O uso de dólares caiu na Venezuela no último ano. Segundo relatório do instituto Ecoanalitica, as transações com a moeda estadunidense representaram 32,7% de todas as trocas comerciais em fevereiro de 2024, uma redução em relação aos 42,3% registrados em maio de 2023.
Outras moedas estrangeiras também registraram queda no comércio venezuelano. O peso colombiano ocupou em fevereiro uma fatia de 12,4% das trocas, enquanto o euro ficou em 5,5%. Outras ferramentas, como as criptomoedas, foram menos de 2%.
Se as moedas de outros países tiveram uma queda no uso, a moeda venezuelana, o bolívar, ganhou peso no comércio da Venezuela. Em fevereiro, mais da metade das trocas foram feitas em bolívares (54,9%). Esse patamar representa um aumento de 7,6 pontos percentuais no uso da moeda local, que estava em 47,3% no último levantamento, de maio de 2023.
De acordo com o pesquisador econômico Arles Gomes, o aumento no uso do bolívar é positivo em vários aspectos. Primeiro, para retomar a soberania monetária.
“Em termos gerais o principal impacto da recuperação do bolívar é a soberania monetária e tudo que isso implica. É muito importante para um país ser dono da sua própria moeda e ter políticas cambiais. Não é pouca coisa”, disse ao Brasil de Fato.
Por ser um país com grandes reservas de petróleo e depender desse setor para a entrada de divisas, a economia da Venezuela sempre esteve muito ligada ao dólar. No entanto, até 2017, o uso do bolívar ainda era predominante no país vizinho e o Estado conseguia manter a chamada “soberania monetária”. O aumento da inflação e o descontrole cambiário mudaram esse cenário a partir de 2018.
O aumento exponencial dos preços fez com que a inflação mensal atingisse a marca de 196,6% em janeiro de 2019. Com a hiperinflação, empresas e empresários venezuelanos passaram a usar o dólar como válvula de escape para evitar que seus produtos perdessem valor e o lucro diminuísse, explica Gomes. Isso empurrou o uso do dólar para a população, que passou a ver a moeda como uma forma mais segura de preservar suas reservas.
“Todo o fenômeno hiperinflacionário começou a levar a um processo de dolarização. O Estado não aboliu o bolívar, mas a inflação voraz fez com que o dólar se tornasse uma proteção das pessoas à inflação e fossem opção mais atrativa para as transações comerciais. O objetivo do comércio é preservar e, se possível, incrementar capital. Nenhum comerciante ou industrial está disposto a perder valor a partir da queda do valor do bolívares e passaram a usar dólar para evitar a depreciação do capital. Isso começa a permear o resto da sociedade e se torna um fenômeno generalizado”, afirmou o pesquisador.
A mudança no uso de dólares neste ano, no entanto, teve componentes regionais e setoriais. O estado que teve maior taxa de uso de dólares foi San Cristobal (79,8%), na fronteira com a Colômbia. Já os que registraram menores usos da moeda estadunidense foram Mérida (16,3%) e Caracas (34,1%). Os produtos mais dolarizados foram o de peças de reposição automotiva, enquanto o setor de cuidados pessoais (39%) o que teve menor participação do dólar.
Mais bolívares por quê?
Mesmo com o aumento do uso do bolívar, o valor das transações em dólar é maior na Venezuela. O Banco Central diz que a quantidade de bolívares em circulação no começo de 2023 equivaliam a US$ 880 milhões (mais de R$ 4,5 bi).Um ano depois – após o governo imprimir mais dinheiro – no começo de 2024 os bolívares conseguem comprar quase três vezes mais: 2,2 bilhões de dólares.
De acordo com Gomes, o aumento no uso de bolívares pode ser explicado por duas razões. Primeiro, uma estabilização na taxa de câmbio. Apesar de o bolívar continuar perdendo valor, a velocidade dessa desvalorização caiu muito. Depois, pela baixa na inflação. Em fevereiro e março, a taxa mensal no país ficou em 1,2%, a menor registrada nos últimos 12 anos.
“Isso gera confiança, calma, um estado de estabilidade relativa. Faz com que a transação em bolívares não implique um risco de desvalorização iminente, que era o que acontecia na hiperinflação, quando o valor do dólar e, consequentemente, dos produtos, subia em cerca de minutos”, explica o pesquisador.
Prejuízo pra quem?
Para Gomes, os principais impactados com a dolarização foram os trabalhadores. Os salários são pagos em bolívares na Venezuela e a constante desvalorização e consequente queda da confiança na moeda fizeram com que o poder de compra caísse no país. Ao recuperar o bolívar, os salários dos trabalhadores voltam a ter uma estabilidade.
A dolarização, segundo ele, também fez com que o governo segurasse os reajustes salariais. Com a pouca entrada de divisas pelo bloqueio que limitou as exportações de petróleo, a economia venezuelana se viu numa espiral viciosa na qual os trabalhadores dependiam da moeda estadunidense para o consumo interno, mas não tinham capacidade de comprá-los pela desvalorização do bolívar.
Segundo Arles Gomes, o aumento da circulação do bolívar mostra que é possível reduzir a inflação ao mesmo tempo em que se coloca mais dinheiro em circulação.
“Quando o governo aumenta a quantidade de bolívares que circulam na economia nacional, a quantidade de transações sobe e a capacidade de pagar em bolívares aumenta. Ao contrário da teoria monetarista liberal de que incrementar moeda aumenta a inflação, esse incremento em termos reais veio junto com a redução da inflação e a estabilização da taxa de câmbio”, disse.
Os salários dos trabalhadores, no entanto, ainda estão muito abaixo dos patamares esperados pela população. No último 1º de Maio, o governo anunciou um aumento nos auxílios para 130 dólares. O valor, no entanto, não tem incidência sobre o salário mínimo, que ainda está em 130 bolívares (menos de 4 dólares na cotação atual). O valor das férias, 13º e fundo de aposentadoria não são refletidos por esse aumento.
Com a retomada do bolívar, o governo ganha capacidade de ampliar os gastos e ampliar os salários, explica Gomes. De acordo com o pesquisador, o governo tem espaço para isso também porque há uma “capacidade ociosa” na produção do país. Com menos compras, muitas empresas formaram grandes estoques e precisam rodar essa produção. Essa mercadoria parada leva a uma grande oferta para pouca demanda, o que, segundo ele, não levaria a um aumento dos preços.
A proximidade com as eleições também faz com que o governo tenha interesse em aumentar os gastos. Marcadas para 28 de julho, o governo tem pouco mais de dois meses para mostrar resultados e usará a economia para isso.
“O governo agora precisa aumentar os gastos para exibir uma gestão que oferece melhores condições de vida, diferente de seus adversários que não podem oferecer isso nesse momento. A ação de incrementar gastos favorece os pobres e, por esses motivos que eu mencionei, não vai aumentar a inflação”, disse Gomes.
Edição: Rodrigo Durão Coelho
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