Conheci o trabalho de Nuno Calvet (1932-2023) através do censurado e proibido livro Fotos-grafias, de 1970, com poemas de José Carlos Ary dos Santos e fotografias da sua autoria, número 1 da coleção Poesia da editora Quadrante. Na altura, o conceito de fotolivro não havia sido ainda valorizado na história da fotografia internacional, e muito menos na portuguesa, mas trata-se de um dos seus exemplares mais interessantes e simbólicos, na alvorada da Revolução de 25 de Abril de 1974. O censor ainda propunha o corte de duas páginas para que o livro pudesse ser editado (o processo é consultável online através do site da Ephemera – Biblioteca e arquivo de José Pacheco Pereira, relatório n.º 9028, 17 de maio 1971), obviamente não aceite, e só a partir de 1974 o livro teve circulação livre.
Neste livro, as imagens são reverberações dos poemas de Ary dos Santos, homenageando outros poetas e escritores, portugueses e estrangeiros. Imagens que ainda encarnam as evocações neo-realistas, assumem novos experimentalismos, ou definem um documentalismo crítico, também associado ao fotojornalismo deste período.
Conheceria pessoalmente o Nuno Calvet anos mais tarde, aquando da redação do texto sobre fotografia portuguesa que integra The History of European Photography (1900-2000), editado em 2015 pela Fotofo, Bratislava. Entendi então melhor a abrangência e diversidade do seu trabalho, consonante com uma época de transição e de liberdade para a prática artística, de uma forma geral, e para a fotografia, em particular.
O seu percurso profissional começa a desenhar-se na década de 60, através da fotografia comercial, essencial para a sobrevivência de um fotógrafo naquele período, mas a convivência com o meio intelectual e artístico ditará também a natureza estética do seu trabalho. Um segundo prémio de um concurso promovido pela revista internacional Photography, em 1966, é o incentivo para uma carreira artística que se afirmará na década de 80.
Amigo de Alexandre O’Neill, participa e acompanha-o em tertúlias e projetos variados, registando fotograficamente esses momentos, como a visita de Vinicius de Moraes a Lisboa em 1969, com direito a menção no seu poema Lisboa tem terremoto:
Lisboa tem terremoto
Mas tem o Nuno Calvet
Para lhe fazer cada foto!
José Ferreira Gomes em Dias Comuns, volume 7, entrada de 12 de Abril de 1969, refere que Nuno Calvet “era como o fotógrafo de Blow Up, de Antonioni, lá ia disparando sem descanso a sua máquina de caçar luz e sombra.”
Entre 1971 e 1973, realiza projetos documentais em São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique, trabalhos até hoje inéditos, cujo estudo e divulgação importa fazer. Depois da Revolução de Abril, fez parte do corpo de fotojornalistas do Jornal Novo (1975-1977), dirigido por Artur Portela, um dos periódicos mais contundentes e polémicos deste período pós-revolucionário.
Na década de 80, duas exposições individuais e itinerantes na Fundação Calouste Gulbenkian, são o reconhecimento do seu percurso artístico e a afirmação de uma linguagem documental poético-simbólica. Em 1983, a exposição Além-Terra é dedicada à paisagem alentejana, território de identificação pessoal e estético, que acompanhará toda a sua obra. É uma visão nova, a cores, de um Alentejo que tinha inscrito na sua história visual o preto e branco. Mas o simbolismo social e político, bem como a presença metafísica do lugar, ganham novos contornos e leituras com a sua abordagem, reafirmando a qualidade e a autonomia estética do seu olhar. Em 1986, a exposição Caminhos apresenta um conjunto de imagens, síntese de várias séries sob os temas Litoral, Falésia, Campo, Serra, Rocha e Barredo (Porto), realizadas a partir de diapositivos em 35mm. Alexandre O’Neill, autor do texto, refere a propósito deste trabalho: “Revejo Nuno como quem o vê pela primeira vez. […] Agora está metido com outras texturas, outros caminhos…” A exploração de novas tonalidades e de um macro olhar sobre a natureza serão a estrutura desta nova fase de trabalho.
Destaque ainda nesta década para a sua participação na III Exposição de Artes Plásticas da FCG, em 1986, uma emblemática exposição já que reunia, pela primeira vez depois do 25 de Abril, um conjunto de novas tipologias artísticas, como a fotografia, o vídeo ou a instalação, afirmando uma nova geração e uma nova linguagem para a arte portuguesa. Nuno Calvet tem a sua obra representada no Museu Nacional de Arte Contemporânea, a quem doou um conjunto de obras, na Fundação Calouste Gulbenkian e no Centro Português de Fotografia.
Uma parte significativa da sua produção fotográfica permanece esquecida, e nenhuma história se acrescenta sem que percursos como o de Nuno Calvet sejam plenamente conhecidos e contextualizados. A última imagem que guardo dele é, uma vez mais, comungando da paisagem alentejana que tanto amava, onde encontrava a serenidade e onde tive o privilégio de conviver com a sabedoria e a independência do seu olhar.
A autora escreve de acordo com o novo AO
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