Em direção ao amanhã, na X Bienal de São Tomé e Príncipe

Um país não se faz de bienais, mas uma bienal pode tentar fazer um país. Uma bienal, a X Bienal de São Tomé e Príncipe, pode reclamar a “segunda independência” de um país, pode reivindicar a descolonização total que ficou por fazer, pode pintar a ideia de um novo futuro quase cinquenta anos após a fundação de um novo país, o segundo mais pequeno do continente africano, um pequeno arquipélago no Golfo da Guiné.

Em 1975, a bandeira amarela, verde e vermelha foi hasteada por Nuno Xavier Dias, presidente da Assembleia Constituinte, e prometeu-se a libertação do chicote e da plantação, o fim do colonialismo português, o início de uma nova era. A independência, finalmente. Algumas promessas foram cumpridas, tantas outras ficaram por cumprir. A pobreza cresce e os olhos estão postos no oceano, na viagem – ao longo do último ano, mais de 25% da população emigrou. “E agora?”, pergunta-nos João Carlos Silva, curandeiro e não apenas curador, na inauguração da Bienal. “E agora, São Tomé e Príncipe?” 

Casas-museu são-tomenses na antiga fábrica de óleo de Palma de Água Izé.

Por agora, entramos na roça Água Izé, a roça onde as primeiras sementes de cacau foram semeadas em regime de plantação, o local por excelência da segunda ocupação colonial das ilhas, feito pela mão de João Maria de Sousa e Almeida, um homem rico nascido na Ilha do Príncipe. Água Izé foi um laboratório da colonização portuguesa do século XIX, da violência imposta contra humanos e contra a terra. Ergueram-se roças, a produção subiu, São Tomé e Príncipe tornou-se, por breves instantes, no maior produtor de cacau do mundo. Mas, por detrás desta gloriosa história de sucesso colonial, do majestoso título de jóia da coroa, observamos um trilho de vidas, de vidas de africanos e africanas forçados a ficar nas ilhas contra a sua vontade, obrigados a trabalhar nas plantações de sol a sol, vigiados e controlados durante as horas do dia e da noite. Os serviçais, vindos de Angola, Cabo Verde, e de tantos outros sítios. O som do chicote, até 1975. Chegamos finalmente a Água Izé, onde se vai inaugurar a Bienal – pela primeira vez, numa roça. Começamos a ouvir, à distância, o Tchiloli. Estamos no sítio certo.

https://www.buala.org/sites/default/files/imagecache/full/2024/06/img_20…” alt=”O grupo ‘Formiguinha da Boa Morte’, criado em 1956, é o mais antigo dentro dos grupos que ainda hoje representam o Tchiloli em São Tomé. Fotografado à frente do mural de Amadeo Carvalho e Jacqueline de Montaigne.
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O que nos diz esta Bienal? O mote é Nós. À (re)descoberta de nós. À descoberta de raízes, de histórias, do passado que é silenciado e do futuro que precisa de ser sonhado. Este ano é na roça e não na cidade que se dá o primeiro passo da Bienal, a roça onde tudo começou, Água Izé. A história da roça de Água Izé é a história de tantas outras roças, a história que começa com a ocupação colonial das terras, a plantação, a explosão das roças por toda a paisagem das ilhas, a exploração de pessoas e do solo, a história que culmina na independência, no fim do chicote, na nacionalização das roças, e por fim na sua distribuição a privados nos anos 90. Chegamos a 2024 e os edifícios de várias roças estão vazios, abandonados, apenas ocupados pelos fantasmas de quem lá viveu em tempos. A bienal reocupa assim os edifícios do colonialismo, dá-lhes uma nova vida. Descoloniza-os. Enfrenta de frente os fantasmas que por lá passeiam e enche estes espaços com quadros, instalações, peças de teatro e palestras.

Entramos na roça e deparamo-nos com as antigas fábricas de óleo de palma e de cacau, dois edifícios imponentes pintados de cor-de-laranja que se erguem perante a comunidade local, descendentes dos cabo-verdianos e angolanos que trabalharam anos a fio nesses mesmos edifícios, das 5 da manhã às 5 da tarde, para alimentar o lucro dos roceiros e da coroa. Os carros começam a estacionar à volta dos dois edifícios. Chegam da cidade, após uma viagem de trinta minutos. A população de Água Izé chegou mais cedo, já está à porta, a aguardar com curiosidade a chegada de tantos intrusos, de tanta gente que esquece a sua presença no dia a dia do país mas que hoje marca presença. Aqui, fala-se em reinventar. Mas o que significa reinventar uma roça? Significa, por exemplo, transformar estas antigas fábricas coloniais em centros culturais, em museus e escolas, significa dar uma nova vida a um espaço que está associado à pobreza no país e a um longo passado colonial. Antes de começar a inauguração, espreito a antiga fábrica de cacau, agora museu, e deparo-me logo com uma mota suspensa no ar.

'A Fonte', de Olavo Amado.‘A Fonte’, de Olavo Amado.

Na legenda, lê-se: A Fonte. Uma peça de Olavo Amado. Uma mota voadora revestida de tecido amarelo que carrega três caixas de Rosema, a cerveja nacional. Para bom entendedor, meia palavra basta. A mota é a fonte de rendimento para vários motoqueiros do país. A Rosema é fonte de álcool para esquecer, mas também é fonte de dinheiro, fonte do maior escândalo da justiça são-tomense no século XX. A mota e a Rosema são a fonte que alimenta muitas bocas, mas de formas muito diferentes. 

Agora, está na hora da inauguração. Saio da fábrica de cacau e junto-me à multidão que entra no edifício do lado, na antiga fábrica de óleo de palma, hoje chamada FACA – Fábrica de Artes, Ambiente e Cidadania Ativa. Já não se fabrica nada aqui, nem cacau nem óleo, apenas se fabrica cultura. O primeiro a falar é João Carlos Silva, o curandeiro da Bienal, de todas as bienais desde a sua primeira edição, em 1995. Desta vez, surge acompanhado pelo curador, Ricardo Vicente.

Inauguração da X Bienal na CACAU, com João Carlos Silva e Ricardo Barbosa Vicente. Fotografia de Ariel Santana. Inauguração da X Bienal na CACAU, com João Carlos Silva e Ricardo Barbosa Vicente. Fotografia de Ariel Santana.

 

Começa o discurso. E agora? Silêncio na sala cheia, já não há lugares sentados, toda a gente apareceu, desde a elite política da terra à população local, para além de todos os artistas que chegam de fora, de Angola, Brasil, Cabo Verde, do Gabão, Camarões, do Congo, de Portugal ou de Inglaterra. Hoje, toda a gente se lembrou de Água Izé. Agora, a grande questão está no ar. Como reinventar a roça? Fala-se na participação das pessoas locais, fala-se na construção de uma cidade, em museus, produção local de alimentos, turismos locais, afirma-se que a roça é o futuro do país – até o Presidente Carlos Vila Nova concorda – e que este é um dos primeiros passos para reinventar Água Izé, transformando os seus espaços e oferecendo-lhes novos significados, servindo como um exemplo para outras roças pelo país fora. Entre aplausos, levantamos a cabeça e lemos as palavras nas paredes, assinadas por Carlos Noronha Feio. Vento entre arquipélagos. Em direção ao amanhã. “Estamos na preparação militante das nossas segundas independências”, termina o curandeiro da Bienal, em tom de provocação. O mote está lançado: a redescoberta da identidade são-tomense tem de começar na roça. Na reinvenção da roça está a chave para a descolonização total. 

A exposição organizada pela Bienal na antiga fábrica de cacau, para onde regresso a seguir à inauguração – desta vez, ao lado da multidão – não nos deixa esquecer que estamos num local onde convivem diferentes memórias, memórias contraditórias e conflituantes. Não são apenas representadas as memórias de opressão e de exploração portuguesa, ainda que estas estejam presentes nas obras de René Tavares, onde se demonstram as categorias coloniais utilizadas para diferenciar entre livres e escravizados, mas são também são memórias de convívio, de camaradagem, da criação de laços, são as caras dos habitantes da roça pintadas por Amadeo Carvalho ou as instalações que retratam o bocado, uma celebração anual onde os são-tomenses se sentam para partilhar uma refeição em família, feitas pelos irmãos Adilson e Geane Castro. São estas memórias conflituantes, nascidas no passado e transformadas no dia a dia de Água Izé, que marcam as roças de São Tomé e Príncipe. É através da demonstração desta tensão, destas fraturas entre memórias, da opressão e dos laços criados em espaços de resistência, de um passado que persiste através da infraestrutura das roças por todo o país e de novos desafios que surgem após a independência, que a Bienal parte à redescoberta de nós. 

Casa cheia na inauguração da X Bienal de São Tomé e Príncipe, na roça Água Izé. Em destaque, as palavras de Carlos Noronha Feio.Casa cheia na inauguração da X Bienal de São Tomé e Príncipe, na roça Água Izé. Em destaque, as palavras de Carlos Noronha Feio.

E agora? Agora, inauguramos a Bienal em três outros locais – a décima edição assim o exige. Vamos até à capital e inauguramos a Bienal na CACAU, a Casa das Artes, Criação, Ambiente e Utopias, desta vez com a presença do Primeiro-Ministro. Os mesmos recados de Água Izé são dados aos governantes são-tomenses por João Carlos Silva, as mesmas promessas são feitas de volta. O futuro dirá se serão cumpridas. Vamos inaugurá-la novamente na cidade, desta vez n’A Baya da Bô, e depois na Roça de São João dos Angolares – uma roça que já foi reinventada, mas que se continua a reinventar. Inauguração atrás de inauguração, repete-se o mote: a redescoberta da identidades no meio do Oceano Atlântico; a reinvenção de uma sociedade. Encena-se o futuro através da cultura.

‘O Bocado’, dos irmãos Adilson e Geane Costa, na antiga fábrica de cacau de Água Izé.‘O Bocado’, dos irmãos Adilson e Geane Costa, na antiga fábrica de cacau de Água Izé.

Uma bienal pode (re)fazer um país, mas não pode fazê-lo sozinha. As peças de teatro, obras e palestras que tomam as ilhas durante este mês, até ao dia 25 de julho, vão encenar o futuro que tem sido negado aos são-tomenses, que os leva a abandonar a ilha e a esperança. A reapropriação de edifícios coloniais, associados à escravatura e ao trabalho forçado, permitem encarar de frente os fantasmas do arquipélago – não apenas os do passado, mas também os do presente. Permitem imaginar as roças como espaços do futuro, e não apenas do passado; como espaços de liberdade, e não apenas de repressão. À redescoberta de nós, a X Bienal de São Tomé e Príncipe ensina-nos a sonhar novos futuros num arquipélago onde este futuro foi roubado demasiadas vezes. O primeiro passo para a reinvenção da sociedade, para a segunda independência, a libertação daqueles que querem manter os lanços de dependência, está a ser dado. Resta perguntar, novamente: e agora, São Tomé e Príncipe? 

 

 

Consulta o programa completo da X Bienal de São Tomé e Príncipe aqui.

Artistas: 

FACA, Água Izé

Adilson Castro; Amadeu Carvalho; Armindo Lopes; Bento Oliveira; Carlos Noronha Feio; Denise Santos; Eduardo Malé; Geane Castro; Jacira da Conceição; Jacqueline de Montagne; Janik Santos; João Carlos Silva; Kwame Sousa; Leão Lopes; Mafalda Santos; Miguel Hurst; Miguel Ribeiro; Nikkie Wester; Nuno Miranda; Olavo Amado; Oleandro Garcia; René Tavares; Samira Vera Cruz; Valdemar Dória.

CACAU, São Tomé

Abraão Vicente; Adjoyi Ayawavi; Amadeu Carvalho; Anna Nunes; Catarina Neto; Daniel Blaufuks; Eduardo Malé; Emersom Quinda; Fidel Évora; Francisco Vidal; Inter Mamata; José Carlos de Paiva; José Chambel; Kwame Sousa; Marta Félix; Marta Lança; Miguel Ribeiro; Lleandro Garcia; Soraïa Sü; Tchalé Figueira; Tiago Casanova; Valdemar Dória.

A Baya da Bô (BBC), São Tomé

Amilcar Castro; Bento Oliveira; Colectivo Neve Insular; Colectivo Pintar Abril.

RAAM, São João dos Angolares

Amadeo Carvalho e Cida Lima; Guilherme Carvalho; Ismael Sequeira; Nuno Prazeres; Tchalé Figueira; Yuran Henriques.

por João Moreira da Silva
Vou lá visitar | 30 Junho 2024 “https://www.buala.org/pt/vou-la-visitar/Bienal internacional de artes de São Tomé e Príncipe

Crédito: Link de origem

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