Sinho Baessa: “Não somos ativistas, somos agentes de mudança”

Em 1976, em Portugal, nasceu José Baessa de Pina, atualmente mais conhecido como Sinho. Nas palavras do próprio, é um cidadão afrodescendente, filho de uma família obrigada a fugir da fome de 1947 em Cabo Verde e com bases em Angola, São Tomé e Príncipe e Portugal. Hoje, é vice-presidente da Associação Cavaleiros de São Brás, localizada na Amadora. Por meio desta instituição, Sinho procura munir a sua comunidade para combater os resquícios coloniais, o racismo e a misoginia. Em 2021, esteve presente no documentário “Olhares sobre o Racismo”, uma produção da associação SOS Racismo em parceria com a BANTUMEN, em comemoração dos 30 anos da entidade.

Para Sinho, a trajetória de uma pessoa negra em Portugal apresenta vários reveses, como a falta de representatividade e a procura pela própria identidade. Tais questionamentos sobre a sua própria individualidade surgiram ainda na adolescência. “Ser um cidadão negro em Portugal tem sido desafiante. Temos que ir nos desconstruindo, saber qual a nossa missão aqui, como estamos inseridos aqui. Quando se é criança se não tem noção e, quando se é adolescente, começam a surgir várias interrogações. Faltam referências. Acho que um dos momentos mais difíceis é o de não saber quem tu és, a tua identidade, não te sentes representado nos espaços aonde vais, escola, [espaços de] diversão“, explica.

“Com a juventude vem a consciencialização. Tudo muito importante para eu ser o que sou hoje. É uma luta, porque uma pessoa negra tem que passar por vários processos para conseguir perseverar aqui nesse país, e há aqueles que não conseguem passar por esses processos pela falta de consciencialização. Isso também foi inventado pelo sistema, pois numa sociedade que não tem consciência é difícil em qualquer parte do mundo, acho eu”, continua.

Se, há alguns anos, uma criança negra em Portugal não tinha meios de conhecer a história das suas origens, hoje existem mecanismos para que ela possa entrar em contacto com as suas raízes e ancestralidade. No entanto, o caminho para uma sociedade mais igualitária ainda é longo. “Aqui em Portugal, com a falta de referências, com as narrativas na escola principalmente, se não tivermos outras ferramentas para se autodescobrir, fica muito difícil. Agora, graças a várias redes de informação, temos tido a oportunidade de nos mostrar. E isso também com muita participação comunitária, que se empenham em passar essas situações”, diz.

Entidades como os Cavaleiros de São Brás têm feito esse trabalho para levar mais informações às pessoas. “Essas associações, movimentos, que têm passado essas novas referências, eu chamo de gente de mudança. Acho que isso está a ser importante, essa parte de juntarmos várias pessoas que têm esse pensamento. Sinto que já está a haver mais espaço, já estamos a circular entre vários espaços, mas ainda é pouco, no meu ver”, destaca.

Sinho comenta que, por mais que a atuação das associações seja fundamental, é dever do Estado cuidar para que os cidadãos em condição de vulnerabilidade tenham uma melhor qualidade de vida. “A associação tem partilhado com várias instituições e outros canais aquilo que a gente quer fazer, mas eu não acho que seja obrigação delas fazer isso, são um complemento. Acho que essas políticas têm que vir mesmo do Estado. Porque as associações só fazem aquilo que podem e fazem muito bem, que é emancipar, empoderar, dar um suporte nas várias situações que vão acontecendo, promover a cultura… Tentar passar informações que nos chegam à comunidade. Por isso, também faço apelos para que os nossos influenciadores digitais venham mais à comunidade, ver in loco e falar com as pessoas para saber o que elas acham, o que faz falta, o que pode-se mudar”, pontua.

É uma questão de criar políticas públicas, criadas para a população negra: “Eu gostaria que as associações tivessem uma ligação com o poder local. Ter uma relação com as instituições públicas, porque, sem essa relação, fica muito difícil para as associações fazerem o que querem fazer. Os desafios para os movimentos sociais são muitos por falta de políticas públicas. Se o poder local não acompanha e não dá as verbas para essas ações, torna-se muito difícil. Mas, pouco a pouco, as associações estão a tornar-se independentes e a fazer coisas. Fazer coisas que, depois mais tarde, às vezes, o poder local vem tomar o crédito, daquilo que não contribuiu para fazer”, salienta.

Sinho Baessa afirma ainda que é a união de diversos grupos que realmente faz a diferença nas comunidades. “Os Cavaleiros de São Brás têm tido um papel muito importante na parte de consciencialização, nas partilhas. Muitas pessoas começaram a ter vontade de participar de alguma coisa útil à sociedade derivada a várias ações que foram feitas por várias associações. Não gosto de focar só nos Cavaleiros, porque sem os outros movimentos, sem várias pessoas anónimas, as associações não têm andamento porque é tudo voluntário”, aponta. “Acredito num todo, não acredito só numa associação. Acho que as associações têm que trabalhar mais em conjunto, em várias áreas. Porque há associações desportivas, de psicólogos, da saúde…”, expressa.

Existem muitas áreas que precisam ser observadas com atenção – a saúde mental das pessoas negras, por exemplo, também é uma preocupação para Sinho. “Na parte da saúde mental, a comunidade negra tem uma maleita e não é acompanhada. Estamos a ver muitos jovens com problemas de saúde mental, por isso, é muito importante, nós, como associação, criarmos essa consciencialização, com rodas de conversa, para que a informação chegue às pessoas”, expõe.

Não somos pobres, somos empobrecidos pelo sistema

Sinho Baessa de Pina

Deixando a questão do ativismo um pouco de lado, Sinho declara que se considera um agente de mudança. “Não somos ativistas, somos agentes de mudança. Durante a minha vida, cresci em comunidade e a ajudarmos-nos uns aos outros. Vi o meu pai a fazer isso, dentro da comunidade, a dar o seu contributo. E eu também sempre participei. Também tive a oportunidade de crescer na associação Unidos de Cabo Verde, onde tinha a parte cultural. Não estávamos em espaços públicos da minha cidade, tudo o que fazíamos era dentro da comunidade. Lá é que tinha o espaço de jovens, atividades culturais. Fiz dança, fiz canto, fiz teatro”, conta.

Foi justamente no universo coletivo que começou a perceber que tinha algo a dizer. “Via que era a única maneira de eu expressar-me na sociedade, era o único espaço onde eu me sentia livre. E também via desde criança o que se passava à minha volta. A violência policial, a discriminação, o racismo. Começamos a ver que aquilo é estrutural. Não é porque somos pobres. Não somos pobres, somos empobrecidos pelo sistema. Não me considero pobre, tive uma infância rica”, discorre.

“O problema dos guetos que foram criados em Portugal foi por falta de políticas públicas. Comecei a ver que também tinha que dar a minha voz. Via vários discursos que [apontavam] que estávamos a adotar o vitimismo. E comecei a ter consciência de que posso dizer algo, para desconstruir a narrativa que via à minha volta, nos veículos de media“, continua.

A realidade árida que presenciou foi o que o levou ao caminho das atividades sociais, em que se inclui também o hip hop, cultura que nasceu como uma arma social para criar visibilidade sobre a discriminação, racismo e pobreza enfrentada pela comunidade negra nos Estados Unidos. “Nos anos 90, criamos um grupo de rap na comunidade e isso também foi importante, porque cantávamos a nossa realidade. A violência policial, o racismo, a pobreza, a habitação, era uma música de contestação”, explica.

Além disso, o contato com os livros foi um fator que fez com que observasse o mundo com outros olhos. “Tenho o gosto da leitura. Só fiz o ensino preparatório mas fiquei com o gosto da leitura. Lia de tudo um pouco, quadradinhos, desportivos, história… Depois, com o rap também comecei a ter mais interesse em ler. Aqui em Portugal, tínhamos poucos lugares para ler, mas sempre tive o interesse”, diz.

Um acontecimento pessoal que alterou a perspetiva de Sinho sobre si, foi a vinda da avó, que é cabo-verdiana, para Portugal, quando ele estava nos seus 20 anos. “A minha avó é cabo-verdiana, mas nos anos 50 foi para São Tomé e Príncipe para trabalhar nas roças de cacau. É aí que se dá o momento de saber quem sou, o percurso da minha família. Porque, se não souber a história, ficava num limbo. Então, fui tendo mais consciência de que há uma estrutura que limitou, tanto os meus avós, os meus pais, até chegar a mim. E isso tem um reflexo no percurso da nossa vida. Vi que várias gerações em Portugal foram segregadas daquilo que têm direito, de serem o que queriam e isso sempre me incomodou”, destaca.

O racismo, por ser estrutural, está incrustado na cultura do país. Então, uma forma de mudar essa realidade é mostrar à população a verdadeira história dos afrodescendentes e da colonização. “A sociedade portuguesa não sabe da história e muitos não querem saber. Torna-se difícil porque eu, enquanto estou a desconstruir, ainda tenho que passar informações de consciencialização para aquele que me oprimiu“, elucida.

Um meio de se fazer isso seria a promoção da Década Internacional de Afrodescendentes, ação criada pela ONU para garantia dos direitos dos afrodescendentes. O período começou em 2015 e terminará em 2024. “Por exemplo, poderíamos utilizar a Década Internacional de Afrodescendentes para passar informações, não vimos os canais em Portugal a falar sobre o movimento”, lamenta.

É também função dos meios de comunicação levar essa consciencialização, essencial para Sinho, aos cidadãos portugueses. “É preciso chamar as pessoas para falar disso, não somos chamados para falar nos veículos de media, há um desconforto. É tipo estar a pôr o lixo em baixo do tapete outra vez. E isso precisa acabar. Desconstruir essa narrativa vai trazer muitas coisas e isso incomoda quem tem privilégio”, declara.

O terreno a cobrir ainda é extenso mas Sinho pretende continuar com o seu trabalho na associação. “É um propósito. Tenho a minha vida, há 25 anos trabalho numa área de vigilância. Mas nunca deixei de trabalhar para ajudar a mudança de narrativa nesse país. No meio associativo, acho que é um espaço onde posso ser livre, expressar-me, sem ninguém limitar aquilo o que quero dizer. Porque, quando entras no sistema, não te deixam expressar. Por isso utilizo a minha voz, a minha história, que reflete em várias comunidades em Portugal, que tiveram essa vivência como eu”, finaliza.

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