Integrantes do Grupo Wagner são de fato mercenários?
Não. De acordo com o direito internacional humanitário, todos os requisitos a seguir devem der cumpridos para classificar um mercenário. De acordo com a Convenção de Genebra, mercenário é:
1) alguém recrutado no próprio país ou no exterior com o objetivo específico de lutar num conflito armado;
2) alguém que participa de fato das hostilidades;
3) alguém que participa de hostilidades para obter vantagens pessoais e que recebe de ou em nome de uma parte do conflito a promessa de uma remuneração substancialmente superior à prometida ou paga a combatentes de forças armadas desta parte com patente e funções semelhantes;
4) alguém que não seja cidadão de uma parte envolvida no conflito e nem resida em território controlado por uma parte do conflito;
5) alguém que não seja integrante das forças de segurança de uma das partes envolvida no conflito; e,
6) alguém que não tenha sido enviado em missão oficial como membros das forças armadas de um Estado não envolvido no conflito.
Katharina Stein, pesquisadora do Instituto de Direito Público da Universidade Albert Ludwigs de Freiburg, aponta que os combatentes do Grupo Wagner não são mercenários, mas trabalham para uma chamada empresa militar privada (PMC, na sigla em inglês).
“Eles não cumprem os seis requisitos cumulativos para o status de mercenários – sobretudo porque eles próprios são cidadãos russos”, afirma. Ou seja, no caso da Guerra na Ucrânia, eles são cidadãos de uma parte envolvida no conflito.
De acordo com a especialista, no entanto, o requisito mais difícil de ser preenchido, não só para o Grupo Wagner, é o terceiro: receber uma remuneração efetivamente maior do que os membros das forças armadas.
Portanto, pela classificação, o Grupo Wagner não é de mercenários, mas se enquadra nas chamadas empresas militares privadas. Qual é a origem delas?
No final da Segunda Guerra Mundial, muitos Estados ocidentais privatizaram as suas empresas de armamentos. A privatização dos serviços militares foi o passo seguinte.
Quando a Guerra Fria chegou ao fim, em 1990, principalmente, os Estados Unidos, o Reino Unido e os antigos países da União Soviética reduziram suas forças armadas e muitos soldados formados ficaram sem colocação. Eles encontraram então uma ocupação nas empresas militares privadas e foram incumbidos pelos mesmos Estados de intervir em conflitos internos de menor intensidade para que os próprios governos não precisassem se envolver militarmente de forma ativa.
“Prestadores de serviços militares privados são, às vezes, empresas que estão inseridas em grandes estruturas empresariais e podem oferecer muito. Entramos, libertamos um refém e saímos. Ou treinamos militares para dominar o manual da Otan ou o ataque”, pontua Stein.
Que vantagens há para Estados em contratar empresas militares privadas?
Segundo Stein, sai muito mais barato para o Estado terceirizar esse tipo de serviço, pois não há custos de formação de profissionais, despesas com salários de longo prazo, aposentadoria ou compensação por dia de doença. A especialista ressalta que se pago apenas por uma ação que tem um objetivo específico durante um período determinado.
É o modelo clássico da subcontratação com base no cálculo de custo-benefício, que parece ser uma alternativa mais em conta para muitos Estados. Entre 1994 e 2007, os Estados Unidos investiram cerca de 300 bilhões de dólares em 12 empresas militares privadas. Um montante volumoso, mas que para muitos países não deixa de ser um dinheiro bem gasto.
“Os contratados são altamente especializados, bem treinados e possuem equipamento próprio. Eu pago por aquilo que recebo e não tenho assim outros custos”, acrescenta Stein.
Mas acima de tudo: as empresas militares privadas fazem o trabalho sujo, como o Grupo Wagner na Síria e na Ucrânia. Mortos e feridos não desencadeiam os mesmos debates políticos internos como quando envolvem as forças armadas. E a responsabilidade por crimes de guerra, por exemplo, pode ser facilmente empurrada.
Para Klein, esse é um outro argumento central. “É sempre possível dizer que não fizemos isso. Há uma ruptura nessa responsabilidade direta do Estado. As empresas militares privadas podem ser sempre contratadas, por exemplo, quando o Parlamento não aprovar o uso das forças armadas.”
Mas nem sempre pode ser vantajoso ceder o monopólio do uso da força, como mostrou o motim do Grupo Wagner no fim de semana. Foi a primeira vez que uma empresa militar privada agiu contra o próprio país.
Como as empresas militares privadas respondem por crimes cometidos?
“Praticamente não há ação judiciais contra essas empresas em seus países de origem. Nas últimas décadas, são conhecidas somente condenações referentes ao fracassado golpe de Estado na Guiné Equatorial, em 2004. Entre outros, Simon Mann, cofundador e CEO da Executive Outcomes e Sandline International, foi condenado a 34 anos de prisão. Em 2009, ele foi perdoado pelo presidente Obiang”, afirma Stein.
O caso teve repercussão principalmente devido a Mark Thatcher, filho da ex-primeira-ministra britânica. Thatcher apoiou Mann financeiramente e comprou sua liberdade por 560 mil dólares.
Basicamente: autoridades estatais têm dificuldades para controlar as empresas militares privadas, que operam numa zona jurídica cinzenta e se sentem pouco vinculadas às normas, leis e ao direito internacional de guerra. O melhor exemplo: o massacre em Bagdá promovido pelos soldados americanos do Blackwater, que deixou 17 mortos em setembro de 2007. Em 2020, o então presidente dos EUA, Donald Trump, perdoou quatro funcionários da empresa de segurança responsável.
O Grupo Wagner pode dar início a um novo debate sobre o emprego de empresas militares privadas?
Katharina Stein espera que o caso Wagner ao menos traga uma mudança fundamental na forma de pensar e aumente a pressão sociopolítica para uma regulamentação internacional. Até agora, essas propostas fracassaram.
“No âmbito da ONU, houve várias iniciativas internacionais para criar um tratado vinculativo sobre as empresas militares privadas. Elas foram bloqueadas principalmente por Estados Unidos, Reino Unido, África do Sul e Israel, que são os quatro países que mais utilizam esses serviços.”
Muitos Estados gostam de remeter ao chamado Documento de Montreux, adotado em 17 de setembro de 2008, com os princípios como os países devem lidar com esse tipo de empresa – é a primeira declaração internacional referente ao tema, com a participação da Alemanha, Ucrânia e EUA.
Mas esse papel, que tem como objetivo defender o direito internacional humanitário e respeitar os direitos humanos, possuiu uma desvantagem crucial, pontua Stein. “É muito comemorado porque pode se alegar que existe uma espécie de regulamentação. Mas ele não tem nenhum efeito vinculativo. É sempre destacado que dele não resultam direitos e obrigações. O Documento de Montreux tem um papel fictício”, ressalta a especialista.
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