas emoções. Nos momentos em que se torna difícil lidar com os sentimentos, a narrativa surpreende com o aparecimento de sequências em animação, criadas pelo desenhador Pierre-Emmanuel Lyet:
“Enquanto escrevia o filme, pensei que há toda a interioridade desta criança que tem sentimentos muito fortes, mas não os consegue exprimir. Procurava uma forma de tornar essas emoções cinematográficas. Como trabalho num gabinete com pintores e desenhadores, de repente imaginei-os a desenhar. E disse para mim, ‘vamos usar a cor, o movimento e vamos mostrar os desenhos, esses sentimentos pelos quais a menina está a passar’. Pedi ao Pierre-Emmanuel Lyet, que conheço bem e é ilustrador, para fazer os desenhos e realizar a animação. Decidimos fazer tudo à mão, fotograma a fotograma. Por isso demoramos quase dois anos. O elenco não profissional já se pôde ver no grande ecrã.”
O presidente da República de Cabo Verde abriu o Palácio para uma projeção especial, conta Marie Amachoukeli:
“Foi fantástico, decidimos organizar uma projeção em Cabo Verde. Lá não há cinemas, mas o presidente da República disse que podíamos fazer a projeção no Palácio Presidencial. Então fomos para o Tarrafal, vestimos as melhores roupas, metemo-nos todos num carro e eles descobriram o filme no Palácio Presidencial. Ficaram muito orgulhosos. E como o filme é em crioulo, também foi motivo de orgulho. Foi uma grande festa vê-los todos juntos, vê-los descobrirem-se no ecrã e, ao mesmo tempo, descobrirem o filme. Foi muito, muito comovente.”
“A Ama de Cabo Verde”, que esteve na Semana da Crítica no Festival de Cannes, é um comovente filme sobre as relações afetivas entre as crianças e as amas e uma homenagem a essas mulheres que tomam conta dos filhos dos outros.
Estreou a 11 de julho, nas salas de cinema portuguesas.
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