UCCLA Viagens à volta da Língua Portuguesa

Não se falou só de literatura no XI Encontro de Escritores de Língua Portuguesa, promovido pela UCCLA (União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa) e a Câmara Municipal da Praia, que decorreu na capital de Cabo Verde nos passados dias 19 e 20 de outubro. Logo no início das atividades no segundo dia, ouviu-se uma figura central da História de Cabo Verde: Pedro Pires foi combatente pela independência antes do 25 de Abril, logo depois dela assumiu o cargo de primeiro-ministro (que ocupou entre 1975 e 1991) e foi eleito Presidente da República em 2001, e reeleito, até 2011).

Na manhã de sexta-feira, 20 de outubro, numa sala de conferências do Hotel Pestana Trópico, falou enquanto residente da Fundação Amílcar Cabral. Mais do que recordar a vida e os feitos do líder africano, Pedro Pires empenhou-se em anunciar que 2024 será um ano de grandes celebrações do seu centenário do seu nascimento (em Bafatá, atual Guiné-Bissau, a 12 de setembro de 1924), centradas, sobretudo, no mês de setembro. Anunciou, ainda, que já neste mês de novembro será formalizada a candidatura dos escritos de Cabral ao programa Memória do Mundo da UNESCO, acrescentando que há o desejo de que a UNESCO apadrinhe todo o programa das comemorações do centenário. Pedro Pires revelou, ainda, que o governo de Guiné-Bissau está também empenhado nessas celebrações, sublinhando a “coincidência feliz” de a ministra da Juventude, Cultura e Desporto do país, Indira Cabral, ser filha de Amílcar Cabral, o que faciliyou “o desbloqueio dos contactos” com as autoridades guineenses.

Já na véspera (quinta-feira, 18), Amílcar Cabral tinha sido o tema de uma mesa-redonda, na Biblioteca Nacional de Cabo Verde, que juntou os académicos cabo-verdianos Fátima Fernandes e Odair Varela e o jornalista português José Pedro Castanheira (autor do livro Quem Mandou Matar Amílcar Cabral, editado em 1995 pela Relógio d’Água, atualmente esgotado). Cinquenta anos depois do seu homicídio (a 20 de janeiro de 1973, em Conacri) percebe-se que evocar a sua figura ainda pode gerar tensões e discussões. Afinal, a resposta à pergunta do título desse livro de José Pedro Castanheira ainda não é, hoje, clara e definitiva – mas é praticamente dado como verdadeiro que não foi um crime com a marca do Estado português, via PIDE/DGS, mas sim de conspirações internas do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde).

As diferenças no modo como o legado de Amílcar Cabral é visto na Guiné-Bissau e em Cabo Verde também é um assunto sensível. Mas é indesmentível que o seu nome tem assumido grande importância histórica nos últimos anos. Para o demonstrar, José Pedro Castanheira lembrou um inquérito feito, em 2020, pela revista inglesa BBC World Histories Magazine junto dos seus leitores sobre os maiores líderes de sempre (a partir de uma lista de pré-nomeados). Amílcar Cabral surgiu em segundo lugar, só atrás do marajá Ranjit Singh (imperador Sikh do século XIX).

Há uma frase muito citada de Amílcar Cabral sobre a língua portuguesa que, compreensivelmente, se ouviu várias vezes neste encontro de escritores lusófonos. O líder das lutas independentistas da Guiné-Bissau e Cabo Verde disse, e escreveu, que a língua portuguesa foi uma das melhores coisas que os colonizadores deixaram em África, como “instrumento” de comunicação entre vários povos. A citação costuma ser feita como um grande elogio de Cabral à lusofonia, mas esse entendimento não é consensual. Na sua intervenção neste encontro, o escritor guineense (a viver em Lisboa) Amadou Dafé fez questão de revisitar essa ideia e sublinhou que quase sempre é esquecido o que o líder independentista acrescentava à ideia da boa herança da língua portuguesa, falando de “um dia em que, de facto, tendo estudado profundamente o crioulo, encontramos todas as regras de fonética boas para o crioulo, e possamos passar a escrever o crioulo.”

A sessão em que Dafé participava obedecia ao tema “Literatura, Inclusão e Desenvolvimento”, pretexto para uma intervenção provocadora: “Incluir-me em quê? Até prefiro não ser incluído na língua portuguesa, porque é que ela é mais importante do que a minha língua materna, em que falo com o meu pai e a minha mãe?”, perguntou. Assumindo que “adora” o português, e é nessa língua que tem escrito os seus livros, não deixa de sublinhar que “a lusofonia tem as suas artimanhas e pode incluir uma certa colonialidade.” Falou, ainda, pensando na sua experiência, na dificuldade de muitos jovens que crescem a falar crioulo e, na escola, têm que se adaptar a um idioma diferente, que não é a sua língua materna.

Na mesma sessão, a cabo-verdiana Lúcia Cardoso, especializada em música e voz, área que leva para vários projetos sociais e culturais, também sublinharia que uma língua pode ser “uma ferida aberta”, recordando que desde a Roma Antiga as línguas são tão usadas “para incluir como para excluir.” Sintonizada com questões bem atuais, Sheila Kahn (representando Moçambique, mas a viver em Portugal, onde é professora universitária) quis sublinhar o poder da literatura nas necessárias “reparações históricas” como ferramenta “com uma dimensão cultural e identitária, sociológica e antropológica.” 

Entre representantes da Guiné-Bissau, Moçambique, Angola (Jacques dos Santos, há anos um cronista atento do seu país), São Tomé e Príncipe (Olinda Beja, com uma emocionante história de vida que faz questão de partilhar, sublinhando sempre que a memória e a História devem ser fundamentais para cada um) podia surpreender, nesta 11ª edição do Encontro dos Escritores de Língua Portuguesa, encontrar um poeta galego. Na sua ótica, porém, não pode haver lugar a qualquer surpresa, já que Pedro Casteleiro sustenta que galego e português são, verdadeiramente, a mesma língua (tal como se pode dizer que “brasileiro”, com as suas especificidades, e “português” são a mesma língua). Ele faz, aliás, parte da Academia Galega da Língua Portuguesa, fundada em 2008 em Santiago de Compostela.

Na sua intervenção, Casteleiro quis sublinhar, nestes dias em que o mundo parece entregar-se às vertigens da guerra e do ódio, a língua e a literatura como “motor de paz”, recordando como o nosso idioma nasceu fundamentalmente da inclusão, num caldo poderoso que, na Península Ibérica, juntou a cultura judaica, cristã e muçulmana. E terminou lendo um poema clássico e ecuménico de Ibn Arabi, hispano-muçulmano do século XIII, que termina assim: “Pratico a religião do amor/ qualquer que seja a direção em que as caravanas avancem/ a religião do amor será sempre o meu credo e a minha fé.” A literatura pode ser a salvação?

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