Em 2019, duas fações disputaram o poder na Venezuela e os fundos de 1,4 mil milhões guardados no Novobanco. Nicolás Maduro tentou levar dinheiro para a Rússia. Juan Guaidó quis enviar para os EUA.
- Este artigo faz parte de uma série de cinco episódios da “Guerra pelos milhões da Venezuela” e que conta os bastidores, disputas, reviravoltas e intrigas em torno dos fundos de mais de 1,4 mil milhões de euros que as empresas públicas venezuelanas guardam no Novobanco.
No dia 22 de março de 2019, os administradores do Novobanco Luísa Soares da Silva e Vítor Fernandes receberam uma carta oficial do Governo da Venezuela com um pedido urgente:
“O banco não pode acatar as instruções do regime de Nicolás Maduro, nem de nenhum órgão ou ente controlado por tal regime. (…) Oportunamente receberão instruções dos legítimos representantes legais de esses órgãos ou entes conforme as decisões adotadas pelo Presidente encarregado da República”.
A missiva tinha sido endereçada pelo Procurador Especial José Ignacio Hernández, nomeado por Juan Guaidó, com objetivo de alertar o banco português para a necessidade de vigiar os fundos que quase duas dezenas de empresas públicas venezuelanas, incluindo a petrolífera estatal PDVSA, guardavam em Portugal e evitar que caíssem nas mãos de quem já não tinha legitimidade para representar o povo venezuelano.
Não era para menos. Poucas semanas antes, Nicolás Maduro já tinha tentado tirar o dinheiro do Novobanco para o Uruguai, mas o banco então liderado por António Ramalho bloqueou prontamente a saída dos fundos, uma operação denunciada em plena Assembleia Nacional liderada por Guaidó.
Naquele ano, com Maduro e Guaidó a disputarem o poder na Venezuela, nos bastidores as duas fações travaram uma luta pelos mais de 1,4 mil milhões de euros que várias empresas estatais detinham na instituição financeira portuguesa. Uma boa parte do dinheiro chegou a sair dos cofres do Novobanco, mas nunca deixou Portugal (até aos dias de hoje). No final, nenhum dos lados saiu vencedor desta guerra. Juan Guaidó encontra-se exilado nos EUA e não pode regressar a casa sob pena de ser detido. Quanto a Nicolás Maduro, embora se mantenha no poder, dificilmente irá ver um cêntimo desses fundos, para infortúnio de uma população que há muito convive com a pobreza.
O verão de 2019 acabou por ser especialmente quente no Novobanco. Se já não bastavam as agruras de um duro processo de reestruturação e as polémicas com pedidos milionários ao Fundo de Resolução, tinha agora outro problema milionário para resolver.
O banco, já nas mãos dos americanos da Lone Star desde o final de 2017, tinha decidido cortar de raiz as relações comerciais com a Venezuela, devido à crise política e institucional naquele país, e após ter detetado várias operações suspeitas (comunicadas ao Ministério Público) em contas das entidades públicas venezuelanas.
Tomada a decisão de fechar as contas, com o respaldo do Banco de Portugal e do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), o Novobanco queria saber o destino a dar aos fundos lá depositados em dezenas de contas tituladas por 18 empresas e entidades públicas venezuelanas, desde a PDVSA (detinha 500 milhões de euros) até à Oficina Nacional del Tesoro (cerca de 25 mil euros).
O processo foi atribulado, sem deixar de envolver muita tensão e algum dramatismo, como seria de esperar quando estão em causa montantes desta grandeza.
Depois de o Novobanco ter travado a saída dos fundos para o Uruguai, na véspera de mais um 25 de abril em Portugal, Maduro fez a partir de Caracas um apelo sensível ao Governo de António Costa para devolver aquele dinheiro: “São 1.726 milhões de dólares sequestrados pelo Novobanco que eram para compra de medicamentos e alimentos. Não é dinheiro de Maduro”.
O problema do Novobanco extravasava o próprio banco. Podia comprometer as relações políticas e diplomáticas entre dois países. Além das várias comunicações às autoridades, a instituição financeira multiplicou as interações com o Governo português e o embaixador da Venezuela em Portugal para dar conta do andamento deste complexo processo.
Os protestos subiram de tom à medida que o banco se mantinha irredutível em transferir o dinheiro, incluindo ameaças de processos em tribunal (que viriam a concretizar-se mais tarde).
Uma delas veio do Banco Venezuelano de Desenvolvimento Económico e Social (Bandes), numa carta enviada ao banco português a 24 de setembro, insistindo para a rápida devolução de cerca de 190 milhões de euros:
“Na ausência de uma transferência imediata, o Bandes defenderá vigorosamente os seus direitos através de todos os meios legais disponíveis e procurará ser reparado por quaisquer danos resultantes das violações do Novobanco”.
Mas como é que as relações entre o Novobanco e a Venezuela – outrora privilegiadas no tempo do BES de Ricardo Salgado – tinham chegado a este ponto sem retorno?
A porta que Sócrates abriu
A porta da Venezuela abriu-se ao BES (como a outras empresas nacionais, como o grupo Lena e a JP Sá Couto, dos computadores Magalhães) durante o Governo de José Sócrates, em 2008, que procurou dinamizar as relações comerciais com aquele país sul-americano, numa altura em que a crise financeira estava a emperrar a economia mundial.
Para Ricardo Salgado, o interesse era outro: aceder à abundante liquidez que a Venezuela conseguia gerar com a produção e venda de barris de petróleo, através da gigante PDVSA, que iria permitir financiar a atividade do banco e das outras empresas do Grupo Espírito Santo.
Um ano depois, as empresas estatais da Venezuela (muitas controladas pelo grupo petrolífero) abriram as primeiras de dezenas de contas no BES e milhões e milhões de euros e de dólares americanos começaram a fluir para os cofres do banco português.
O BES chegou a gerir mais de 10 mil milhões de euros de fundos venezuelanos, mas a história não acabou bem para Caracas com a implosão do grupo da família Espírito Santo em 2014 (uma história com contornos de um filme de Hollywood).
A Venezuela reclama ainda hoje cerca de dois mil milhões de euros no processo de liquidação do BES, que foi alvo de resolução em agosto daquele ano, mas o esforço será muito provavelmente em vão. Isto porque esse dinheiro diz respeito a investimentos em papel comercial da ESI e Rioforte, ambas entidades do universo da família Espírito Santo, e não do banco falido, pelo que os créditos não foram reconhecidos pela comissão liquidatária. Mesmo que venham a ser reconhecidos, já se sabe que a massa insolvente do BES só terá dinheiro para reembolsar apenas um credor, o Fundo de Resolução.
Mas há quatro anos, as fações de Maduro e Guaidó, acabado de ser proclamado Presidente interino e com o apoio internacional, desde os EUA à União Europeia, incluindo de Portugal, estavam a disputar outros fundos – os depósitos das entidades estatais venezuelanas que estiveram guardados no BES e que foram transferidos para o Novobanco aquando da aplicação da medida de resolução pelo Banco de Portugal há dez anos.
O setor público venezuelano guardava nos cofres do Novobanco cerca de 492 milhões de euros e ainda outros mil milhões de dólares americanos (cerca de 940 milhões de euros), em contas tituladas pela PDVSA, Petrocedeño, Bandes, Petropiar, entre outras empresas venezuelanas.
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Durante 2019, aquele dinheiro – que representava 5% do total de depósitos do banco português — esteve à mercê de Maduro e Guaidó.
Mas impôs-se uma pergunta de 1,43 mil milhões de euros: do lado do Novobanco havia a certeza de que o dinheiro era para ser devolvido, mas quem tinha legitimidade para o reclamar?
Assalto dos ‘gringos’
A sofrer há muito com as sanções internacionais e com uma situação de hiperinflação crónica (130.060% em 2018) a esmagar a vida e a hipotecar o futuro da maioria da população, a Venezuela assistiu a um agravamento das divisões políticas e institucionais no início de 2019, atirando o país para uma situação de maior incerteza e miséria.
A 10 de janeiro, Nicolás Maduro foi investido como presidente venezuelano pelo Tribunal Supremo de Justiça, sobrepondo-se à Assembleia Nacional, que tinha recusado dar posse ao “herdeiro” de Hugo Chávez, e a Juan Guaidó, que tinha sido proclamado presidente interino com o apoio da comunidade internacional, com o objetivo de preparar eleições livres.
A 6.500 quilómetros, em Lisboa, a coexistência de dois centros de poder em Caracas fez soar os alarmes no Novobanco. Foram reforçados os níveis de vigilância em relação às contas que as empresas públicas venezuelanas tinham aberto na década anterior, até porque o histórico assim o recomendava. Já havia suspeitas de algumas transações ilícitas e que se encontravam a ser investigadas pelo DCIAP. A situação de indefinição na Venezuela aumentava seriamente o risco de fraude e apropriação de fundos da população por parte de um grupo restrito de pessoas ligadas ao regime.
A indefinição política e institucional na Venezuela colocou o Novobanco perante o dilema: quem podia mexer nas contas?
A dúvida instalou-se definitivamente nos responsáveis do banco português a 22 de março, quando Luísa Soares da Silva (administradora com o pelouro jurídico) e Vítor Fernandes (com as grandes empresas) receberam uma carta do então procurador especial nomeado por Juan Guaidó, com a instrução clara para não acatar as ordens dadas por entidades controladas pelo regime de Nicolás Maduro:
“Incumbe-me adotar todas as ações legais para proteger todos os ativos da Venezuela no estrangeiro. Isso inclui todos os ativos depositados no Novobanco”, transmitiu o responsável ao banco português, dizendo para aguardar instruções sobre o que fazer com os fundos.
Por esta altura, Nicolás Maduro multiplicava os discursos no sentido de aumentar a pressão para Portugal libertar os fundos. Fê-lo a 25 de abril e repetiu a dose dias mais tarde, a 11 de maio: “Não me cansarei de denunciar o roubo de mais de 30 mil milhões de dólares, pelo Governo dos EUA, contra a Venezuela. Em Portugal, por exemplo, num banco chamado Novobanco, roubaram-nos 1.726 milhões de dólares que estavam destinados para trazer medicamentos. (…) Assalto à plena luz do dia, por ordem do Governo ‘gringo’ americano”.
Sem saber quem eram os beneficiários legítimos dos fundos que guardava, o Novobanco decidiu pôr termo às históricas ligações comerciais com as empresas públicas da Venezuela e avançou com o fecho de todas as contas bancárias.
Disso mesmo deu conhecimento ao Banco de Portugal, a 30 de maio, e, depois, ao DCIAP, a 1 de julho, com este último a transmitir ao banco a sua posição sobre o que a instituição financeira devia fazer com o dinheiro que restava nas contas:
“A decisão de encerramento das contas deve, em nosso entender, ser comunicada aos representantes dos titulares das contas em causa (…), quer aos que o Novobanco conheça como se arrogando legítimos representantes dessas mesmas entidades, conferindo um prazo não inferior a 20 dias para virem indicar conta bancária para onde devam ser transferidos os fundos.”
Rússia ou EUA?
No início de agosto de 2019, o Novobanco voltou a ser notícia nos jornais e tema de discussão na praça pública e política, e não por boas razões.
Cinco anos depois da queda do BES, o legado deixado por Ricardo Salgado continuava a pesar nas contas do banco que lhe sucedeu. No dia 3, o Novobanco apresentou prejuízos milionários, na ordem dos 400 milhões de euros relativos a apenas meio ano de atividade, e anunciou (mais) um pedido de mais 540 milhões ao Fundo de Resolução ao abrigo do mecanismo de capital contingente negociado pelo Governo com a Lone Star.
Os dias seguintes não foram menos intensos. Pela complexidade e delicadeza do tema, o dossiê Venezuela estava a ser acompanhado pelo conselho de administração de António Ramalho, com o apoio dos departamentos jurídico e de compliance do banco.
A 20 de agosto seguiram dezenas cartas para as 18 empresas públicas venezuelanas cujas contas iam ser encerradas e também para os ministérios do Governo de Maduro com a tutela daquelas entidades.
No mesmo dia, cumprindo a ordem do DCIAP, o banco tratou de enviar missivas com o mesmo teor para as entidades relacionadas com o Presidente interino Juan Guaidó, designadamente o Procurador Especial, a Junta Administrativa Ad-Hoc da PDVSA e a Assembleia Nacional.
As cartas fundamentavam as razões pelas quais o Novobanco se preparava para terminar as relações contratuais e fechar as contas bancárias. Entre outros, o banco apontou a situação de incerteza política, o facto de Portugal reconhecer Guaidó como Presidente interino e os elevados índices de corrupção apontados em vários relatórios de observadores internacionais.
O principal risco para o banco era este: de transferir o dinheiro para as empresas públicas venezuelanas, mas o pagamento ser considerado inválido, o que significaria que continuaria a dever 1,4 mil milhões de euros aos verdadeiros credores.
Para se proteger desse perigo, nas missivas enviadas para a Venezuela, o Novobanco deixou claro que só libertaria os fundos se as fações Maduro e Guaidó chegassem a um acordo quanto às contas bancárias que iriam receber o dinheiro:
“Caso seja emitida indicação consensual a este respeito por ambas as partes, e desde que as autoridades portuguesas competentes não levantem qualquer objeção e não existam outros impedimentos legais, o Novobanco procederá à devolução dos fundos para a conta indicada.”
As respostas chegaram nas semanas seguintes. A troca de correspondência com algumas empresas mostra que a decisão do Novobanco não foi propriamente bem recebida do outro lado do Atlântico, como provam as comunicações entre o Novobanco e o Bandes e outras empresas públicas como a Petrocedeño, em que se questionava a legalidade da decisão e as “inquietudes de natureza retórica e sem base legal” do banco português.
“O Novobanco não deve e não está autorizado, no âmbito das leis aplicáveis, a determinar quem é o Presidente da Venezuela, Maduro ou sr. Guaidó, ou se o sr. Guaidó está autorizado a representar o Governo da República Bolivariana de Venezuela”, ripostaram do lado das empresas públicas.
A 4 de setembro, o Bandes Uruguay respondeu ao banco português que devia transferir os 7,6 milhões de euros que lá estavam depositados para a conta do Bandes no Evrofinance Mosnarbank, com sede em Moscovo e controlado pelo Fondo para el Desarollo Nacional da Venezuela.
A 10 desse mês, a Petropiar enviou um e-mail a indicar a conta que tinha no Sumitomo Mitsui Banking Corporation, um dos maiores bancos do Japão e para onde o Novobanco devia transferir cerca de 150 milhões de euros.
Dois dias depois, a 12, o Banco del Tesoro deu a instrução para que os fundos de quase três milhões de euros fossem transferidos para o banco Evrofinance Mosnarbank, na Rússia, e o banco Aktif Bank, na Turquia. Mais tarde, os representantes do regime Maduro do Banco del Tesoro solicitaram a transferência do dinheiro para uma conta no Sberbank, no Cazaquistão.
No final deste processo, o Novobanco contabilizou que cerca de 60 milhões de euros ficaram por “reclamar” por parte dos representantes de Maduro do BancoEx, da Ferinitro, do Fonden, da Oficina Nacional del Tesoro, da Petromonagas e da Sismica Bielovenezolana.
Da fação de Juan Guaidó, depois de uma primeira reunião por videoconferência com o Novobanco, a 24 de setembro, o Procurador Especial José Ignacio Hernandéz G., que já tinha avisado para não acatar as ordens da fação Maduro, deu a instrução ao banco português para encaminhar todos os fundos para uma conta do Banco Central da Venezuela junto da Reserva Federal de Nova Iorque.
Neste cenário de profunda divisão, não sobrou outra alternativa ao Novobanco senão reter os fundos (que por esta altura já se encontravam bloqueados por ordem judicial) e mesmo com a enorme pressão exercida pelas empresas públicas venezuelanas se manteve irredutível.
Dez anos depois de Sócrates ter aberto a porta da Venezuela ao BES, o Novobanco encerrou as quase três dezenas de contas entre 22 e 24 de novembro de 2019. Nenhuma das duas fações venceu este braço-de-ferro, mas em Caracas já se concertava um plano para contra-atacar o Novobanco.
- Este artigo faz parte de uma série de cinco episódios da “Guerra pelos milhões da Venezuela” e que conta os bastidores, disputas, reviravoltas e intrigas em torno dos fundos de mais de 1,4 mil milhões de euros que as empresas públicas venezuelanas guardam no Novobanco.
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