Bolívar na Sapucaí: relembre o ano em que a Venezuela

Foram tantas as turbulências políticas e diplomáticas que Brasil e Venezuela viveram em suas relações na última década que pode parecer estranho e até inacreditável a intimidade que ambos os países tinham em 2006. Isso porque foi naquele ano que nossos “hermanos” ao norte decidiram investir parte de seus – até então – abundantes recursos petroleiros em uma das festas brasileiras mais tradicionais: o carnaval carioca.

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A decisão, porém, não foi extemporânea. Ao contrário do fechamento de embaixadas e agressões diplomáticas que ocorreram durante o governo de Jair Bolsonaro, naquele momento as relações entre Brasília e Caracas iam de vento em popa, e a amizade – política e econômica que nascia entre Lula e Hugo Chávez terminaria de compor o cenário perfeito para tal decisão: a união latino-americana ganharia também as avenidas da Sapucaí.

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Foi assim que a PDVSA, a estatal petroleira da Venezuela, fez uma considerável doação em dinheiro à tradicionalíssima Unidos de Vila Isabel, escola de Noel Rosa, Martinho da Vila e outros bambas. A temática da integração regional justificou a escolha da empresa venezuelana, que se convenceu ao ouvir o samba-enredo “Soy Loco Por Ti América” e ver a estátua de mais de 13 metros de altura do Libertador Simón Bolívar ser preparada para desfilar na avenida.

A preparação ficou a cargo do carnavalesco Alexandre Louzada, que ainda apostou em resgatar tradições pré-colombianas, como dos astecas e dos maias, e ainda homenagear heróis como Che Guevara, o libertador argentino San Martín e o general bolivariano brasileiro José de Abreu e Lima.

“Para bailar ‘La Bamba’, cair no samba // Latino-americano som // No compasso da felicidade // ‘Irá pulsar mi corazón’”, vinham cantando os foliões da Vila Isabel, naquele que seria o primeiro desfile da escola após voltar ao Grupo Especial do carnaval carioca. E que retorno: com 397,6 dos 400 pontos disputados, a Vila Isabel ficou empatada em primeiro lugar com a Grande Rio na apuração, e o critério de desempate que deu o título à escola foi justamente o quesito “Letra do Samba-Enredo”, reforçando ainda mais a importância da temática escolhida para o desfile na vitória da Vila Isabel.

“Que maravilha! Que sublime!”, diria o então presidente Chávez em seu programa televisivo semanal Aló Presidente, na edição transmitida um dia após os resultados. “Tremenda vitória da integração latino-americana a da escola de samba Vila Isabel, de grande tradição no Rio. […] Ganhou o primeiro lugar do carnaval número um do mundo”, disse o animado presidente que, até dias antes do carnaval carioca, era alvo de rumores de que poderia desfilar com a escola em solo brasileiro, o que terminou não acontecendo.

Segundo matéria publicada pela Folha de São Paulo à época, o valor doado pela PDVSA à Vila Isabel teria sido de R$ 1 milhão, quantia que não pagou por todo o desfile, mas que foi essencial, nas palavras do então presidente da escola, Wilson Vieira Alves.

E a presença da estatal venezuelana no carnaval carioca era só uma mostra da relevância que possuía a empresa, que naquela altura produzia quase 3 milhões de barris de petróleo por dia e registrava lucros anuais de 5 bilhões de dólares. Todo esse músculo petroleiro servia ao projeto chavista, interna e externamente: em 2005, mais de 3 bilhões de dólares do faturamento da empresa foram destinados à construção das chamadas “Misiones”, conjunto de políticas públicas que atendem a população em diferentes áreas.

Na relação com vizinhos, a potência da PDVSA era aproveitada em projetos como a construção da Refinaria Abreu e Lima, no município de Ipojuca, em Pernambuco. O projeto, que foi inaugurado em 2014, foi interrompido após ser alvo da Operação Lava Jato e parou de contar com a participação venezuelana. Em janeiro deste ano, Lula visitou as instalações e prometeu investimentos.



Integração latino-americana foi tema do carnaval campeão da Vila Isabel em 2006 / VANDERLEI ALMEIDA / AFP

A participação venezuelana na vitória da Vila Isabel também foi objeto de suspeitas, a maioria levantada pela direita venezuelana na tentativa de atacar o governo de Chávez. O tema seria relembrado e utilizado contra o ex-presidente até a sua última campanha presidencial antes da morte, em 2013, quando o então candidato Henrique Capriles voltaria a acusar o governo de “gastos fúteis” como teria sido, nas palavras do opositor, a contribuição carnavalesca de 2006.

Atualmente, após uma década de crise econômica impulsionada pela queda no preço do petróleo e pelas mais de 900 sanções impostas pelos Estados Unidos, a Venezuela produz cerca de 800 mil barris por dia e luta para manter as operações da PDVSA. O atual presidente, Nicolás Maduro, sucessor direto de Chávez, era constantemente hostilizado por Bolsonaro e só pôde voltar a visitar o Brasil como chefe de Estado em 2023, após a posse de Lula.

As diferenças entre a bonança da primeira década dos anos 2000 e os últimos dez anos são evidentes ao se observar a balança comercial: entre 2003 e 2006, as exportações brasileiras à Venezuela passaram de US$ 600 milhões para US$ 3,55 bilhões. Mas entre os anos de 2014 e 2017, o índice passou de US$ 4,56 bilhões para US$ 469 milhões, níveis mais baixos dos que os registrados no primeiro ano do governo Lula.

Não é necessário dizer que a Venezuela nunca mais investiu no carnaval brasileiro, já que diante de um cenário econômico e político tão desfavorável, a cultura também pagou um preço. Dezoito anos depois e após outro carnaval, com um ambiente político renovado na América do Sul, as palavras do samba-enredo da campeã carioca de 2006 ainda ecoam atuais:

Liberdade a construir

Apagando fronteiras, desenhando

Igualdade por aqui

“Arriba”, Vila!!!

Forte e unida

Feito o sonho do Libertador

A essência latina é a luz de Bolívar

Que brilha num mosaico multicor

Edição: Geisa Marques


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